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EM VISITA A LIMA, PERÚ, QUANDO APRESENTAVAM A PEÇA TEATRAL
“TU PAÍS ESTÁ FELIZ” DE ANTONIO MIRANDA
28-03-1986
Voltei a Lima depois de 14 anos desde a última visita, e encontrei a cidade em estado de sítio, com patrulheiros pelas ruas durante a madrugada. Necessitei de um “salvo conducto” para chegar ao hotel em Miraflores, passando por várias inspeções intimidantes no trajeto.
Meu objetivo era o de participar, na condição de conferencista, em um “Seminario Taller Multinacional sobre Información y Documentación Educacional”, organizado pelo INID/M.E., com o patrocínio da O.E.A. Encontrei Lima bastante mudada, com muitos edifícios novos, uma moderna via expressa atravessando o casco urbano e interligando seus bairros mais populosos.
O centro da cidade, felizmente, quase não mudou. Continuam lá os edifícios coloniais, as praças rodeadas de construções padronizadas segundo o conceito urbanístico do início do século, os camelôs indígenas vendendo bugigangas, a sequência de monumentos à sua Historia e aos homens ilustres. Os departamentos ou bairros de Lima têm muita autonomia. Miraflores, Lince, Pueblo Libre, Barranco são aglomerados humanos bem configurados, com sua prefeitura e vida própria. Lima é apenas o distrito central, primitivo, nascido às margens do rio Rimac.
A cidade conserva seus tesouros com orgulho. Desde as ruínas de fortalezas — huayas — no bairro de Miraflores até as zonas arqueológicas de Puruchuco, nas imediações. A cultura inca e a mochicana nazca são objeto de estudo e admiração, e suas relíquias estão em diversos museus.
Ao contrário, os descendentes dessas culturas, isto é, os índios, não têm muito prestígio social. São os “cholos” e vêm das montanhas e se locupletam nos bairros da periferia e contrastam com a cultura espanhola dos capitalinos.
Lima deve ter sido uma cidade opulenta na época da extração da prata e da exploração da pesca. San Isidro, Miraflores e Barranco ostentam casas no melhor estilo
belle-époque, art-nouveau e espanhol, com fachadas nobres esculpidas em pedras, torres e janelas mouriscas, pórticos e pátios trabalhados em ferro e bronze.
Revi Lima em quase toda a sua extensão, percorrendo de carro os novos bairros, as grandes avenidas, visitando alguns museus, seus melhores restaurantes (Las Trece Monedas, Vivaldi, etc), suas “chifas” chinesas, rodando pelas avenidas costeiras e seus pontos turísticos. Impressionou-me sobremaneira o contraforte em que se assenta a cidade, como uma pequena montanha de seixos rolados sedimentados ao longo de séculos e, sobretudo, o impactante cinza daquele monte sem vegetação que a circundam. Acostumado a ver montanhas verdes em rochas reluzentes nos trópicos, deparando com morros pelados e erodidos na fisionomia limenha, entre névoas constantes.
Lima vive as consequências climáticas de um fenômeno meteorológico único no mundo: não chove jamais. A corrente de Humboldt se choca com os ares que descem das cordilheiras andinas e dissipa qualquer nuvem de chuva. Existe uma poeirinha cinzenta no ar, empretecendo os edifícios mais antigos e só não se percebe a presença do deserto porque o lençol d´água subterrâneo possibilita o florescimento de árvores e flores tropicais nas grandes avenidas e nos quintais das casas.
Em viagens anteriores (1968, 1971) eu tive a oportunidade de atravessar todo o país, de Piura a Tumbes até Cuzco e Puno, passando por Lima e Arequipa, e visitando Macchu Picchu. A segunda visita, há quatorze anos, foi particularmente significativa para mim.
Comprei um jornal e descobri que estavam apresentando a versão peruana de minha peça teatral e musical “Tu país está feliz” em um pequeno teatro de bairro. Tomei um taxi e cheguei ao local na hora do início do espetáculo. As entradas estavam esgotadas. Identifiquei-me ao porteiro e acabei entrando. Não havia lugar para sentar e fiquei no chão, à entrada da arena. As luzes apagavam e em um fecho de luz desci sobre o ator e diretor do espetáculo — Mário Delgado. Ele falou da próxima viagem do grupo a Cuba e à Europa e anunciou que iria ler um novo poema da peça - um poema meu!!! — que havia recebido há pouco tempo, mas que não havia sido a ela incorporado dramaticamente. Era o poema “Autobiografia Tardía”. O poema apresentado era longo, com várias situações típicas da vida de qualquer jovem que tomara consciência de sua problemática segundo os valores e contra-valores em voga no final da década de 60, que se caracterizava pelo desencanto pelo “estableciment”, contra os dogmas cristãos, alheio ao patriotismo heroico e à repressão puritana.
De repente, Mário me reconheceu no meio do público e terminou o seu recitado, muito emocionado, dirigindo-se a mil. E logo me identificou:
—!Antonio Miranda és él!
Os atores me abraçaram, o público me olhava com curiosidade e admiração e tudo parecia uma cena de “happening”, de improvisação teatral e toda a função foi feita diante de mim. Como a peça, em certa medida, era autobiográfica e como Mário protagonizou o personagem “Antonio Miranda, viviendo el los Barrios Altos, Edifício Eden, 3er. Piso, lanza un grito de socorro”, eu me senti na berlinda, contemplando a minha própria estória.
Foi uma hora densa e tensa para mim. Dali seguimos para a casa de um dos atores para celebrar o final do espetáculo que dera início ao grupo teatral “Cuatro Tablas”.
Voltei a Lima 14 anos depois. Mário Delgado, com o webdesigner do meu Portal de Poesia Iberoamericana Juvenildo Barbosa Moreira. Mário Delgado, que se iniciara com a montagem de “Tu país está feliz” já era uma figura de vanguarda no cenário teatral peruano. Compro o jornal “El Commercio” e nele encontro uma entrevista em que Mário conta a turnê do grupo pela Europa ocidental e Polônia, e sobre dois novos espetáculos que apresentavam na cidade.
Marcamos um encontro no Café Haiti, no centro de Miraflores. Havia transcorrido mais de uma década desde o nosso último encontro! Gastamos um par de horas querendo saber um do outro... Ele havia feito muitas viagens e uma delas ao Rio de Janeiro onde, em voo, por telefone, tentou me localizar. Ninguém sabia de minha existência no mundo do teatro brasileiro... O meu último endereço que ele conhecia era em Londres, no início da década anterior.
O toque de queda nos separou. Ele tomou um “micro” para recolher-se e nós tivemos que voltar ao hotel antes que o Exército ocupasse as ruas de Lima.
Voltamos a nos encontrar mais duas vezes e tive a oportunidade de assistir a uma peça construída com poemas e canções de um autor peruano e de conviver com os atores da nova geração. Foi um instante de glória.
Foram algumas horas de convívio boêmio com gente jovem e talentosa. Agora volto ao meu silêncio e ao meu recolhimento. Devo ser duas pessoas contraditórias, vivendo alternadamente. A primeira pessoa, mais íntima, é rebelde, desordenada, anárquica, forte, voluntariosa, caprichosa, ousada, aventureira. Gosta de poesia e se deixa arrebatar pelos sentimentos e pela emoção. A outra pessoa pretende ser metódica, racional, se impõe em ritmo organizado às suas tarefas e se coloca equidistante frente à adversidade e o sofrimento. Pretende ser autossuficiente, mas conserva um tanto de timidez e romantismo.
Nas viagens quem vai é o ser ditirâmbico, independente, livre, escapado dos rigores da rotina.
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