EM TORNO DA METAMETODOLOGIA DA CIÊNCIA
Por Antonio Miranda
Universidade de Brasília
O presente texto é o Capítulo 8 do livro: MIRANDA, Antonio. Ciência da Informação: teoria e metodologia de uma área em expansão. /Elmira Simeão, organizadora. Brasília: Thesaurus, 2003. 212 p. ilus. ISBN 85-7062-374-7
"o modo de dizer também é aquilo que se diz".
STRAVlNSKY
"Expondo-se pela experiência,
o homem entra no tempo e o abre.
Não há humano sem experiência".
MICHEL SERRES
Da unicidade da ciência como paradigma
Em todo grande artista há um cientista, em todo grande cientista há um artista. Tradicionalmente, costuma-se contrapor o trabalho do artista ao do cientista, conforme um raciocínio maniqueista e conservador. Não apenas colocam arte e ciência em margens opostas, fazem-no também em relação às Humanidades e as Ciências Sociais como sendo contrárias às Ciências Exatas e da Natureza: oposição entre as ciências soft e hard, conforme algum manual estrangeiro de classificação das ciências. As primeiras usariam métodos investigativos mais qualitativos enquanto que as últimas inclinar-se-iam pelas pesquisas quantitativas, contrapondo-se "subjetivismo" e objetivismo" .
Umas das "oposições" entre Humanidades e as Ciências Naturais estaria na impossibilidade de compreender os fenômenos naturais da mesma maneira que compreendemos os seres humanos. Em efeito, "elaborar a diferença entre a ciência e as humanidades tem estado de moda desde muito tempo e tornou-se enfadonho", queixa-se Popper (p. 176) e conclui seu raciocínio afirmando que "O método de resolver problemas, o método de conjectura e de refutação [que é o modo central do Conhecimento Objetivo] é praticada por ambas" (Popper, p. 170). Em sentido contrário, vai mais longe ainda em sua diatribe: "Oponho-me assim à tentativa de proclamar o método de compreensão como característico das humanidades, marca pela qual as podemos distinguir da ciências naturais". (Popper, p. 176) [1]
Desde que Ludwig von Bertalanffy concebeu a sua famosa e revolucionária Teoria Geral de Sistema por volta de 1939, estamos revendo tais antagonismos. Em verdade, tudo faz parte de um único sistema científico, com naturezas diferentes, mas não antagônicas, que se complementam. Bertalanffy, presenciando os horrores do nazismo, percebeu que muitos cientistas estavam alienados, ou seja, não percebiam o compromisso social da Ciência. Refugiavam-se no suposto "neutralismo" da Ciência, indiferentes frente ao uso do trabalho científico em experimentos racistas e belicistas, sem respeito aos direitos humanos. Percebeu que era falsa a dicotomia entre Ciência e Política, entre conhecimento puro e aplicado, e que havia um compromisso ético inerente à própria atividade científica como uma atividade humana.
A Teoria Geral de Sistemas deixou óbvia a inter-relação necessária entre todas as ciências, que umas dependem das outras para seu próprio desenvolvimento; demonstrou que existe uma relação de complementariedade entre elas, além de sugerir a transferibilidade dos conhecimentos e métodos de umas disciplinas para outras. Fator acelerador do desenvolvimento científico na medida em que a experiência científica mais unificada beneficia a todas as áreas em vez de restringir-se a grupos e setores específicos.
É de reconhecimento generalizado que a Teoria Geral de Sistemas, mesmo partindo das Biologias, serviu de base para o desenvolvimento das ciências em geral e das sociais em particular, principalmente no campo da administração e da computação, cujos teóricos e analistas logo derivaram novas metodologias e aplicativos dos princípios sistêmicos. De fato, todo o pensamento estratégico, dito inteligente, holístico ou como se queira denominá-lo, baseia-se numa hermenêutica de cunho integrativo, de interdependência, na transdisciplinariedade, num enfoque globalizante.
