Quem viveu aqueles tempos sabe do que estou falando... O livro “O país do não chove” é o melhor exemplo do que eu intitulo “cordel engajado”. A publicação não tem data mas deve ter sido editada no segundo semestre de 1961, ou início de 1962. Dedicado ao Presidente João Goulart, por ter “talvez a última chance histórica de recuperar o Nordeste preterido, expoliado e pré-separatistas]”. Mas Homero Homem não pode ser taxado de populista na poesia. Defendia a revolução social e também a estética “como necessidades permanentes do Homem”, fazia pregação política mas sem descuidar seu “dedo estético”, como dizia.
Certamente que sua obra ajudou a fazer história, na transição de nossa poesia que, em seu tempo, debatia-se entre os estertores do nosso melhor modernismo e os mais ativos vanguardismos e experimentalismos. É certo que já havia o trabalho independente de João Cabral de Melo Neto, com seu verso seco, a pautar a relação do modernismo (e de um certo surrealismo) com o cordel nordestino, como modelo para toda uma geração. E Homero Homem não escapava à regra mas buscava caminhos estéticos próprios. Os dois poemas escolhidos são, a nosso critério, os melhores do livro e merecem ser lidos pelas novas gerações. Sem dúvida, “Sobre Cacilda Preta. Por fome” é o melhor de todos, digno de constantes releituras. Antonio Miranda
HOMEM, Homero. O país do não chove: poesia com endereço. s.l.: s.e., s.d. 16x24 cm. Col. A.M. (EA)
Cacilda. Preta. Por fome
(essa fome nordestina
sergipe de tão comum)
Cacilda preta, por fome
de comida se dá toda.
Por amor só da a um.
Mau comércio de Cacilda.
Cacilda dorme com todos
mas acorda sem nenhum.
Vigarice de Cacilda
pelas Lapas do sol posto
cavando seu desdejum:
se espoja em cama de vento
apaga a vela a Ogum.
O corpo vira cem pratas.
Com vinte de safadeza
Mais dez de semvergonhice
Cacilda compra pimenta.
Meia-noite janta atum.
Ah profissão de Cacilda
que deita por feijão preto
e nana por gerimum.
Deita, Cacilda. Deitada
a fome quebra o jejum.
Cacilda preta expedita
polvilha pele e axila.
Com talco leite de rosa
desodoriza o bodum.
Cacilda preta expedita.
Sempre fatura algum.
Cacilda negrinha à toa
Mulher de Cosme e Doum.
Com fome se dá a todos.
Jantada, só dá a um.
No País do Não Chove, meu país
o principal transporte é a alpercata
no pé do rompe-légua. Quando a seca
- malino bel zebu de corno aceso
e descarnado rabo de tatu –
põe-se a chupar o chão pelo canudo
de língua fulminante de mil voltes,
morre no calcanhar do retirante
a esperança hidrelétrica do povo
chorando um São Francisco que não vem.
Isso na seca. Se chove
de Aracati a Goiana
pela vasante dos rios
circula a cana caiana
puxada a carro de boi
ou pela tração humana.
Já renasce a gramínea em campo verde.
Soa longe o zambê bem compassado
do trator no trabalho. Moto-bomba
cantando seu martelo agalopado
esparge o alvo lençol de uma ribeira
pelos vales e leiras e o alagado
onde singra o comício de marrecos
grasnando a uberlândia dessa várzeas
ao simplestrondo vivificador
do corisco invernado.
Assim é o brejo chovido
como o sertão lavrador.
Mas na costa faça sol
Ou verta o céu, meu senhor
- em cima de cinco paus
anda por mar baralhado
de ventos e temporais
um coringa pau mandado
sem profissão definida
que nasce morre na lida
chamada de pescador.
Com cem braças de linha
tecida de uma sede
de sangue em seu anzol
sonha arpoar o sol
- badejo malfazejo
arraia purpurina
moréia flamejante
cação descomunal –
e ir vende-lo em posta
nos portos desta costa
d´África nordestina
que é o nosso litoral
MINHA FILHA
A Maria Elisa
Minha filha nasceu de madrugada.
