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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
A compreensão da poesia

 

Salomão Sousa

 

Amo e compreendo uma só coisa no mundo, que é a poesia.

Natalia Ginzburg

 

 

Será que um vírus maligno, aniquilador dos nervos das sensações, atacou os limoeiros do Continente, deixando os habitantes sem o perfume doce e as cores branco-cristalizadas? A impossibilidade de alguns compreenderem a poesia terá sido frequente em outros tempos e culturas? Foi reativada alguma bactéria de antanho, que torna as pessoas indiferentes à harmonia? Os isotermos e os isóteros deixaram de cumprir as suas obrigações? Os poetas se tornaram tão herméticos que a linguagem metafórica se invalida por ter passado a inibir a figuração que as palavras possam conter? Os poetas passaram a escrever poemas enfermos? Passou a ser inteligível só o que puder ser processado de forma prosaica? Ninguém mais deseja partir para o país onde os limões florescem?

 

Por impotência para aproveitar os benefícios das artes, por indiferença ao onírico ou pura impertinência contra a beleza, os leitores passaram a declarar que não leem livros de poesia sob o argumento de que não conseguem entendê-la. Os leitores deixaram de ser leitores por leniência com a incompreensão, por permitir-se ser derrotado pela falta de aprendizagem, de menosprezo pelo significado? E se o maquinista deixasse de ser maquinista; o relojoeiro, de ser relojoeiro; a enfermeira, de ser enfermeira, abandonasse o paciente sem ligar o oxigênio; o condutor do tear desistisse de ordenar os fios; o coveiro, de recolher os mortos? Todos ficaríamos nus − de vestimenta, sem força para elevarmo-nos até o topo da escada para passar pela porta. Andaríamos entre corpos podres pela cidade, todos vazios de espírito e de emoções, mas a Poesia não deixaria de se manifestar dos escombros.

 

Atrás da cortina

 

Se não compreendo a Poesia,

continuo sabendo como atravessar a rua

e que posso encher minha bolsa de terra

para cobrir o rosto após a morte.

Há pouco o vento se aventurou

a arrojar gravetos em minha porta.

Vieram junto flores secas e grilos mancos.

O vento, por não saber escolher, arroja

flores mortas e percevejos com os gravetos.

Se tenho de ir ao cemitério,

sei o que é a morte

e será um estranho que levará meu corpo

bem como cimentará a tampa do túmulo.

Por que essa tarefa não é dada ao amigo?

O que compreende a Poesia

carrega com solenidade um morto.

Se a Poesia não serve pra nada,

o corpo de um morto poderá ter serventia.

Por que há zombaria quando a corda arrebenta

e o caixão se apressa num estrondo?

A poesia exige cordas rijas,

asas delineadas de cobre e latão?

Se estou ocupado em compreender a Poesia,

lendo-a em tomos ancestrais

ou no celular última geração,

simultaneamente eu não consigo ir à praia

instalar a barraca ou produzir queijo.

Para fazermos qualquer coisa

temos de estar desocupados de outra.

Se me escondo atrás da cortina,

Deus me encontra para atender minhas preces?

Se me escondo para me livrar da morte,

eu compreendo a Poesia.

 

Há uma grande insuficiência de respostas para preenchimento dos vácuos que se abrem na existência. O conhecimento não consegue aprestar todas as soluções. Na tentativa de acabar com a carência de certezas e de atender o suprimento de belezas, surge a poesia − esse misto de conhecimento, experiência, incertezas e inventividade. Nunca noticiário, receituário e muito menos missiva para transmissão de conteúdo egocêntrico ou de espaventos cínicos. Para não ser atingido por algum estranhamento ao procurar ser íntimo da poesia, é necessário entregar-se sem exigência de compreensão cartesiana, mas, principalmente, coexistir com os elementos que a compõem, mantendo acionada a máquina da imaginação.

 

A vida é um ebulir frenético de atividades e sensações, que emerge dos movimentos, das perdas, conquistas, dos olhares e da linguagem. Se falta a poesia, o ebulir frenético não se alivia. Ela hidrata o indivíduo como a água num torrão de terra seco. Compreendê-la é distender uma ordem, um dossel de conforto para o que antes era ferimento ou o que se sente revolto no ambiente. A poesia merece ser incorporada como atividade cotidiana. Precisamos ler poesia da mesma forma como fazemos a colheita de uma fruta ou passamos o guardanapo para absorver resíduos.