René Descartes, em seu positivismo, já prenunciava o raciocínio de que todo fenômeno complexo é, em essência, composto e que por conseqüência, é desmembrável em partículas que, mesmo independentes, mantêm uma inter-relação com o todo, tal como preconiza, em termos mais elaborados, a Teoria Geral de Sistemas. As partes desmembradas requerem uma análise de contingência, de inter-relação hierárquica, de causa e efeito, de cooperação e simbiose, vale dizer, das relações sistêmicas, atômicas que explicam sua estrutura e natureza. Mesmo quando o autor esteja preso à lógica imediata do método científico aplicado a um problema particular, o seu problema ou objeto de estudo sempre estará sujeito à referida Teoria no que ela tem de mais essencial: na idéia de que cada sistema é subdivisível em subsistemas que têm suas inter-relações, numa escala hipoteticamente infinita e, no sentido contrário, os subsistemas vão compondo e conformando outros sistemas interdependentes.
O presente raciocínio é óbvio. Seria possível buscar suas origens nos filósofo pré-socráticos ou mesmo nas raízes de religiões orientais. O que é novo é a sua formulação em termos científicos (além de filosóficos), com desdobramentos metodológicos aplicáveis à pesquisa, à administração, à engenharia de sistemas, à indústria e à ação dos indivíduos, à arte. É onde os ditos “extremos" da arte e da ciência reencontram-se numa ação criativa e criadora. O problema estaria em que a ciência (e, também, cultura, de que é parte) vive o dilema do "local x global": "de modo amplo, todo homem sobre a Terra vive sua própria cultura, sem a qual não sobreviveria, aí está ela, de direito, universal, oposta ao movimento inverso da ciência que, dividida, em tais e tais especialidades, torna-se, de fato, abrangente e local, algumas vezes incapaz de ter acesso a problemas globais", pondera Michel Serres (p. 81). Ou seja, a fragmentação das especialidades científicas levaria à incapacidade de resolver problemas mais globais, condenando a ciência a questões localizadas, estanques.
Uma abordagém "aberta", abrangente, como a que postula o pensamento pós-moderno, levaria ao universal, onde "a ciência percorre o círculo do que se chamava enciclopédia" (Serres, p. 81-). A ciência, portanto, não estaria condenada ao paroquialismo, ao particularismo, à limitação disciplinar ou geográfica, podendo transitar por esferas transdisciplinares, universalizantes, segundo métodos e abordagens híbridas. A falsa dicotomia entre arte e ciência é em essência, a união de opostos através de um fio condutor que, enquanto as separa, também as une em algum ponto da oposição.
Poder-se-ia conceber, com tranqüilidade, que tal divisão se torne complementar? O matemático conhece melhor o mundo e mesmo a sua própria linguagem se adere à física; o físico conhece melhor as coisas e suas próprias ferramentas se aproximam da técnica; o técnico, se aprende o artesanato; e o artesão, se chega à obra de arte. (Serres, p.90)
Michel Serres discute a "falsa" oposição entre gramática e estilo, mas o seu raciocínio é perfeito também para entender o maniqueismo a que foram condenados os praticantes da ciência e das artes e, na mesma linha, entre ciências puras/exatas e as sociais/humanidades.
Inversamente, concebe·se o progressso do artista quando ele se volta para o artesanato; o artesão quando ele se faz técnico; o do técnico ... e assim por diante, em direção às matemáticas e à lógica. Estrada de mão dupla para o filósofo. (Serres, p. 90).
No centro da questão, as metodologias. Não apenas as teorias, as conceitualizações, as novas abordagens científicas que permitem compreender o fenômeno da percepção e representação do conhecimento, mas também, e sobretudo, as metodologias como instrumentais que possibilitam, viabilizam, orientam e visualizam as novas abordagens. Elas é que transformam as propostas da transdisciplinariedade e da interdependência entre as ciências e as artes em um território de trabalho e de resultados, em obra aberta e exposta à análise e à transformação permanentes (leias-se: em conjecturas e refutações no sentido popperiano).
Da coisificação do conhecimento científico
A ciência, a rigor, só existe na obra do cientista. Por analogia, mesmo que expondo-se a uma polêmica com os idealistas, pode-se dizer que a arte só existe nos artefatos dos artistas. E o que se depreende das teorias de Karl Popper, para quem a atividade científica materializa-se no registro da experiência científica através de documentos que garantem a sua transferibilidade às. comunidades científicas. O conhecimento científico, para ser reconhecido, requer esta materialização — que aqui denominaremos de· "coisificação", no sentido de que o registro requer regras próprias para sua feitura, tem tamanho/extensão, custo/preço, pode ser adquirido, armazenado, disseminado como qualquer objeto. Voltaremos ao assunto.