Com seu canto,
um pássaro flertava a estrela-dalva
e assim nascia o dia – e minha filha.
Botão de rosa, pétala de choro
Ferindo cerne mãe, roseira mansa
Em ofego e trileno enraizada,
Minha filha nasceu. Pajem da aurora
entre roupagens lívidas, assépticas,
meu braço rude aconchegou seu grito,
claro fragor no vidro da manhã.
Minha filha nasceu de madrugada,
corola pequenina aberto ao próprio
pólen do pranto, selo de existir.
SONETO PARA ANA MARIA INFANTE
Não o leite que sugas. Nem o pão
que ainda não precisas.
Desajeitadamente minhas, são
apenas duas mãos que te seguram.
Apenas duas mãos, servas da gleba
e pajens de uma aurora que persigo.
Apenas duas mãos e são os leves
dados do jogo que ensaio contigo.
Apenas duas mãos. Mas sendo minhas
são ternuras caladas, envoltórios
e antenas de captura de teu sono.
Apenas duas mãos. São teus pomares
entre terras que fogem, que recolho,
que liberto de mim e que te ensino.
CANTAR DE AMOR
Como te louvar, Merecedora
se a teu lado
consigo apenas solfejar:
te amo.
Te amo, digo simplesmente e estéreo-afônico
fico a repetir, te amo.
Ah, silêncio,
caverna musical dos namorados.
Dentro de ti, escrínio de meu eco
e estalactite tomba pingo a pingo
e balbucia murmura:
te amo.
Ah signo de existir.
Modulação-sonar de maravilhas
frescas e eternas como flauta & vento
muro serpe macã homem mulher;
numa casa-jardim, antigamente
alguém, inaugurando a lei da transgressão
disse a alguém — “te amo”
e tudo começou e recomeça.
Milionário da repetição,
te amo, pois, repito eternamente.
E esses pobres sons
audíveis só em nós, mas carregados
de luz intensa da Revelação,
são meu cantar de amor
ou tua voz?
HOMEM, Homem. Rei sem sono e outros poemas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. 100 p. (Coleção Temposesia, 5) 11,5 x 18,3 cm. Capa de Rubens Gerchman.
CANTO DO MAR
A Haroldo Barbosa.
Sou (fui) um oceano.
Tive ilhas remotas encantadas
E golfos os mais persas: tive sórdido
Paul, área interdita
Ao comércio do peixe e da gaivota.
Memória de outro céu (Deus era esponja)
Em meu dorso de brisas circulava
Recém criado azul mediterrâneo.
Deflorava na praia a lua nova
Nasciam sernambis e pitangolas.
Meu fichário de águas guarda ainda
Atlântico cemitério onde repousam
Bujarronas, velames e sextantes
Ânforas de barro reacendendo a vinho
Espadas de Toledo
Torres do Tombo
Ouro dos Brasis.
Sou (fui) um oceano:
'Rinha naval do choque de espadartes
Ravina mineral (chão da enchova)
Manjedoura do peixe cachalote
Jardim com seus repúdios de golfinho
Casa do parto anterior ao homem
Com suas garatéias e noticias.
HOMEM, Homero. O Luar potiguar. Poesia. 1ª. edição comemorativa do luar de agosto. Rio de Janeiro: Presença ; Natal: Fundação José Augusto, 1983.
89 p. 14x21 cm. Inclui duas introduções críticas à obra poética de Homem Homem”, por Wilson Martins e Gilberto Mendonça Teles.
13
A Nilo Scatzo
Chegou agosto, quero ver seu rosto
de lua cheia me sorrir no ar.
Chegou agosto. Quero ver a rua
Toda de branco, como a madrugada
com sua entrega do leite e do pão,
na copa branca onde faz luar.
Chegou agosto. Quero ir ao parque
dojasmineiro que vestiu esfola
de pétala e renda e perfuma o ar.
Chegou agosto. Quero ver seu dente
de peixe-serra sacudir a linha
do horizonte e pular no ar.
