WALMIR AYALA
Walmir Félix Solano Ayala
(Porto Alegre RS, 1933 - Rio de Janeiro RJ, 1991)
Quando vivia no Rio de Janeiro, em minha juventude, encontrava-me com Walmir Ayala em eventos culturais da cidade, principalmente nos vernissages das gelerias de arte de Copacabana. Lia as críticas dele assiduamente. E seus poemas, de vez em quando, na imprensa literária. Não chegamos a ser amigos, infelizmente. Eu fui para a Venezuela e ele para o céu, como dizem. Agora eu volto a ele, através de sua poesia e compartilho minha admiração com os leitores. Ele merece. A.M.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
A MINHA MORTE SÃO AS COISAS
A minha morte são as coisas
e não poder retê-las,
é a matéria que existe
e resiste
à minha sorte,
como as estrelas.
A minha morte é a manhã
que se estende claríssima
sem temor, é este amor
de só desesperança,
como um clamor.
A minha morte é esta voz
por que a garganta enseia
e não sabe,
ela cabe
inteira nos meus olhos
que a lágrima incendeia.
Sobretudo é
esta vontade
de chorar e ir chorando
como uma única pergunta
sem remédio:
até quando?
CRER
Creio em mim. Creio em ti. Deus, onde mora?
Na vontade de crer que me consente
humano e ardente.
No meu repouso em ti, que me alimenta.
No que vejo e recebo, nesta vara
florida num deserto, em meu maná
de agora e de jamais. Saber-me hoje
tão digno do tempo que me mata
é arder-me em Deus, e este saber me basta.
ISTO É TUDO
As urnas estão fechadas,
os corações estão mudos,
mas o amor paira e condena —
isto é tudo.
As mãos vão entrelaçadas,
o olhar é sereno e agudo,
e o amor é mais do que as almas —
isto é tudo.
A lágrima quase aponta,
O desejo é um breve escudo,
e o amor é quase nada —
isto é tudo.
PENHOR
Quanto pode valer um pássaro
de canto puro e goela solta
que gosta de carícia e se espreguiça
como qualquer amado amante?
O dono levou-o à penhora
por trinta e oito mil
cruzeiros. Diz
que vale o dobro.
Avaliado, não dá mais do que mil e quinhentos
diz o causídico do banco, e chama de brincadeira
esta causa de tão pessoal alcance.
Falando por seu advogado
o dono do pássaro diz
que o assunto é muito sério
e pede mesmo que o pássaro
seja tratado com carinho
pois cantando e recebendo amor
é que se prova valioso.
Neste poema, atentem, a palavra é tão banal,
mas o miolo é pura
poesia.
Difícil é contar como canta o pássaro.
Aí é que seríamos sublimes.
ARTE POÉTICA
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Porisso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
Extraídos do livro Estado de Choque; a poesia de Walmir Ayala. São Paulo: Galeria Parnaso; Massao Ohno Editores, 1980. s.p.;
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De
AYALA, Walmir. Águas como espadas. Poesia. São Paulo: LR Editores, Ltda., 1983. 72 p. 14x21 cm. “Prêmio Bienal Nestlê de Literatura Brasileira” 1982”. Desenho da capa: Octávio Araújo. Planejamento gráfico: Rogério Ramos. Col. A.M. (EA)
BAILE DE CARNAVAL
Dois meninos anêmicos se abraçam:
há um sonho animal que morre em seus olhos.
Assexuados, brancos, lavados e mortais
se abraçam e se ausentam.
Perto um anão transita.
Uma mulher duríssima vigia, seu coração é um dardo.
E o delírio é como um longo suspiro
de inventada agonia.
Falam de morte. O baile
é como um leque aberto,
colorido e aberto como uma chaga.
O baile é uma flor de pedraria e suor.
Rondam os corpos, se arrastam as almas.
Alegria, quando o teu nome foi mais desesperança?
TODO O MAR
Ferve a água no âmbito restrito
da panela.
Agonizante
despe-se o siri de seu dia oceânico.
Vermelha
a carapaça é como joia,
e as pinças
rígidas cortam a breve direção,
a extrema-unção do sal é seu tempero.