Para o entendimento dessa Teoria do Conhecimento Objetivo — que será analisada em capítulo próprio quanto à sua possível relação ou adequação com os fundamentos da Ciência da Informação [2] - devemos admitir os "três mundos" de Karl Popper que adquirem o status de mundos de observação para a ciência:
- o Mundo 1 é o mundo essencialmente físico, palpável, até mesmo "visível" (mesmo quando depende do auxílio de instrumentos físicos e/ou teóricos) das coisas e dos seres reais, tridimensionais, mensuráveis: a Terra, os planetas, os seres vivos, os produtos da criação humana, aquilo que se transforma em objeto de estudo das ciências naturais. É o domínio das ciências experimentais, de longa tradição e cujos instrumentos e métodos de pesquisa (mais freqüentemente quantitativos), cada vez mais sofisticados, têm mais respeitabilidade e possibilidade de comprovação científica, de aplicação industrial, de retorno econômico e social de seus resultados. Sua materialidade, sua objetividade, e o fato de ser "exterior" ao cientista favorecem sua observação e análise.
- o Mundo 2 compreende o mundo metafísico, das idéias, dos valores, dos pensamentos, das categorias mais abstratas, intangíveis mas nem por isso menos objetivas se sujeitas a métodos investigativos rigorosos. Sem pretender fazer a exegese da tese Popper, podemos afirmar que sua imaterialidade, a mediação da mente humana como fator de percepção e análise, coloca tal "mundo" como fenômeno de observação essencialmente crítico, dependendo de métodos (muitas vezes qualitativos) igualmente rigorosos. Não se limita, como poderia parecer à primeira vista, ao mundo subjetivo, intimista, imponderável porquanto também abarca esferas tão objetivas como podem ser as matemáticas,· a lógica, o direito, etc. Hoje em dia, as disciplinas do Mundo 2 - da administração à lógica computacional, da psicanálise à poesia, ganham crescente respeitabilidade científica assim como métodos investigativos mais e mais avançados, com teorias, instrumentos e programas complexos para a análise de seus fenômenos.
- o Mundo 3 é o universo do Conhecimento Objetivo de Popper, em que os resultados das pesquisas ganham espaço próprio, diferenciado — é o mundo da literatura científica mais tradicional (artigos, teses, patentes, discursos) até aos mais atuais suportes como os registros em multimidia, ou mesmo objetos físicos (exemplos do mundo físico tais como pedaços de meteoros ou plantas em herbário) que estão organizados no sentido de sua representação, vale dizer, como informação.
Um livro na biblioteca, uma máquina de escrever num museu, um documentário cinematográfico no espaço pedagógico são objetos físicos — papel impresso, metal trabalhado, celulose — mas que estão na condição de suportes e veículos de informação para um público capaz de decodificá-los conforme as regras convencionais. São objetos do Mundo 1 mas na condição de Mundo 3, de suportes e registros informacionais. Mas o Mundo 3 também se converte em fenômeno de observação, gerando seus próprios conhecimentos específicos, suas teorias e postulados científicos, sendo a Ciência da Informação uma das disciplinas devotadas ao seu estudo sistemático.
Resumindo, o Conhecimento Objetivo se dá no Mundo 3, na forma de representação e comunicação. A ciência "começa" e "termina" no documento científico. Sem exagero, toda a atividade científica, devotada ao conhecimento expansível sobre os mundos 1,2 e 3, depende da arquitetura da informação e de seus suportes em mutação constante. Pode-se (e deve-se) mudar constantemente a forma de produzir (pesquisar), de representar, pode-se buscar novas formas de registro e difusão do conhecimento, para facilitar sua apropriação social, mas é imperativa a existência de diferentes tipos de suportes e canais de comunicação para a coletivização do conhecimento.
O Mundo 3 como atividade profissional
A produção dos registros do "Conhecimento Objetivo" preconizado por Popper pressupõe métodos e técnicas próprias para a sua elaboração, para seu armazenamento, comunicação, avaliação. É o campo em que proliferam as profissões da informação e do conhecimento, estão conquistando percentuais crescentes no mercado de trabalho — no tradicional e na Internet —, inserido no setor quaternário da economia. Como os demais campos da atividade humana, exige capacitação em diferentes níveis (do auxiliar ao pós-doutorado) e em especialidades cada vez mais restritas. Lingüistas, metodólogos, bibliotecários, editores de revistas científicas, resumistas e indexadores, programadores, jornalistas, professores, webmasters, etc., etc . E outros surgirão.
