»Fonte: www.palavrarte.com/Equipe/ajwanderley.htm
JORGE WANDERLEY
(1938-1999)
Um admirável poeta. Um grande tradutor. Um pernambucano erudito, como muitos de sua terra prodigiosa de história e de letras. Doutor em Letras e mestre em poesia... Seus livros continuam sendo lidos com interesse de descoberta e fascínio.
Dados pessoais e mais poemas de autor estão num verdadeiro relicário:
» www.palavrarte.com/Equipe/ajwanderley.htm
JORGE, Wanderley. Manias de agora. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1985. 73 p. 14x21 cm. Capa: Victor Burton. “ Jorge Wanderley “ Ex. bibl. Antonio Miranda
TEMA DA ROSA - l
Parecia uma rosa madrugando
Aquela rosa ali, naquele dia.
Era quando em redor amanhecia,
Porém sem Lugar-Onde ou Tempo-Quando,
Estava eterna e eterna parecia.
Não se sabia a luz que a estava olhando,
Ou se ela olhava a luz desabrochando,
Nem se era dela que esta luz surgia.
Nada movia em torno, mas da haste
Parecia vibrar, tensa e nervosa,
A onda de um acorde num segundo
Sonhando em rubro e alheio a seu engaste,
Que era a história das rosas numa rosa,
A rosa em si, dentro de si, no mundo.
PREFÁCIO
Que força move a mão que escreve?
Que moveu no passado
a mão dos outros?
Outra maior, disseram: - de Deus.
Maior, como a idéia do sopro divino,
da proteção contra a morte.
— Mas o que move a mão do descrente?
Que põe nela a garça,
a borboleta,
o veneno refinado?
— Algo que não se sabe, mas que é dentro.
Que não sendo vontade, quer.
E não sendo desejo, voa.
EPITÁFIO
Chegar já foi a partida.
De onde estive até nascer.
Viver só custou a vida.
Não custa nada morrer.
HOMENAGEM A FERNANDO PESSOA
Sou uma máquina de me ferirem
Os que aromáticos passam normais.
Eu sou dos Sebastiões que vocês virem
O das flechas católicas - jamais
O Sebastião de Alcácer-e-Quibir em
Batalhas de sanguíneos portugais.
Fui barco, sim e amei até ruírem
Por terra os mares que não sonho mais.
Toda a Mensagem, que me dessedenta,
Deixei num pergaminho que fratura
Os versos e as palavras, meus arcanos.
Desde a Tabacaria à nevoenta
Ode Marítima, que eu quis futura,
Tudo se apaga quanto errei nos anos.
NA VÉSPERA
Porque o cansaço tem ruas de sono
Conseguirás agora adormecer.
Tudo anda mal nas coisas que abandonas;
Em solo ingrato a noite vai descer.
Que traga a paz imensa que ambicionas,
Sem sonho algum; para não conceber
Meias-vidas sem rumo onde és o dono
Do que não queres, de insano poder.
Que a lida agora interrompida, amarga,
Possa passar a um outro espaço-tempo,
E volte nova dos frios astrais.
Que esqueça longo o peso, a dor, a carga,
O mal que te contempla e que contemplas.
Se assim não, que não acordes mais.
LEAR
Meu receio é nenhum e é imenso,
Nenhum reino doei às minhas filhas,
Nem reino tive
E não teria filhas se reinasse.
Teria vinhos ácidos na mesa
E um cão feroz que um dia me matasse
Para galgar a minha realeza.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 8 . Número 12 . Maio 2000. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2000. Ex. bibl. Antonio Miranda
POEMAS PARA 2000
(inéditos do autor)
homenagem (des) a. m. b.