 

Em todas as fronteiras os homens entendem e se desentendem e produzem experiências não só vitais, mas, sobretudo, gestuais geradores de metáforas e de conexões para a manifestação das expressões culturais (poéticas). Elevam e voltam a cabeça para o rastilho de um clarão ou se reúnem para selecionar sementes. O relojoeiro aproxima o relógio do ouvido para saber se a máquina não deixou de soar os segundos; o balconista ajusta a escada para recolher o produto do alto da prateleira; o jardineiro afofa o canteiro; o motorista encosta a máquina e descansa depois de terminar a estrada, depois de arrancar o toco, afundar um pouco mais a vala, volta a descansar depois de arrumar o motor enguiçado, pescar inútil um cágado. O motorista pode ser nosso irmão. Leva-nos na viagem e nos aguarda retornar da visita à família da prostituta. O poeta escolhe a palavra que melhor se ajusta ao verso – seja ela popular, erudita ou escavada em parques arqueológicos de civilizações antigas –, e esquadrinha-a no dicionário, no dispositivo, no galho quebrado por uma máquina ou na escada que vai dar numa parede.

 

Para tornar inabitável ou incompreensível ou por desistência de uma moradia, foi construída a parede onde havia a porta no fim da escada. Todos sobem e descem sem entrar. Todos bebem água macia depois de frigir o toucinho, varrer pétalas secas, ajustar o caibro, passar pela cãibra. Todos aguardam com paciência o correr do tempo, pois sabem quando irá florir, que novas pétalas estão destinadas a ressecar e surgirão tangerinas sobre mantos verdes. Há o disco da serra, o verde da cigarrinha-verde e as pétalas mortas, mas o coração vive limpo. Há a paz dos filhos, as manhãs que começam os dias. A poesia depende da escada que chega numa parede para criar metáforas sobre universos impenetráveis.

 

A tangerina

 

O relojoeiro não chupa tangerina podre

e muito menos o poeta e a mãe do esfolado vivo.

Os limoeiros frutificam frutos azedos

após florescerem carnações alvas.

As flores, que caíram em rodopios

como hélices, secarão insubmissas.

Voltamos a nos levantar, a nos assear,

a ajustar a roupa no corpo.

Ninguém sobe ao monte Athos.

 

Qual a paisagem vista da janela do iglu?

Qual interesse tem o balconista

afogado no cheiro de malva? A tâmara

do palestino? A subida para o mosteiro?

De repente, há o sarcasmo, o sadismo,

o salpicamento da beligerância.

Faltou graxa, não cresceu a tangerina,

todos erram o diâmetro dos encaixes.

Diante do mar eu vejo uma paisagem.

 

Há encantamento no cotidiano dos personagens do filme O cavalo de Turim, de Béla Tarr. Os gestos enfadonhos e repetitivos, do eterno retorno para sobrevivência, podem ser revistos pela imanência da poesia. Por mais incontestável que alguém precise da vala para escorrer a podridão, ou do marcador para definir onde fixar a antena, por toda parte as pessoas vão perdendo o interesse em aprender e compreender, aprisionados ao nada. Ninguém estancou a água que inunda a cidade. Vale lembrar que a poesia valida com encantamento as batatas, a manivela esquecida sobre o poço. A Poesia poderá nos aprisionar no topo do monte Athos.

 

Quem não compreendeu a inclusão da palavra Continente, anteriormente, nesse texto, leia o primeiro parágrafo do romance O homem sem qualidades, de Robert Musil. A frase que vem no mesmo parágrafo e contém os termos isotermos e isóteros foi ajustada para ilustrar as ideias aqui expostas. A escrita recorre a trocas, a mutilações, a jogos de encontros de tempos e de culturas. Musil talvez tenha reconstruído o início de sua obra máxima por inúmeras vezes, pois trabalhou nela por vinte anos, e ainda assim deixou-a inconclusa. E com essa mesma identidade de construção da abertura de sua obra máxima, Euclides da Cunha também antecipou o autor alemão em alguns anos ao criar sutilezas poéticas idênticas no parágrafo inicial de Os sertões.

 

O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas.

 

Para ser um bom leitor é necessário cumprimento de uma rotina de leitura para ampliar a riqueza de experiências vitais, tornar percuciente o olhar e colher diversidade de temas e de materiais que estão incorporados nos textos aguardando desconstrução. O leitor deve manter-se atento para captar as sutilezas do estilo do autor, saber-se assoberbar, permitir-se ver as “cordilheiras” e seus “visos”. Se não tivesse a ocorrência de uma frase como essa segunda que aparece no parágrafo de Euclides da Cunha, não estaríamos diante de uma obra de pura poeticidade, que engrandece a cultura brasileira. Outros países não se debruçariam sobre ela como se cobrissem com um dossel. Antes de mostrar o drama eivado de crimes de Canudos, o romance Os sertões cria novas possibilidades de usos da Língua Portuguesa, se constrói com aramados de figurações a partir da Terra, do Homem e da Luta.

 

Mas não há nenhuma lei que obrigue o leitor a compreender tudo aquilo que lê. A leitura não só esclarece como confirma que precisamos de outras leituras e pesquisas paralelas para ampliar a compreensão. Um texto nunca se abre todo ao leitor, exige constantes releituras, sendo que as releituras apresentarão outras compreensões se o leitor adquiriu novas experiências. Portanto, quanto menos lemos, menos possibilidade temos de entender e de aproveitar o seu encantamento encerrado numa obra literária. A extensão da compreensão varia de leitor para leitor. Vai depender das gradações de sua formação e de suas exigências humanas, de cumprimento de rituais, e do desconforto de perdas. Não é o autor que tem de reduzir a complexidade do estilo ou abolir os vocábulos desconhecidos do leitor para unificar a compreensão do texto. A incompreensão de um poema não nasce em sua composição. O poema “Ítaca”, de Konstatinos Kaváfis, será bem menos assimilado por aquele que nunca leu a Odisseia, de Homero.