Quanto ao desenvolvimento do Mundo 3, ligado ao desenvolvimento da pesquisa e, conseqüentemente, da indústria da informação, com o acúmulos de acervos e conteúdos e escala infinitesimal, impõe-se a necessidade de pesquisas próprias sobre as formas de pesquisa, de registro dos resultados, de armazenamento e difusão da massa documental como necessidade tanto dos cientistas quanto do público em geral. Em outras palavras, a ciência não depende apenas do avanço do conhecimento sobre os mundos 1 e 2, para dar resposta aos requerimentos sociais pertinentes. Requer também que os conhecimentos sobre o Mundo 3 avancem de forma a dar suporte a sistematizações e representações mais adequadas aos requerimentos científicos. Produzir e registrar conhecimentos são ações interdependentes. Se não avançarem as teorias, se não forem desenvolvidos novos instrumentos de pesquisa, se não foram expandidos os veículos de comunicação do conhecimento científico acumulado, de modo a permitir seu uso e reciclagem, não haverá progresso científico e nem econômico, político, social.
Ortega y Gasset (1940) reclamou, em célebre conferência, o papel de "filtro" na atividade bibliotecária entre a produção literária e científica crescente (posteriormente cognomina a "explosão da informação") e o público em geral. O pape do intermediário, do selecionador, do direcionador da literatura [3], i. e., de documentos para os usuários. O advento da documentação, principalmente entre os europeus, do final do século 19 às primeiras décadas do século passado, foi uma tentativa de criar técnicas capazes de dar ordenamento ao dilúvio bibliográfico da época. A Ciência da Informação, como atividade profissional (independentemente de sua teorização posterior) surgiu, analogamente à documentação, da necessidade de dar tratamento à literatura científica menos convencional, com florescimento da pesquisa nas últimas décadas. A proliferação de revistas científicas e a produção exponencial de artigos científicos — agora também em línguas vernáculas, em quase todos os países do mundo — é um fenômeno bem definido.
Como conseqüência da produção e do crescimento do mercado consumidor da referida literatura, a "indústria do conhecimento" originou a "indústria da informação" a partir da oferta de produtos e serviços de bibliografias correntes, de serviços de alerta (current contents, entre eles), de resumos, de bibliotecas especializadas, de disseminação seletiva da informação, de provisão de cópias de documentos e, mais recentemente, bases de dados em linha, bibliotecas virtuais, etc. Crescimento paralelo, é óbvio, ao crescimento do número de universidades, dos centros de pesquisa, da pós-graduação, do uso da informação por setores industriais dependentes da inovação tecnológica, e assim por diante.
O tratamento intensivo dessa fantástica massa documental levaria, obrigatoriamente, à percepção de suas características, sua tipologia, suas particularidades. Seu ritmo de crescimento, seu percentual crescente de obsolescência, os seus meios de comunicação, sua repetitividade e sua propagação epidemiológica, sua pertinência e sua relevância frente a demandas específicas, sua extensão, objetividade, suas citações em cadeia, traduções e metadados, sua estocagem e distribuição, seus níveis diferenciados de leitura e hermenêutica, sua utilidade, valor, custo e preço e uma infinidade extraordinária de aspectos serem observados para orientar a criação de normas, procedimentos, leis e direitos. Para garantir seu melhor e mais apropriado aproveitamento social, sua preservação, seu fluxo comercial, para garantir sua função social. Para estudar seu mercado, seu público, seu marketing; suas patentes, direitos autorais; os financiamentos, concessões de uso e todo o seu processo de reconhecimento e validação pelos pares, pelas academias, pelo público em geral.