A carne
tensa
se oculta em cavidades
disfarçadas.
a gula agride estas cavernas vulneráveis
e o gosto do siri é todo o mar
A CAÇA
Os caçadores de homens varam a noite com seus olhos de punhal.
Levam os punhos cerrados cerrados e um desejo ardente de agressão.
Irmãos dos delinqüentes eles vasculham os ninhos poluídos
e esmagam com os saltos das botas as ninhadas perplexas.
Os caçadores e sua caça estão sobrepostos como camadas contíguas
de uma mesma era de terror.
ROTA
Quem elabora estas inúteis palavras
com que as coisas se ataviam,
e são indagações, gritos, silêncios
reticentes?
Quem,
me pergunta agora sobre a hora
que eu não quis habitar de qualquer signo,
infladas do nada do vento?
Direção
cujo gosto apenas eu percebo:
silenciosamente recortado,
recrio o labirinto.
PASSEIO
Passeio com meu filho pelo mundo
e é pouco para amá-lo este percurso.
Toco seus olhos de cristal escuro
e ele me vê robô, cavalo, urso.
Ele me vê raiz, me desafia,
briga e ama num elo conseqüente
com tudo os que é real, e me anuncia.
Passeio com meu filho à luz do di,
e a luz fecunda a noite que nos une
num sonho latejante de silêncio.
Concentro-me de amá-lo com a urna
guarda a alucinação de seu perfume,
e penso, piso a terra, restituo
em dom de amar a amarga antecedência
do filho que eu não fui e que construo.
De
CANTANTA
Poemas
Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.
O CORPO
Girasol com manga rosa
pequeno corpo acendido
no corpo imenso do mundo
cornamusa sonorosa.
Manga rosa, manga rosa,
rosa do clamor profundo
rosa, de fruto e de flor.
Eu de pedra, tu de incenso.
Tu de lume, eu de amargor.
Girasol com manga rosa,
muletas de mudo amor,
cada espádua madurando
sumos •— e a rosa cravando
no sono arestas do rosa
na doce manga aflorando.
Girasol com manga rosa,
repousa, que repousando
vão os andores da santa
rosa, e que te vão levando
pela doçura da manga,
pequena rosa que gira,
sol a pino, gira, rosa
mortal te dilapidando.
Girasol com manga rosa,
qual o verão? Onde? Quando?.
PROTESTO
Não é no teu corpo que se imola
para a ceia dos meus sentidos
a vítima núbil, a áurea mola
que cinge o amor recente aos idos.
Mas é também no teu corpo que corre
o sangue que o meu sangue socorre.
Não é no teu corpo que se ergue
a guerra fria dos meus nervos.
nem nasceram tuas transparências
para a cegueira dos meus dedos.
Mas é também no teu corpo insano
que perscruto meu desconforto humano.
Não é no teu corpo, nos teus olhos
de fauno, que colho as minhas ditas,
nem o jasmim de tua boca flore
para a visão que me solicita.
Mas é também no teu corpo único
que o amor à forma do Amor reúno.
Não é no teu corpo que concentro
minha sede (esta sede ferina
que morre de seu farto alimento
e vive de quanto se elimina)
Mas é também teu corpo a medida
destas águas sobre a minha ferida.
Não é no teu corpo, mas é tanto
no teu corpo meu último refúgio,
que amoroso e em pânico me insurjo
contra a fonte que és: júbilo e pranto.
Mas é também no teu corpo o tudo
da solidão em que me aclaro e escudo.
Em teu corpo, canal que brande e acalma
minha alma, este pássaro árduo e mudo
na estranha migração da tua alma.
De
O EDIFÍCIO E O VERBO
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961
O COMEDOR
Não sei que posição tomar sentado à mesa.
O cadáver aberto à minha frente, a salsa, o azeite
e o olhar de quem me chamará de hiena.
O cadáver de meu irmão, olhos vazados,
posição hirta, e eu como trincar
assim, todo enredado de piedade?
Garfo e faca. A lâmina se estira
e nem ruído fará na polpa. Ah, bom tempero,
sei de teu gosto intacto nas mandíbulas
minhas, já tão cansadas desta fome.
A parte mais amorfa me contenta
a que eu não saiba coxa, orelha, lombo...