 

Quanto menos lê poesia, quanto menos a identifica nos textos, mais enfadonho o indivíduo se torna. Quanto mais transita sem integrar-se à realidade, sem aprendizagem de sua nominação e se nega a interagir com o diferente, mais o indivíduo aprofunda a incapacidade de decodificar um texto. Só o que sabe a nominação, interpreta e se emociona. O indivíduo enfadonho não se ajusta à realidade e tudo vai se tornando prosaico em seu entorno, passível de desmontagem e destruição. O que usa a realidade e a comercializa, sem se permitir maravilhar, não se insere no mundo como ser social, enfim, deixa de ser partícula integradora. Deixa de ser íntimo das flores do limoeiro, dos zimbros de folhas aciculares; só irá a eles se integrar quando com eles se tornar humus.

 

O que se sabe é que os livros de poesia nunca alcançaram grandes tiragens, mas não por questão de compreensão. Por outro lado, devemos sempre nos preocupar com a falta do contato íntimo com a poesia, pois através dela o indivíduo consegue melhor se expressar, aperfeiçoa a capacidade de interpretar e de ler o mundo, aumentando a possibilidade de acolhida nos trajetos que empreende. É a imagética criada pela poesia que desanuvia o espírito enfadonho, desajustado com a vida e a realidade. A realidade, em si mesma, é matéria insípida e passível de deterioração, mas a poesia costura com fios de ouro o que desmorona e que está destinado a incorporar-se ao esquecimento. Domina-nos a impertinência do gozo das palavras, que gostam de se friccionarem e se flexionarem na salivação da língua. Quem lê, se desnuda melhor e ama melhor. A poesia nos auxilia a recobrar lembranças. Com um verso de Jorge de Lima (Zefa, chegou o inverno), retorna a nós a chuva sobre a queimada, tanajuras a se esparramarem no terreiro.

 

Se desconheço a palavra ligustro, não reconhecerei a árvore que leva esse nome e, se a nomino só de árvore, ela poderá me hostilizar como aquele que se revolta contra mim quando o chamo de homem, mulher ou criança por menosprezar com desconhecimento o seu nome. Certa vez, em minha juventude, eu nominei o Belarmino num poema, divulgando que ele sempre ia recuperar a mulher que fugia com outro homem. Meus amigos me disseram que eu estava com os dias contados. Para minha surpresa e de meus amigos, ele não me evitou nem me agrediu ao cruzar por mim na praça pública. O Belarmino me abraçou e me sondou sobre minhas andanças pela Capital. Como todos nós, toda árvore tem registro de nascimento e melhor nos auxiliará no desvendamento das metáforas em que esteja envolvida depois de usarmos o seu nome.

 

Um vocábulo permanecerá estranho, sem pertencer à nossa intimidade, se não buscamos a amplitude de seu significado, e surgem para confirmar existências, mesmos aquelas que estão mortas, e as almas desesperançadas. Se nunca tomamos conhecimento da palavra ligustro nem confirmamos seu significado, jamais saberemos da existência da árvore que leva esse nome. Algo só é conhecido pelo vocábulo que lhe foi atribuído, e o nome vai adquirindo novos significados conforme o caráter do ente nominado. Surgem fábulas e metáforas em torno do vocábulo.

 

Vejamos a amplitude que veio ganhando vocábulo “limão” a partir de seu uso nos poemas. Se leio o poema “Os limões”, de Eugênio Montale, a palavra vem incorporada à vivacidade do verso, à sua plasticidade, pois, além do significado, ganha enlevo sedutor, paladar nas papilas da língua (ninguém vá querer usar virgula depois de buxos, pois a poesia não está preocupada com essas sutilezas gramaticais, mas em dar extensão à nobreza das palavras e prolongar o prazer que elas carregam em si mesmas pelo entrechoque que os poetas provocam ao emparelhá-las com finas ligaduras). Como os corpos, as palavras se agarram, se abraçam e infiltram-se umas nas outras ao ser incorporadas na poesia. O próprio poeta chega a tripudiar desse hermetismo alcançado pela impenetrabilidade do significado das palavras, mas é apenas artifício, pois sabe do encanto que elas incorporam ao discurso. Eugênio Montale é um poeta hermético e é comum em sua poesia a riqueza das metáforas obtidas através de vocábulos raros e de construções de extrema sutileza.

 

Escuta-me, os poetas laureados

movem-se tão somente entre as plantas

de nomes pouco usados: buxos ligustros e acantos.