Chegou agosto, quero ver seu dorso,
a barbatana, a nadadeira branca
furar a onda e se liquefazer.
Chegou agosto. Quero ver de novo
o peixe raro, claro de doer,
que traz nos olhos pneus de banda branca,
Sangra luz de farol pelas escamas.
E cada ano, a trinta e um de agosto,
numa praia deserta vai morrer.
HOMEM, Homero. O Livro de Zaíra Kemper e Poesia reunida. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1972. 201 p. 14x21 cm. “Em convênio com o Instituto Nacional de Livro/MEC.” Col. A.M.
A PASSAGEM DOS PEIXES
Em novembro no mar a calmaria
flutua em água azul uma gaivota
que por falta de vento se extenua
à passagem dos peixes e das horas.
Em novembro se faz minha jornada
vinte milhas ao sul, fora da barra
ao secreto parcel das águas claras,
mar do marlim, morada da albacora.
Em novembro do mar quando retorno
à praia carregando meu ocaso
de peixes já contados e demoras,
vinte milhas ao sul fora da barra
lanço ao mar minha tábua de marés
e me recolho a ti por uma aurora.
Veja também o E-BOOK: http://issuu.com/antoniomiranda/docs/homero_homem/1
HOMEM, Homero. Homero Homem. Jaboatão, PE: Editora Guararapes, 2015. 28 p. ilus. col. 20x13 cm. Inclui: Apresentações de Antonio Miranda e Rubens Nogueira. E o texto de Homero Homem ”Sobre Cacilda. Preta. Por fome.” Editor: Edson Guedes de Morais. Edição artesanal, tiragem muito limitada. Ex. bibl. Antonio Miranda
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TEXTOS EN ESPAÑOL
POEMAS EXTRAÍDOS
de la REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA
(N.42, DICIEMBRE 1976)
Embajada de Brasil en Madrid.
Traduções de HILDON ROCHA
MI HIJA
A Maria Elisa
Mi hija nació al amanecer
en su canto,
un pájaro flirteaba com la estrella del alba.
Y así nacieron el día y mi hija.
Botón de rosa, pétalo de llanto,
hiriendo carne madre, rosal manso
em ahogos y trinos enraizada,
nació mi hija, pajé de la aurora,
entre ropajes lívidos, asépticos,
mi rudo brazo abrigo su grito,
claro fragor em el cristal del alba.
Mi hija nació al amanecer,
corola pequeñita abierta al próprio
polen del llanto, marca de existência.
SONETO PARA ANA MARIA INFANTE
No es leche lo que chupas. Ni es el pan,
que aún no precisas:
desastradamente mias, son
apenas dos manos que te prenden.
Apenas dos manos, siervas de la gleba
y pajés de una aurora que persigo,
son apenas dos manos, son los leves
dados del juego que ensayo contigo.
Apenas son dos manos. Mas, por mías,
son calladas ternuras, envoltorios
y antenas de captura de tu sueño.
Son apenas dos manos. Son tus huertos
entre tierras que huyen, que recojo,
que libero de mi y que te muestro.
CANCIÓN DE AMOR
!Como alabarte, Merecedora,
si a tu lado
apenas consigo solfear:
!te amo!
Te amo, digo simplemente; y, estereofônico*,
Sigo repitiendo: te amo.
Oh! Sslencio,
caverna musical de los enamorados.
Dentro de ti, estruche de mi eco,
la estalactita cae, gota a gota,
y murmura:
te amo.
Oh! señal de existência.
sonora modulación de maravillas
frescas y eternas como flauta y viento,
muro, sierpe, manzana hombre-mujer;
en una casa-jardín, antigumente,
alguien, inaugurando la ley de la transgresión
le dijo a alguien: “te amo”
y todo comenzó y aún recomienza.
Millionario de la repetición,
te amo, pues, repito eternamente.
Y esos pobres sonidos
sólo audibles en nosotros, mas cargados
de la intensa luz de la Revelación,
son mi cantar de amor
¿o son tu voz?
Página ampliada e republicada em novembro de 2007. Ampliada e republicada em maio de 1014.