Mas chamarão de hiena, eu sei, a gente
que te come voraz, vendo que hesito
e gritarão quando cravar
dente em teu corpo macio, irmã Vitela..
Saio daqui, da mesa, onde te expões
nadando o molho do teu próprio sangue.
Eu me recuso, pois teu osso como um cetro
esmagará meu crânio deglutido,
e eu, teu devorador, sendo engolido
pelo acéfalo tempo, mais banquetes
manterei nestas mesas imaturas.
O REINO
A José Olímpio Vasconcelos
Época de goiabas — no meu quarto
o aroma delas se incrustou no gesso
do cavalo troiano que o lagarto
cavalga; e estas goiabas de começo
de estação sobrenadam o hausto farto
do olfato — o meu cavalo escarva o avesso
do branco onde se funde e em cujo parto
goiabas e lagartos têm seu preço.
Assim meu quarto esta estação de aroma
envolve — e das goiabas me apercebo
que é tudo hora frutal que em tudo assoma;
e tenho para reino os meses quatro
do aroma de goiaba, e é minha carne
o gesso em que cavalgam tais lagarto
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De
PEDRA ILUMINADA
Rio de Janeiro: Pallas; INL, 1976
CLAVE
Quem empunha a chave
Por tantos cativos?
Quem meus olhos crave
Vivos?
Por romper a crosta
por romper o vidro
por sondar a asa
que me sonda o ouvido.
Quem, por esta chave
Me houvesse seguido.
Mas não, quanta côdea
De pão preterido,
Quanta água celeste
Do tempo chovido!
De ti, do teu nardo,
Nem menor gemido.
Por isso sozinho,
Amor, bebo e escuto
Meu cruel desamor
Não suprido.
INVENÇÃO
Se a rosa não
houver
imaginemos
no copo uma armadura
de silêncio
e remos.
Uma arma
pousada, um frio
em brasa.
Se a rosa não
houver
cantemos:
breve noite
entre o pensado
e o que vemos.
Ali
A rosa há da cor fervente
chá
de brasa e neve um todo ali
será
Se a rosa não
houver
cantemos.
LEOPARDO
Falar de morte e haver
no ar
este leopardo!
alvar, feroz,
em seu resíduo –
e rugir.
e estar presente no rugido
a longa triste larga floração
da morte.
Falar no tempo e abrir-se a asa
do infortúnio.
e termos como azul a juventude,
e termos o punhal do lado certo,
e termos a paixão e estarmos tontos
desta estação da morte
que nos funda
no mais alto dos pálios madureza.
Falar de morte e estar detido
este leopardo
AYALA, Walmir. Êste sorrir, a morte. Poemas . Rio de Janeiro, RJ: “Organizações Simões” Editora, 1957. 48 p. 11,7x17,5 cm. “ Walmir Ayala “ Ex. Biblioteca Nacional de Brasília
CISMA
Não era esta a face. Era a lã
macia, tinha ao meio
dois olhos tristes,
dois movidos astros
contra o Infinito.
Tinha abaixo um rasgo
que tanta vez segui, boca de asfalto
onde pisava firme a frase.
Não era esta a face. Hoje esta lança,
esta arrancada e sísmica raiz
rubra de vírus, hoje
a aviltada ronda...
Não era esta a face, esta desgarra
apascentadas pombas dos meus muros
e ofende a lisa inércia desta cisma.
Era de lã... não como agora,
ácida,
corroendo meu corpo contra o tempo.
Trazia-a sobre a mão, cristal de riso,
gota menor que a água e quase névoa...
Hoje soçobra em mim, por empedrados
silêncios deste monge que me exerce.
TEXTOS EM ESPAÑOL
WALMIR AYALA
Trad. Pilar Gómez Bedate
MI MUERTE SON LAS COSAS
Mi muerte son las cosas
y no poder asirlas,
la materia que existe
y resiste
a mi suerte,
como las estrellas.
Mi muerte es la mañana
que se extiende clarísima
sin temor, y este amor
de mi desesperanza
sola, como un clamor.
Mi muerte es esta voz
que la garganta ansía
y no cabe,
entera cabe
en estos ojos míos
que la lágrima incendia.