(…)

Quando um dia um portão entreaberto

em meio às árvores de um pátio

nos mostra o amarelo dos limões;

e o gelo do coração se desfaz,

e brotam em nosso peito

as canções que ressoam

dos seus clarins de ouro solar.

 

Após inserido na experiência pessoal, o limão se torna compreensível enquanto fruto de formato quase oval. De superfície verde (mas só verde? mas que matizes?), polpa cheia de gomos contidos de forte azedume. Às vezes, amarelo, quando maduro. Os poemas “Mignon”, do alemão Johann Wolfang von Goethe, ao lado de “Os limões”, de Eugenio Montale, são os poemas que melhor empregaram o vocábulo para construção de metáforas. Em “Mignon”, os limões tornam convidativo o país imaginário. (Conheces o país onde os limões florescem/E laranjas de ouro acendem a folhagem?) Não se trata de erro ou ajuste de tradução, pois Goethe escreveu “limões florescem” e não “limoeiros florescem”. Esse florescer não é “abrir de flores”, mas de “explosão de júbilo e sedução”. Em Montale, os limões − por se apresentarem amarelos − ressoam clarins de ouro solar para a paisagem acolher os rapazes. Sedutores.

 

Carlos Drummond de Andrade também constrói um verso com o vocábulo limão, que perpassa todas as vinte quadras do poema “Lira do amor romântico ou a eterna repetição”. As estrofes foram construídas na tradição das quadras populares. Vejamos o trecho de uma das vinte estrofes: “Atirei um limão n’água,/de clara ficou escura”. Julgo que não há dificuldade em compreender essa metáfora, basta a experiência de lidar com a água que escorre sobre a terra. A água sempre se mistura e se escurece, se a agitamos em seu leito de lama. Foi o deslocamento da lama pelo impacto do limão que escureceu a água, e não porque o limão fosse escuro, e nem consta que exista limão escuro in natura, a não ser por ressecamento ou processo de desidratação. E nesse poema o limão não funciona enquanto fruto, mas como objeto que se move e que cria impacto ao ser atirado com força. Poderia ter sido uma pedra, um livro, um graveto descartado. E, para ser poético, o poeta usa recortes. O segundo verso de Drummond vem solto, separado por vírgula, sem ligação com o principal.

 

No poema “Verdes são os campos”, de Camões, poderíamos interpretar o matiz dos campos de forma diferente se o poeta não tivesse anteposto a palavra “verdes” antes do sujeito “campos”, pois os limões podem ser amarelos, vermelhos, enferrujados (“Verdes são os campos,/De cor de limão”.) São versos descritivos, realistas, bem objetivos. Os textos telúricos exigem clareza, exatidão na descrição. A definição simbólica se dá pela própria retratação da paisagem.

 

No entanto, no poema “A ascensão (de Cristo)”, do expressionista Wilhelm Klemm, não basta a experiência com o vocábulo. Entram outras exigências para que o leitor possa desfrutar da experiência da leitura do poema. A cor do limão perde a especificidade, se deixou de ser indicada a tonalidade. Se o limão se “abriu” pode ser um espelhamento de estrias brancas e recortes líquidos – um céu vitrificado? Pois será nesse espaço que ocorrerá a ascensão. Um limão aberto apresenta o desenho de uma roseta de ranhuras alaranjadas ou branco-cristalizadas. Por tratar-se de evento grandioso, a ascensão de Cristo não pode se manifestar de forma clara e compreensível, ainda mais se levarmos em conta que − se a ascensão foi posta para ocorrer nos tempos atuais −, ela tem de acontecer em meio a inventos modernos, num céu de límpidos desenhos de cristal, com vocábulos que inexistiam nos anos iniciais da era cristã, sejam eles metrô ou cinto (Cristo tornou-se humano, por isso necessitar de cinto segurança para a ascensão). A compreensão mais se entorpece com a utilização de termos raros, pois é quase impossível contato durante a vida com a palavra “getas”, mas ela nos aguarda exigente no poema de Wilhelm Klemm. A ascensão de Cristo – mesmo que o evento aconteça num poema −, se dá com urgência frenética, sem tempo para pensar em sabores e cores ou para inserir pontuação, sem tempo para respirar, misturando épocas distintas, por isso a presença dos getas, povo selvagem da Trácia antiga, numa mistura de passado e futuro. A ascensão de Cristo é ato raro, não podendo ser tratado como a simples elevação de uma pipa. Por ser humano, além de divino, Cristo também transpira, pelo menos o poema mostra, no ato de elevar-se, as solas dos pés suadas.

 

A ascensão (de Cristo)

 

Ele apertou o cinto até ficar apertado.
Sua estrutura nua de ossos rangeu. Do lado da ferida.
Ele tossiu baba. Ele inflamou sobre seu cabelo atormentado.
Uma coroa de espinhos de luz. E cachorros sempre curiosos.