São inúmeros os aspectos a serem considerados na análise dos fenômenos próprios do Mundo 3 enquanto que o seu desenvolvimento trará novas abordagens, novas formas de difusão e uso. A questão dos métodos, das tecnologias aplicadas à pesquisa, das linguagens e das codificações, dos suportes documentários, do controle bibliográfico da produção científica, de sua conservação, exegese e avaliação é tão antiga quanto a prática da própria ciência na história da civilização. Ela vem sendo abordada desde os primórdios da atividade filosófica e científica, com interpretações e soluções em constante evolução ou transformação. A teoria popperiana “apenas” facilita a identificação do problema, ao isolá-lo como categoria fenomenológica.
O que é também novo é o sentido global da questão, como um "mundo" próprio em que ficam perceptíveis as inter-relações sistêmicas do fenômeno em estudo. Fica evidente que a ciência se dá através de uma linguagem específica — que está em mutação por causa de novas teorias e de novas tecnologias —, que compreende técnicas e estilos diferenciados conforme as origens e épocas de seus estudos, que depende dela mesma (como insumo) para seguir crescendo, enfim, que na sua diversidade de formas e métodos também está a sua unidade. Tudo soma em um sistema complexo cujas partes dispersas compõem mosaico; peças aparentemente desconexas devem ter alguma relação entre si, alguma continuidade. E que as partes, além de — potencialmente — serem interdependentes, podem ser relacionadas para criar/produzir novos desdobramentos. Na prática, é o que estamos presenciando: a transposição de experiências, técnicas, processos, etc, de umas disciplinas para outras, sem preconceitos e (quase?) sem limites, num processo de hibridização sem precedentes — "especialistas eruditos sem dúvida, haviam compreendido, por sua própria conta, que cada porção do seu saber parece também com o casaco de Arlequim, cada um trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras ciências e, às vezes, de todas, quase". (Serres, p. 5).
A Ciência da Informação, como disciplina científica empenhada em linhas de pesquisas cada vez mais abrangentes — antes direcionadas apenas para o estudo da literatura cientifica, agora para outras categorias de registros do conhecimento — também vale-se da interdisciplinariedade no trato dos problemas de informação, e recorre a métodos e teorias de outras disciplinas enquanto que suas próprias metodologias — citemos o caso da bibliometria —começam a ser utilizadas por outras áreas do conhecimento. Cienciometria, Infometria e Webometria são denominações ou variações de um mesmo filão de pesquisa suscitado pelo Mundo 3.
Em busca de resultados sociais
Como a ciência conforma-se numa atividade social estratégica, a profissionalização do cientista (e do artista) deveria ser uma preocupação de governos e empresas. Não há mais espaço, em tese, para o autodidatismo e o mecenato tradicionais.. .As políticas de desenvolvimento do capital humano devem privilegiar a educação em massa, inclusive para os domínios das ciências, das artes e dos esportes. Prenunciamos uma cultura de inclusão social abrangente, criadora de mercados de autosustentabilidade, em busca da maximização das potencialidades hl!manas, mas também em harmonia com o meio ambiente e os direitos humanos, não obstante as mazelas e as perversidades na distribuição planetária desses benefícios. O desenvolvimento cognitivo do indivíduo, que antes era crença estar restrito à infância e à juventude, pela Teoria da Modificabilidade Estrutural, de Reuven Feuerstein, passa a ser instrumentalizado em escala massiva através do emprego de instrumentos de aprendizagem mediada, fundamentalmente com apoio de educadores, mas também e sobretudo, com o uso e fontes de informação adequadas, para desenvolver a autonomia de aprendizagem de pessoas de todas as idades, inclusive aquelas marginalizadas e desprivilegiadas.
A conquista do bem estar social, de níveis de qualidade de vida superiores, das relações saudáveis entre as nações, vem sendo proclamado ou reclamado corno sendo um imperativo dos novos tempos. Yoneji Masuda (1982), o visionário japonês da sociedade da informação, acreditou que a informatização da sociedade, em curso desde meados do século passado, já estaria dando — ainda que geograficamente limitado aos países mais desenvolvidos — oportunidade para uma experiência coletiva mais participativa, interativa, e com respeito às minorias. A Teoria Geral de Sistemas também pode explicar-nos que não basta educar as elites, é fundamental desenvolver todos os estratos sociais para garantir a melhoria global do sistema social.