Sobre todo es
este deseo
de llorar e ir llorando
con una única pregunta:
¿hasta cuándo?
CREER
Creo en mí. Creo en ti. Dios, ¿dónde vive?
En el afán de fe que me consiente
humano y ardiente.
En mi reposo en ti, que me alimenta,
en lo que veo y tomo, en esta vara
florida en un desierto, en mi maná
de ahora y de por siempre. Este hoy saberme
merecedor del tiempo que me mata
es abrasarme en Dios, y esta saber me basta.
ESTO ES TODO
Las urnas están cerradas,
los corazones están mudos,
peor el amor paira y condena:
esto es todo.
Las manos van entrelazadas,
la mirada es serena y aguda,
y el amor es más que las almas:
esto es todo.
La lágrima casi apunta,
el deseo es un breve escudo,
y el amor es casi nada:
esto es todo.
Extraídos de la REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA, Tomo IV, septiembre 1965, número 4, p. 312-321. Edición de la Embajada de Brasil en Madrid, España.
AYALA, Walmir. A Pedra Iluminada. Rio de Janeiro: Pallas S. A. Editora e Distribuidora, 1976. 91 p. x. biblioteca de Antonio Miranda
PRENÚNCIO
Que coisa é esta que como um sangue
escorre pelo vale
sobre o qual estou sendo milagre de mim mesmo?
Aprendo — que só tenho este tempo em que inventei
eternidade,
beleza e superação,
e no entanto me arrastam como um corpo sem ânimo
pelos campos de espinho onde invento a alegria.
Mas sei que sou feliz, saber é minha glória
e disto que embriago:
como que um outro vinho
que amor com os pés esmaga.
AMO A LENTA PROMESSA DO FUTURO
Amo a lenta promessa do futuro
em teu passo.
Sei que estás, não te vejo —
retomo o labirinto da demência.
Dou armas ao desejo,
quebráveis mas visíveis;
colho o sumo da vida
para estações possíveis
em que estejas.
E porque estás futuro
na promessa e na espera,
invento a primavera.
ÁRIA BREVE
Entendo que as coisas se acabam
(é preciso entender a vida)
nada nos foi mesmo outorgado
mais que o plano da despedida.
Aqui estamos — amendoeira
entre os dois (um pássaro canta)
nem uma rosa subsiste
nem uma estrela se levanta.
Como a história do amor é triste!
O VALE
Entre os urubus devoradores
e a clara manhã de hortênsias
arde o vale.
Arde o céu sobre as águas, e o amor...
Arde o amor no silêncio das rosas
em mancheias brancas sobre o vale.
E arde o desejo, e as mãos sonham
massas aéreas que se debatem,
e tudo é festa no vale
claro, extenso vale do sol
que arde...
AYALA, Walmir. Os Reinos e as Vestes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 68 p. (Poesia Brasileira)
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
3
Os objetos ao meu redor
tramam um surdo motim.
O respeito divino estende-se nos séculos
para que a aranha teça o infinito labor
das teias, e ao mover-se
da mão sonde o prodígio.
Toco a superfície do vidro
e me surpreendo em perigo.
Projeto-me,
não mais nas cavernas,
e me maravilho
das formas criadas.
42
Nudez
Construo sobre as coisas um momento.
Os corpos dizem sim à esfinge nua
que se anula na pátina do tempo.
A pedra em luz no instante se transmuda,
o pensamento atua como ponte
entre a essência imbatível e o que muda.
Na caverna consuma-se o bisonte
mais vivo que na selva a perecível
forma da fera que era livre ontem
e hoje é despojo, floração secreta
da morte que se alteia como larva
onde a rosa do sangue é mais concreta.
E a unha que na argila o parto escarva
da imagem com que o medo se partilha
de pesadelo e liturgia parva,
delimita a fronteira de uma ilha
no vaticínio murmúrio do vento
que a alma ilumina, precursora e filha.
Construo sobre as coisas um momento.
47
A frágil luz do dia
contamina a paisagem.
No nítido desenho
das coisas cristaliza
o diamante invisível
que o presente irradia.
Visível se derrama
a frágil luz do dia.
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Página ampliada e publicada em junho de 2024.
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