Os discípulos estavam farejando. Ele bateu no peito como um gongo.
Pela segunda vez eles dispararam gotas de sangue,
E então o milagre veio. O céu céu

Ele abriu a cor de limão. Um vendaval uivou nas altas trombetas.

Ele, no entanto, ascendeu. Metrô após metrô no buraco

Espaço Os getas empalideceram em absoluto assombro.

De baixo, eles só viam as solas dos pés suadas.

 

Antes de concluir a intervenção sobre o emprego do vocábulo limão pelos poetas, surge em minha memória o poema “Ao pé do limoeiro”, do amigo Valdivino Braz (1942), goiano do município de Buriti Alegre, que confirma expressões usadas, anteriormente, nesse texto. O fruto aparece sobre as mesas dos bares, misturado às folhas de papel, que se deduz, destinadas à produção do próprio poema, como complemento de sabores de bebidas etílicas. Trata-se de experiência do autor do poema, pois era frequente a sua presença nos bares, com limões partidos ao lado de copos de bebidas. O limão comparece para reafirmar a superposição de passado e futuro, como no poema “Retrato”, de Antonio Machado (Minha infância são lembranças de um pátio de Sevilha,/e um horto claro onde amadurece o limoeiro). Em Valdivino Braz, no passado (Lá onde os meninos moram), os limões revivem a infância; mas, no presente, o limoeiro comparece inteiro no ambiente (agora, dentro do recinto e junto às mesas, frutificado/ verdes limões-china, e maduros-alaranjados) para recobrar as lembranças, e serve, também, para destacar o azedume de algum casal, amantes em litígio. A poesia alinhava o tempo e desenha para nós os rostos perdidos.

 

O tempo se alinhava por escrito, fragmentos,

sob o copo e os frutos do limoeiro. Folha de papel,

riscos e rabiscos, à mesa do bar. Como desenhar,

que se frustra, o rosto perdido? Com que lápis de cor,

agora colorir

 

Por mais que seja uma lástima a declaração de leitores sobre a impossibilidade de entender textos poéticos, alguns livros mereceram grandes tiragens quando foram lançados. Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, de Pablo Neruda, vendeu sessenta mil exemplares, e passou a ser furtado das bibliotecas universitárias pelos estudantes. Há o caso recente de Manoel de Barros com Memórias inventadas, que vendeu quatrocentos mil exemplares. O livro Eu, de Augusto dos Anjos, que foi lançado em 1912, vem merecendo dezenas de edições, em que pese adotar linguagem despojada, crua, de frontal antipatia ao egocentrismo (Um urubu pousou na minha sorte), quando todos se dizem bafejados pela sorte. Em que pese ser bem anterior, o livro Folhas de Relva, de Walt Whitman, mereceu nove edições em vida do autor, sendo a última organizada em seu leito de morte. Atualmente, o livro aparece na cabeceira de lares de todos países, adotado por aqueles que amam a vida e o grito de humanismo e de liberdade que paira e vai pairar sempre enquanto o mundo for habitado por humanos. Pela parcela da Humanidade que consegue compreender a poesia.

 

Mas só é possível compreender a poesia se esforçamos para nos emponderarmos com a riqueza das sensações, do conhecimento da realidade, do domínio da memória ou se temos interesse em invadir os interstícios obscuros da linguagem. A poesia se realiza através do equilíbrio das palavras, das sonoridades, da fuga das expressões de óbvias definições. Quem nunca se apanhou fazendo ruídos na tentativa de encontrar uma palavra ou significado para alguma estranheza? Experimente emitir um ruído se nada lhe ocorrer para, em algum momento, dizer com palavras. O gesto pode parecer besta, mas talvez o sibilar traga à tona a íbis ou o som do vento no zumbido articulado com os lábios. Experimentemos cantarolar repetições para liberar a ave e o vento:

 

Zibzibzibibis

Ibiszibzibzib

Zibibiszibzib

 

Se Augusto dos Anjos tivesse alterado o seu verso para “Um urubu pousou em minha janela”, substituindo a palavra sorte, a metáfora teria sido abolida do poema ou apresentaria resultado diverso da proposta do tema tratado. Para a mudança, o poeta teria de estar abordando no poema a vedação da visibilidade. Teria captado o real e não a expressão deteriorada do próprio destino, pois o urubu só se alimenta daquilo que se decompõe. O real é aquilo que em si mesmo já existe e se explica na própria exposição. O urubu na janela obstrui a visão com sua obscuridade; pousado na sorte, o urubu apodrece o destino. A poesia busca desvendar o reverso do real (a memória, a angústia, a sombra, o reverso). Eu sou um corpo, mas em que trilhas, que essência ou fugacidade existe nesse bloco físico? Sou tentado a escrever sobre o cheiro de malva que enche o meu escritório, só que me valho do cheiro que chega da infância, quando fui balconista, e que permanece impregnado em minha memória. Depois de escrito, na experiência da leitura do poema, o passado passa a ser presente em qualquer época em que ocorrer a leitura.