Pode parecer muito estranho aos mais desavisados que um estudo do método científico esteja preocupado m questões dessa natureza. Mas faz sentido. O conhecimento é visto como um bem social e a ciência como um fator de aceleração do desenvolvimento humano. A conquista do prêmio Nobel, ou do Oscar, da Copa do Mundo, do Mercado Global para os produtos nacionais, deve-se mais a um esforço coletivo de capacitação humana do que de gênios e superdotados. A conquista de medalhas olímpicas ou os recordes em produção científica fazem parte de um mesmo esforço civilizador, de desenvolvimento humano em larga escala, através de um trabalho intensivo de gerações motivadas e direcionadas em seu esforço criador, com o apoio do conhecimento em constante desenvolvimento. É assim também o caminho da prosperidade e da paz.
A proliferação de universidades, de centros de pesquisas, de grupos de discussão temática entre cientistas dá-se paralelamente à proliferação de organizações não-governamentais, de grupos solidários de voluntariados, de defesa de minorias, para garantir uma melhor distribuição de benefícios do crescimento econômico. Tenta-se transformar crescimento econômico em desenvolvimento cultural e social. Como nos disse Michel Serres: "Quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza, não correremos mais risco. Bela, a filosofia afasta todo perigo" (Serres, p. 143). O futuro da pesquisa científica está na resolução de problemas sociais, sem descartar os problemas próprios do Mundo 3, com o desenvolvimento das metodologias e tecnologias da pesquisa relacionados com o mundo da informação em geral e da informação científica em particular.
A Ciência da Informação estaria alargando suas as fronteiras, saindo dos problemas da informação científica para empregar seus métodos em estudos de informação mais abrangentes [4]) como recomenda a lógica da metametodologia que viemos defendendo ao longo do presente trabalho.
Metametodologia como conclusão
O aperfeiçoamento e a diversificação de métodos de pesquisa a avançam paralelamente — e também em conseqüência de — combinações de métodos oriundos das diversas áreas do conhecimento científico, amalgamando também suas abordagens qualitativas e quantitativas. Caso contrário, "seria perigoso que as ciências duras se fizessem passar pela única forma de pensar. Ou de viver", vaticina Serres que, além de filósofo da ciência é, por sua origem, um cientista. Serres parece temer a ditadura de um método castrador da renovação, inibidor da criatividade.
Nenhuma solução constitui a única solução nem tal religião, nem tal política, nem tal ciência. Resta a única esperança, de que esta última possa aprender uma sabedoria tolerante que as outras instâncias jamais souberam aprender e nos evite um mundo homogêneo, loucamente lógico, racionalmente “trágico" (Serres, p. 141-142).
Os especialistas estão sendo treinados em universidades e instituições de pesquisa, no domínio de "tecnologias metodológicas" que combinam teorias, leis, processos e métodos com instrumentações variadas na tentativa de levantar dados mais precisos, elaborar textos sofisticados e realizar diagnósticos cada vez mais confiáveis, em categorias de análise que abarcam do clássico pensamento positivista às novas lógicas quânticas, difusas, probabilísticas. O conceito de metametodologia é derivado justamente da constatação de que as metotologias que servem a urna ciência em particular, também podem, quando adaptadas para este fim, servir a outras disciplinas científicas, superando suas orientações e aplicações originais. Em tese, as ciências produzem metodologias próprias que transcendem seus limites imediatos, colocando-se à serviço da ciência corno um todo, conforme os postulados da filosofia mestiça que defende Serres e outros pensadores da Filosofia da Ciência.
Uma metodologia, nova ou antiga, está necessariamente relacionada com outras já existentes, conforme um os postulados da Teoria Geral de Sistemas — o de que um subsistema sempre afeta a existência de outros subsistemas, e vice-versa, ainda que não de forma reconhecível de imediato pelos seus praticantes. Na prática, uma nova teoria ou metodologia estaria colocando em discussão, de forma automática, outra(s) já existe e(s), ou, no sentido contrário, poderia vir a ser questionada por analogia com outras teorias/metodologias já existentes.
Tudo é experimentável, vivenciável, no concreto e no abstrato — mas sempre de forma objetiva —, dos estudos dos novos materiais aos experimentos com inteligência artificial, dos estudos genéticos aos transgênicos e aos implantes, à clonagem de seres, cujos limites nem a ética nem a lei conseguiram ainda equacionar em termos sociais e humanos de forma adequada. Quais são os limites sociais da nova ciência? Esta é uma questão para os filósofos, para os cientistas sociais, para os políticos. Em termos teóricos, parece não haver limites, apenas obstáculos metodológicos...
