CADERNOS DE DA NIRHAM EROS
Da Nirham Eros é uma criação de Roland Grau, o artista plástico chileno que vivia no Rio de Janeiro, no final da década de 50, e nos anos seguintes. Vivia em minha casa na Tijuca e na dele, como um efebo que acompanha seu mestre. Era uma figura extraordinária e a ele devo grande parte de minha iniciação. Trazia-me livros, com ele ia a galerias de arte, passávamos horas e horas conversando, até o alvorecer, no seu apartamento no morro do Cantagalo, em Copacabana, uma região quase desabitada, com vistas para os edifícios da orla e para a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Corcovado.
Roland fez dezenas de retratos de Da Nirham Eros. Eram idealizados, mas alguns guardavam traços do personagem. Desenhos a guache, a nanquim, pinturas a óleo. Uma dos retratos sobre tela esteve vários anos na parede de minha casa da Tijuca, depois foi levado para a casa de minha irmã, em Nova Iguaçu, quando eu imigrei para a Venezuela. O retrato acabou numa prateleira e foi destruído pela umidade, mofo e cupim. Senti que uma parte de mim desaparecia para sempre. Restou uma foto em preto e branco da pintura...
Das leituras que fazia, criava cadernos, em que copiava, comentava e escrevia meus próprios textos. Muitos deles traduzidos por Roland ao castelhano, em forma de incentivo. Nas traduções ele fazia reparos, orientava meu trabalho, e eu, quase sempre, retocava os originais...
Guardo muitos desses cadernos. Num deles aparece a lista dos livros que eu lia, muitos deles tomados por empréstimo à Biblioteca Pública do Rio Comprido, onde a bibliotecária vivia assustada comigo, chegando a confessar à minha mãe que eu lia obras “impróprias” para a minha idade (entre os 17 e 18 anos!!!) como Nietzsche (“O Anticristo”) e Bertrand Russell (“Porque não sou cristão”)... Lia filosofia, muitas peças de teatro, poesia...
Lia muito, mas não lia demais. E relia. Horas e horas no meu quartinho lá na ladeira que subia desde a Rua Barão de Itapagipe. Ou na varanda, com a paisagem do Pico da Tijuca. Os jovens iam jogar bola, eu ia para a livraria. Não era feliz, mas achava que sim, apesar do ar melancólico que eu disfarçava com o meu humor (que acabou vencendo-me, ao longo de minha vida). Era uma época de preconceitos e limitações. Um jovem pobre, mas que frequentava teatros, ia aos ensaios das peças de seu amigo Ziembinsky, comia em restaurantes convidado por artistas e escritores, graças ao genial polonês que mudou o teatro brasileiro.
“Fui ao espelho e encontrei minha orelha pela primeira vez. Uma só. A outra era amorfa, inconsequente. Estava vermelha e a pressão alta; pensava coisas ininteligíveis. Já não era o amor próprio que saía pela orelha. Tinha vergonha de vê-la.
Com um recalque vieram os outros e saiam pela orelha, em tom escarlate, cartilaginoso. Afloravam à pele, em seu rubor súbito. Tal era o meu espanto ao ver-me.
Foi quando me interpelaram:
— Você está triste?
Eu nem sabia. Disse que não.
Vinham ruídos esquizofrênicos, gritos e, abrindo a porta, descobri o corredor entupido de gente, jovem e estrepitosa. Na sua maioria, garotos de 15 a 18 anos, fazendo fluir toda a juventude em seu extrovertimento.”
E amava. Amores platônicos e reais. Que registrava para ruminar as frustrações e conquistas.
Antevisão da minha dor
em teu rosto em fuga.
Mis-en-scène:
O teu corpo, volátil,
em blue-jeans:
formas híbridas
de flagrante juventude.
Passeei teu corpo
no curto trajeto
em que aparecias.
Teu corpo esquivo,
teus olhos de fuga,
atitude cismada
como a defender-se.
Teu corpo apenas,
em súbita aparição.
O Personagem
Primeiro o corpo
que é como se o vê:
em blue-jeans,
camisa aberta,
a defender-se.
Camisa aberta:
existência dúbia.
Não buscar, mas encontrar,
porém estar para ser encontrado.
2. Tema:
Importa é que haja amor sobre a terra:
entre os homens,
dos homens pelas coisas,
o amor preserva
ou dá origem ao mundo.
Maquillage:
Cabelos — linhas concêntricas
espiraladas,
em luzes marrom-pastel.
(Antevisão da minha dor
no teu rosto em fuga)
Riso flácido à intimidade,
sisudo
à primeira vista:
olhos de lince,
golpeantes
levantando um muro,
por timidez
— muro de vidro.
Modelas o mundo em tuas encenações:
forma de dominar o mundo,
levantando um muro.
Vivendo em outros corpos
pelos atos que lhes ditas,
ser-plural,
neles tua continuidade.
3 Amor equacional
´ É o amor que volta,
asas em abraço
prodigamente.
Um poema apenas esboçado, incompleto. Numas folhas amareladas e encardidas pelo tempo, num caderno de colégio. Um simples registro, circunstância. Não vou pretender decifrar o seu sentido. Eu era outro, e usava um heterônimo. Eu me imaginava, mas vivia no mundo, como qualquer outro.
Antonio Miranda,
Brasília, 8 de março de 2011,
Carnaval.
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