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GUILHERME FIGUEIREDO
(1915- 1997)
Polígrafo. Nasceu em Campinas, São Paulo. Participou do Movimento Modernista de 1922 e notabilizou-se principalmente por suas peças teatrais que obtiveram muito sucesso, principalmente Um Deu dormiu lá em casa (1949) e A raposa e as uvas (1953). Publicou poucos livros de poesia: Um violino na sombra (1938), sua estréia nas letras, Ração do abandono (1974) e Pássaro Quebrado (1983), do qual extraímos o poemas a seguir.
(O Gesto do Adeus.
Seleção)
Quero teus dedos no meu travesseiro
No instante em que eu disser adeu
Que será teu primeiro e derradeir
s ao mundo
No instante do gemido moribundoo.
Quero teus dedos nos meus olhos quando
Tua imagem fugir-me do horizonte
E meu último olhar a olhar te conte
Que foi único olhar o estar-te olhando.
Quero meu sopro no teu rosto aflito
Meu frio e meu calor já sem alento
Hálito em vão levado pelo vento
A gritar-te o silêncio do meu grito.
Põe tuas mãos nas minhas de tal jeito
Como um ramo de flores no meu peito.
Jazes. Ninguém recorda o teu passado
Teu dedo delator teu riso absorto
Quando bastava um gesto delicado
Para que um homem fosse vivo ou morto.
Há pranto ao teu redor. De cada lado
Da tumba por escárnio todo um horta
De flores te agasalha com cuidado
Pela primeira vez flore um aborto.
Quanto choro por sobre os intestinos
Que exalam tua lepra cotidiana
De gases deletérios e mofinos !
E enquanto um necrológio alguém desova
Penso em tudo que foste seu sacana
Abro a braguilha e mijo em tua cova.
Nas tocaias de amor amor não poupa:
Posto em sossego andava: recebi
Uma carga de amor à queima-roupa
(A queima-coração, vinda de ti).
Ia quieto na vida em minha estrada
Pensando em vidas que jamais vivi;
Súbito vem dos céus uma pancada
De ver estrelas (ou de ver-te, a ti).
Dormia sem ter sonhos; nunca os tive.
Que difícil sonhar-te! Só te vi
Quando me despertaste: Vive! Vive!
Desfiz-me em sonho e nunca mais dormi.
Que bem fizeste, que mal fiz a ti?
Tu me ressuscitaste ou já morri?
FIGUEIREDO, Guilherme. Ração de abandono. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1973. 82 p. 14x21 cm. Capa: Guy Joseph. Impresso na Impressora Brasileira. Col. A.M.
SHAKESPEARE, XXIII
Como imperfeito ator que galga a cena
E por medo ultrapassa o desempenho,
Ou diz nervoso a fala mais serena
Pois emoção lhe sobra e não engenho,
Eu também por temor tampouco tenho
Fala a falar de amor a fala amena
E no rito de amar tanto me empenho
Que minha exaltação só me condena.
Sejam assim meus livros a presença
Do mudo som trancado no meu peito
Pois quem pede no amor a recompensa
Mais que na sua voz está seu pleito.
Aprende a ouvir o que o silêncio exprime:
Ouvir amor com os olhos é sublime.
SHAKESPEARE, LV
Nem mármore ou dourados monumentos
De reis viverão mais do que estas rimas:
Brilharás nestes lúcidos acentos
Além da suja pedra onde te encimas.
Quando as guerras tombarem as estátuas,
Arrancando as raízes do granito,
Nem Marte com seu fogo e as armas fátuas
Matarão a memória do meu grito.
Contra a morta, e o total esquecimento,
Caminharás eterna nos meus versos
Que te exaltam, momento por momento,
Nos olhos mais distantes e dispersos.
Se contam teu futuro sem o serem,
Vives dentro de todos que me lerem.
ANTOLOGIA DOS POETAS BRASILEIROS BISSEXTOS CONTEMPORÂNEOS. Organização: MANUEL BANDEIRA.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996. 298 p, 12 x 18 cm.
ISBN 979-85-209-0699-O Ex. bibl. Antonio Miranda
“Bissexto é todo o poeta que só entra em estado de graça de raro em raro.” MANUEL BANDEIRA
POEMA DA MOÇA CAÍDA NO MAR
Mário de Andrade, depressa
A moça caiu no mar
A MOÇA CAIU NO MAR!
Não estão ouvindo vocês?
Vamos todos, vamos todos.
Venha quem quer ajudar.
Murilo põe na vitrola
Um concerto de Mozart,
Sobral Pinto mande cartas,
Brigadeiro desça do ar,
General chame os amigos
Que a moça caiu no mar.
A moça caiu no mar,
Já sente gosto de sal,
Seus cabelos estão feios,
Chamai Tristão pra rezar.
Vêm os peixes fluorescentes
Comer-lhe os dedos da mão;
Vem doutor Getúlio Vargas
Devorar-lhe o coração;
Vem os peixinhos do DIP,
Os peixes dos Institutos,
Peixões da Coordenação.
Chico Campos, Góis Monteiro
Receitam constituição
De 37 – não, não!
Se ela não morre afogada
Morrerá dessa poção.
Marcondes Filho oferece
Uma complementação.
Ah que vontade que eu sinto
De dizer um palavrão.
Amigos por que esperais?
A moça caiu no mar!
Palimércio, Palimércio,
Traze a tua legião,
Ressuscita Castro Alves,
Vejam todos quantos são,
João que chame Maria,
Maria chame João,
Venha o homem pequenino,
Que mora numa prisão,
Venha também meu irmão,
Meu pai, você nem precisa
Fazer mais revolução.
Chamem todos os meninos,
Homens, feras, militares,
Doutores, gênios, muares,
Professores, funcionários,
Sujeitos que não têm carne,
Mulheres que não têm pão,
Pretos, brancos e mulatos,
Venham todos, venham todos,
Aqueles que têm razão,
Prostitutas, engraxates,
Estudantes, marinheiros,
Carpinteiros, fazendeiros,
Operários, bailarinas,
Donzelas, estivadores,
Pobres e ricos, pois não,
Vamos todos dar a mão
Que a moça caiu no mar!
Chiquinha toca o abre-alas
Que nós queremos passar;
Não posso esperar mais não,
A moça caiu no mar.
Ah! quem a pode salvar?
Santo Onofre, São João,
Companheiros, camaradas,
Venham todos ajudar,
Que a moça está se afogando,
A moça caiu no mar!
Página publicada em junho de 2020
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