 

O balcão

 

Nascemos na cidade dos limoeiros

onde galhos se libertam

ao avançarem cachos para a rua

 

O perfume anula o fedor do monturo

dilatando as narinas como lata

a encherem-se de chumbo

 

Solitária e sorridente, a noiva

se atrapalha na penumbra

Fustiga-a corolas de poeira

 

Enquanto as abelhas

bebem dos grãos de álcool

o balconista em hausto de ciúmes

 

 

Mas e o vocábulo hausto, que significa isso? Quem nunca viveu um encantamento para se sentir sem respiração? Vivemos para produzir memória, e a forma de gastá-la ou validá-la se dá ao nos aproximarmos do terreno onírico organizado pelas palavras. Para revivermos, as palavras nos emparedam e achamos que estamos retomando o relâmpago que vimos numa viagem, o paciente anestesiado sobre a mesa (T. S. Eliot), o oco onde estaria o ninho, ou o buraco à beira da estrada com a criança dentro a saltar de alegria ao passarmos para inserir presença humana ao seu dia.

 

Por volta de 1800 − por admiração ao poeta e por amor à poesia −, William Hazlitt, ensaista predileto de Harold Bloom, percorreu dez léguas para ouvir uma pregação de Samuel Taylor Coleridge, que, além de poeta, era pastor. Rimbaud fugiu várias vezes de Charleville para Paris – roto, faminto, a pé por uma distância de mais de 230 quilômetros – para amar o Amor e a Poesia com Verlaine. Portanto, para amar e compreender a Poesia, ela exige que façamos um percurso de muitas léguas, solitariamente, para expormos nossa liberdade e testar a nossa capacidade de devanear. Ou, como Rimbaud, levar um tiro para nos lembrarmos de nossa fragilidade e da intensidade das paixões. A viagem não precisa de ter percurso ou de exposição a tiro, mas de entrega às palavras, ainda que elas sejam impenetráveis como as pedras em que nos sentamos debaixo do ligustro para o descanso, em meio à jornada.

 

Noutros momentos, é imprescindível nos rebelarmos contra a linguagem, inflando de desobediência os seus ditames. Num ato de rebelião, o argentino Nestor Perlongher constrói o poema “Há cadáveres”, num arroubo de cortes (do clitóris fica só a metade) e aglutinações para ferir os eventos totalitários da Argentina, do Brasil, do Chile ou de qualquer outro país em que tenha ocorrido barbáries idênticas. Todas as sessenta estrofes do poema terminam com o estribilho Há Cadáveres. Vejamos uma das estrofes:

 

Verrugas, alfafa (de teflon), abençoados chatos, quando sim...

destrói, mói, anjos miríades de peixes espadas, mirtilos

ao álcool, acnéicos, ou só adolescentes doloridos do

dedo de um pontapé nas varizes, levantar a torre

no peito, percal crispado, arromba clitó...

Há Cadáveres

 

Temos de reconhecer que se trata de uma estrofe de difícil desconstrução, pois está incorporada a um poema murado, masmorra, cárcere de perdida chave. Outras palavras poderiam ser substituídas na tradução ou deixadas as originais, ainda não será descartado o hermetismo. Como Perlongher morou no Brasil e influenciou poetas do neobarroco, o conteúdo do poema, com as suas invenções e transbordamentos de palavras, que nem chegam a ser neologismos, não tem a intenção de mostrar engajamento, mas denúncia das práticas de domínio político pela força. O esquartejamento das palavras foi artifício usado por Perlongher para crítica à tortura adotada pelos regimes ditatoriais.

 

A Poesia, quando escava o horror, adverte que a vida não pode ser despojada do encantamento. O poeta não quer hostilizar o leitor com alguma zombaria. Quer repudiar um período histórico incompreensível, que nos torna abobados diante de tanta estupidez! Perseguições, corpos arrojados de helicópteros no rio da Prata e presos e mortos no Estádio Nacional do Chile, na casa da Vovó. A impossibilidade de tornar compreensíveis essas ações. Os choques no reto e penetrações com cassetete nas sessões de tortura.

 

O poema “Há Cadáveres” alerta que o apoio à gênese de poderes totalitários é uma forma de deixar os ouvidos, os dentes, a língua, o ânus, os dedos, os seios, os pés e as partes genitais à disposição dos instrumentos de tortura (alicate, chicote, pedra, berço de jesus, berlinda, burro espanhol, cadeira elétrica, cadeira inquisitória antiga ou moderna ou com pregos, caixinha de pregos, cavalete, crucificação, empalação, ferro aquecido para esmagar seios, esquartejamento, estiramento, fogueira, forca, forquilha do herege, fuzilamento, garrote, guilhotina, injeção letal, máscara da vergonha, mesa de evisceração, pera, purificação dos pés, quebra-joelhos, rato na gaiola, roda alta, serrote, torre de bronze, virgem de Nuremberg, afogamento, pau-de-arara, choque elétrico, pimentinha, cadeira do dragão, geladeira, palmatória, produtos químicos, agressões físicas, tortura psicológica, asfixia, pênis, cassetete).