Ó Indesejada
nem tão indesejada
pode vir como libertação
da ingratidão final
diria o rei Lear
a cura para o punhal de Brutus
para os dentes mais afiados que os da serpente
os da thankless child
(Shakespeare não saberia disso|
se não o tivesse sofrido na carne
na carne do verso rasgada)
tu
Indesejada nem tão indesejada
podes ser a mão do alívio
na testa febril
a que fecha os olhos obstinados
na luz que é luz mas fere e cega
podes anular os cravos da cruz
saciar o desejo de vingança
que tira o sono
podes ter sido a paz
das que se suicidaram nas águas
podes ter sido a pureza da água
fim da culpa
e do remorso
encontro amável para os amigos
que subiam a montanha
para terminar ali
para os que vão sem desespero
mas resignados
sabendo que nada vai mudar
que a casa não está nada arrumada
e que a terra vai girar melhor
sem eles
melhor
sem nós
Direto
Um soluço
de noite
e você percebe
que poderá ser assim
em qualquer noite
a passagem
sem escalas
sem tempo para as lembranças
para os degraus da escada
os que deram prazer
e os insuportáveis
se for assim
sem o inventário
das mortes prévias
e a rara estrela
até que vai ser fácil
se for assim
num soluço
direto para o fogo
Quem propiciou o mar aos suicidas
Quem propiciou o mar aos suicidas
não se diga sofrido num madeiro:
pior ainda, propiciou suicidas
e suicida buscou este madeiro.
Sabia que lá estava o fim da vida
e foi morrer como se vão cordeiros:
erguida morte deu à erguida vida
como se assim fosse menor cordeiro.
Mostrou que é farsa perseguida
por todo homem: — não sofreu primeiro
nem sofreu mais; nem foi mais perseguida
a farsa que viveu: fosse o primeiro
entre tantos que vamos na subida
para este mar de morte e traiçoeiro,
pudera estar sofrido na subida
para o madeiro. Esteve traiçoeiro
também ali e em passos pela vida,
na queda em casa passo do roteiro.
Triste a vida e o seu mar que espera a vida,
farsa triste a que quis, triste roteiro.
Esses chopes dourados
Verdes bandejas de ágata, meus olhos amarelos
caminham para mim pela milésima vez
enquanto estou cercado por brancos azulejos
e amparado por uma toalha de quadros.
No útero deste bar vou me elevando
e saio da noite cheia de ruídos
para a manhã do mar
onde tudo é sal, impossível alquimia
disfarçada num domingo.
Amável,
esta manhã me aturde, manhã de equívocos
onde um sábado moribundo se entrega sem rancor.
Meu sábado, belíssima ave negra de olho aceso,
cai nas muralhas do sol como um herói melancólico
enquanto o mar abre o sorriso de dentes brancos
lavados na areia alvura.
Caminho para o sol que me atrai mecanicamente:
— Vou te decifrar, domingo;
diante de mim tua esfinge se enche de pudor.
quando a geração de meu pai
batia na minha
a minha achava que era normal
que a geração de cima
só podia educar a de baixo
batendo
quando a minha geração batia na de vocês
ainda não sabia que estava errado
mas a geração de vocês já sabia
e cresceu olhando a geração de cima
aí chegou esta hora
em que todas as gerações já sabem de tudo
e é péssimo
ter pertencido à geração do meio
tendo errado quando apanhou da de cima
e errado quando bateu na de baixo
e sabendo que apesar de amaldiçoados
éramos todos inocentes
|
WANDERLEY, Jorge. Homenagem. dez sonetos. Rio de Janeiro, RJ: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1992. 13 folhas soltas. 15X21 cm (Poesia na UERJ) Programação visual: Sidney Rocha. Ex. bibl. Antonio Miranda
Borges sonha um soneto
Aqui no laborioso descansar
Pelas ondas do sonho concebido,
O habitante maior - o antigo mar -
Longa história repete, fementido:
Da gramática mítica ao pomar
E ao fruto das Hespérides colhido,
Tudo é proposto a sorte: e o despertar
Pode à Sorte maior ser preferido.
Todo o heróico tumulto se resigna
A persistir num corpo que partilha
Com louça cotidiana o seu lunário.
A sombra, a onda, a dúvida consignam
O barco ameaçado desde a quilha
E o velame em suor cobre o cenário.
Homenagem a Umberto Eco
(...)
Se se apagasse a rosa desses livros
e a rosa sua igual desses jardins,
talvez jardins e livros resumidos
na grande rosa de inessência vinda,
também sumissem, faltos de razão
para existir; se os campos já vazios
não se dessem de novo a mais ninguém,
talvez algum vadio desavindo
consigo mesmo as coisas se dissesse
numa folha de folhas que encontrasse
e os livros se fazendo desde um nome
dessas folhas e ramos renovasse
pelo nome da rosa a mesma rosa.
|