No marco da presente argumentação, quais os limites metodológicos da Ciência da informação? Em princípio, nenhum. Apenas os da capacidade de realização de seus pesquisadores, na medida em que todas as metodologias e tecnologias podem servi-la como, por definição, servem a toda e qualquer ciência. Sendo a Ciência da Informação uma ciência nova, sem tradição que a engesse ou condicione, ela pode, em tese, experimentar tudo. Os mais puristas vão cobrar uma identidade, um espaço próprio, um campo de exclusividade em termos de métodos e de resultados. Segundo a Teoria Geral de Sistemas — à qual recorremos, ao longo do presente trabalho, para hastear o nosso raciocínio —, as disciplinas participam de um conjunto, mas de forma interdependente (como vasos comunicantes tendo suas fronteiras e identidades, sempre em expansão contínua, por se tratar de um sistema social em desenvolvimento. Ou seja, no espaço e no tempo de um processo evolucionário que vai ampliando horizontes, assimilando novos métodos e abarcando novos temas. Tais limites não podem ser de restrição e de preconceitos, podem (e devem) ser de conquistas e realizações.
Notas
[1] A genialidade de Popper aproximou-o da de Einstein que acredita "na perfeita norma da lei dentro de um mundo de alguma realidade objetiva que tento aprender de um modo desenfreadamente especulativo" (Einstein, apud. Popper, opus cit. p. 175), querendo frisar a capacidade humana de perceber, na regularidade dos fenômenos, chaves para sua compreensão e decifração. Ou, se preferimos, nas palavras do próprio Popper: "Assim como compreendemos outras pessoas devido à humanidade de que participamos, podemos compreender a natureza porque fazemos parte dela. Assim como compreendemos pessoas em virtude de uma racionalidade de seus pensamentos e ações, assim podemos compreender as leis da natureza em razão de alguma espécie de racionalidade ou de necessidade compreensível inerente a eles" (Popper, p. 175 . E arremata, de forma decisiva no espírito da transdisciplinariedade que caracteriza a ciência da pósmodernidade: "compreender o mundo da natureza do modo pelo qual compreendemos uma obra de arte: como uma criação" (Popper, p. 175). E faz um desabafo, que bem poderia ter sido expresso por um Michel Serres: "Não há dúvida de que há demasiada especialização e demasiado profissionalismo na ciência contemporânea, que a tornam desumana" (Popper, p. 176).
[2] Ver: A Ciência da Informação e a Teoria do Conhecimento Objetivo: um relacionamento necessário", um dos capítulos da presente obra.
[3] O termo literatura tem vários significados. No caso presente, o mais adequado seria entendê-la com "um conjunto de textos de uma determinada área", capaz de oferecer ao cientista os conhecimentos para a solução do problema da pesquisa: também é entendido como "uma coleção de documentos" úteis para o pesquisador.
[4] Um exemplo disso seria o uso do método de estudos de colégios invisíveis e de comunicação científica para estudar, como já está sendo praticado, a comunicação social em comunidades carentes ou de grupos de empresários. Como já disse Popper em seu turno, "os que lutaram com um problema [científico] podem ser recompensados ganhando uma compreensão de campos bastante afastados dos que lhe são próprios" (K. Popper, p. 175).
Referências Bibliográficas
BERTALANFFY, Ludwig_von. General System Theory: foundations, development, applications. Harmondsworth: Penguin Books, 1973. 312 p.
BEYER, Hugo Otto. O fazer psicopedagagíco; a abordagem de Reuven Feuerstein, a partir de Piaget e Vygotsky. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1996.
FONSECA, Edson Nery da, org. Bibliometria, teoria e prática. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1986. 141 p.
MASUDA, Yoneji. A sociedade da informação como sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1982.
ORTEGA Y GASSET, José. Misión del bibliotecario. In: El libro de las misiones. Buenos Aires: Espasa-Calpe, 1940. P. 11-50.
POPPER, Karl R. Conhecimento Objetivo, uma abordagem evolucionária. São Paulo: Edusp/Editora Itatiaia, 1975. 394 p. (Espírito de Nosso Tempo, v. 1 ).
SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 190 p.
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