 

É aconselhável a leitura do poema como um longo xingatório para sentir a sua vitalidade. Mesmo quando a poesia se apresenta incompreensível é possível desvendar as suas ocultações. Se encontramos uma parede ao fim da escada, retornemos em busca de outra passagem. Poderemos abrir a parede a fórcipe, à custa de metáfora, que envolve a chave do conhecimento, a pesquisa e a marreta da memória. A garotinha Manuela insistiu em ler uma das estrofes do poema de Perlongher e, ao chegar ao estribilho, soube interpretar o objetivo do poema. São dela as palavras: “é verdade, se tem tiro, há cadáveres”. Para a espontaneidade da criança, a metáfora materializa a realidade, ebulindo, de um estalo, a verdade para a superfície.

 

Para terminar essa aventura com a Poesia, tomemos o poema “Que de tão surdo”, de Delermando Vieira (1950), goiano de Caldas Novas, para tentativa de interpretação que elucide o que se esconde no subterrâneo das suas combinações de imagens lúgubres. Trata-se de um poeta que viveu o período da estranheza autoritária do país, bem como decidiu pela composição de poemas nebulosos, de metáforas preciosas e de raridade encantadora (figueiras de alumínio), seguindo o rastro de poetas de canto soturno como Augusto dos Anjos e Edgar Allan Poe. Viveu o estertor de um período obscuro do Centro-Oeste, sem iluminação pública, estradas, saúde e educação, isolamento das famílias em fundões abandonados, topando com morcegos e curiangos em qualquer trilha noturna pela qual se enveredasse.

 

Para destrinchar a experiência enigmática de viver, Delermando Vieira chegou a enganchar em si mesmo o gesto de doentio endemoniamento. A temática do livro Os labirintos do novelo, que contém o poema aqui mencionado, transita por essas trilhas (trieiros na região goiana) de estranheza e nebulosidade, resultando numa poesia angustiada. No entanto, não é um poema inclassificável ou intraduzível, pois há elementos para a sua desconstrução (ato de tornar algo compreensível).

 

A começar pelos vocábulos, a poesia de Delermando Vieira transita dentro e fora da experiência pessoal, com a espontaneidade de criações figurativas raras na poesia brasileira. Destacam-se, no entanto, os elementos da experiência pessoal. Se seu trânsito é o território do medievalesco goiano, ainda sem invasão da modernidade, predominam os vocábulos em uso em seu tempo, remanescentes do colonizador (pata, ferradura, estribos, gonzos, ventania), com algo contemporâneo (agro, alumínio). Tanto pelo sincretismo demoníaco como por essa miscigenação de experiências, antecipou em mais de duas décadas a poesia de invenção.

 

Na titulação do poema, Delermando vale-se do recorte e da incompletude que as vanguardas trouxeram para o poema e que se tornariam banais com o advento das redes sociais. As frases (ou versos) não necessitam incorporar todos elementos. Bem como pode injetar ambiguidades para o interior das construções. Como o poema contempla o ambiente de obscuro abandono em que vivia o homem dos meados do Século XX na região central do Brasil, mais se acentua o aspecto lúgubre em toda produção poética de Delermando Vieira como podemos ver nessa tormentosa viagem (enterro?) ao jardim da escuridão, de que se ocupa o poema aqui mencionado. Para o poeta nebuloso, investido em si mesmo do demoníaco, é recomendável que o poema se construa com a beleza (jardim) desde que encoberta pela escuridão. Assim, a repetição da forma verbal pus também funciona como substantivo, tendo em mente que o corpo transita entre o belo (jardim) e o local de deterioração da existência (sepultura), onde se tornará pus antes de ser divina (Cristo de Gottfried Benn), sem deixar de lembrar que o poeta vivia o tempo das pústulas da Ditadura. O canto (vivo), no caso, a Poesia, mantém vivo o desconforto de viajar pelo tormento do Tempo e da Vida, demonstrando que a lírica moderna não é só de enlevo e gozo.

 

Que de tão surdo

 

Pus meu canto no meu enterro

e suas figueiras de alumínio,

sabendo que a Vida

(além do Tempo)

viaja em seu tormento.

 

Embora sempre vivo,

pus meu canto

(quase torto)

entre a cova e seu morto.

 

O vento, no jardim da escuridão,

me resvala em toques

de pata e ferradura.

Muito agro, pus meu canto

(sempre vivo)

entre o céu e a sepultura.

 

Que nódoa,

estribos,

gonzos,

tiniam neste canto

que de tão surdo

em cristal se ouvia?

Pus meu canto,

todo encanto,

no gemer da ventania!

 

Recorro sempre à poesia dos poetas de infinita coragem de construir valendo-se de outra sintaxe para desconstruir (ou preencher) a estranheza da existência de seu tempo. César Vallejo, Delermando Vieira, Djami Sezostre, Herberto Helder, Jamesson Buarque, Nestor Perlongher, Victor Sosa. Para compreender a Poesia desses e de qualquer outro poeta, antecipadamente, temos de construir experiências, de conhecer a cultura e as condições político-sociais contemporâneas de cada um deles. Drummond viveu numa região pedregosa, num período de introdução da máquina no Brasil e de ruído da Segunda Guerra; só assim poderia chegar à síntese de seu tempo com o poema “A máquina do mundo”. João Cabral de Melo Netto conviveu com a aridez nordestina, com a secura do homem local, de profundo misticismo e, depois, com a aproximação da poesia espanhola, condições que possibilitaram a ele elevar a poesia brasileira ao seu ápice. Adélia Prado vivia adormecida num ambiente doméstico e de um conservadorismo católico centenário, por isso a sua poesia epitalâmica. Manoel de Barros, ao lado de homens que se confundiam com a natureza, daí tirou os versos mais puros que conhecemos. Portanto, não é questão de não compreender a Poesia, mas de não construirmos em nós a diversidade de conhecimento de territórios para termos elementos para interpretá-la. Os poetas nos oferecem outros olhares e sentimentos – pois, são homens e mulheres de regiões e de tempos diversos dos nossos −, olhares e sentimentos esses que passam a ser nossos depois de compreendermos a Poesia.

 

Para usufruir do significado de um texto, seja ele poesia, ficção ou mesmo científico, é recomendável se preparar como se fosse empreender uma viagem. Antes de tudo, ter domínio do veiculo de transporte, escolher o roteiro expresso num mapa e definir a rota. Depois, buscar conhecimento do percurso, da história da nação a ser visitada, bem como a língua de seu povo. Se não conheço a língua e os costumes que irão se apresentar em meu percurso, se não me comunico e não conheço, retornarei sem nenhum acréscimo à minha experiência de transitar pela Terra. Se nela não me infiltro com alguma luz, sairei da caverna sem conseguir transcrever nenhuma de suas riquezas. Se não construo experiências, não avisto o território explanado pelo poeta e continuo um ser vago, vesgo, grão chocho na vasta fertilidade da Terra. Só posso entender a Poesia se, antecipadamente, aprendi a desvendar seus elementos. A lógica apresenta clareza para essa questão, pois a Poesia nem sempre é a vilã. Só entendo o que sei.

 

Como existe aquele indivíduo que alega não ler poesia por não a entender, tem aquele que diz que lê poesia só quando ela é boa. Mas quando uma poesia é boa? Só quando se ajusta à capacidade de interpretação do leitor, à sua cultura, às suas experiências sociais e políticas? Numa época de falta de humanismo, de controle dos direitos individuais, a lírica tem, obrigatoriamente, de atender a esses ditames políticos? Trata-se de um produto que o indivíduo possa exigir, para consumir, que possa conter só um determinado número de metáforas e de palavras que não constem de seu repertório individual?

 

A falta de compreensão da poesia é farsa usada pelos indivíduos para deixar de assumir que não foram capacitados para a interpretação artística. Pela falta de formação, tornam-se indivíduos inaptos para os gestuais do espírito e, consequentemente, perdem a oportunidade de se emocionarem com aquilo que negam por serem incapazes de entender.

 

A poesia merece ser detratada se nega a atender os ditames daqueles que fracassaram na obtenção do conhecimento, e se enfurecem contra o humanismo e a liberdade? Temos de ter consciência de que a compreensão da poesia não é um ato espontâneo, que se ajusta ao que alguém conhece ou exige por prepotência. Para que exista a Poesia, há exigência de códigos (língua e alfabeto) e a capacidade de decodifica-los. A poesia é uma expressão livre, que desobedece, confunde as hierarquias e os poderes. Não aceita esvaziar-se de artifícios de conteúdo e de construção só para ser boa ou compreensível por indivíduos enfadonhos. A Poesia não existe para trazer conforto a alguém, talvez para estabelecer exaltação onírica ou estado de rebeldia.

Em visita à Itália, Goethe enviou carta a Herder que demonstra a importância da experiência para compreender a Poesia:

 

Agora que tenho presente em minha mente todas estas costas e promontórios, golfos e baías, ilhas e línguas de terra rochedos e praias, colinas cobertas de arbustos, suaves pastagens, campos férteis, jardins adornados, árvores bem cuidadas, videiras pendentes, montanhas de nuvens e planícies, escarpas e bancos rochosos sempre radiantes com o mar a circundar tudo isso com tantas variações e tanta variedade − Somente agora, pois, a Odisseia tornou-se para mim palavra viva.

 

Ai! Me cumulem de conhecimento para que eu nunca deixe de amar a Poesia ou venha a desaprendê-la! Não eliminem a porta do fim escada, pois preciso acessar os cômodos que ela habita. Se me esconder atrás da cortina para a Poesia não me achar, serei torrão seco – escuro limão desidratado.

 

 

 

 
 
 
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