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                   Mujica Láinez  em Foto: skoob 
                    
                  VIAGENS  DE ANTONIO PELO MUNDO - ARGENTINA - ENCONTRO COM MUJICA LÁINEZ -        BUENOS AIRES 
                  09.11.1984 
                    
                  A  viagem foi demorada. O avião deu várias voltas sobre a imensa planície em que  está assentada a grande cidade capital dos argentinos, às margens do barrento rio  de la Plata. Como um interminável tabuleiro de xadrez, a megalópoles  platina assombrava os meus olhos de estrangeiro, apesar de sua monotonia  quadrangular. Somente depois de um espaço de tempo nervoso e interminável para  a maioria dos passageiros — não para mim, jovem de 22 anos, descobrindo o  mundo, em sua glória momentânea — o avião teve a autorização para a  aterrissagem no longínquo aeroporto de Ezeiza. Ninguém à minha espera. Os voos  quase todos cancelados, um vazio imenso no grande aeroporto (grande e imponente  se comparado com o nosso Galeão, do Rio de Janeiro, naquele ano de 1962. 
                    Fomos informados de que o país estava em “estado de sitio”. Acabavam do depor o  governo constitucional do Presidente Frondizi, acusado de estar mancumunado com  peronistas e marxistas. 
                     
                   
                  Tomei um ônibus de linha  regular, com a minha pequena maleta, e o percurso foi tão demorado quanto  mágico: estava fascinado com aquela natureza plana e suave, com aquelas  edificações “europeias”, com aqueças avenidas. Desci no centro da cidade, onde  a minha intuição me dizia mais central. Andei pelas ruas quase deserta onde, de  vez em quando, passavam caminhões do Exército e — segundo soube depois —  estavam proibidas as concentrações humanas de qualquer natureza. 
                   
No bolso apenas uns poucos pesos e alguns cruzeiros. Não havia qualquer  repartição do governo aberta e eu não sabia como apresentar-me às autoridades  argentinas para cobrar o meu prêmio ganho de Embaixada Argentina no Brasil, e  as custas para a estadia. E, no entanto, estava feliz! 
De repente, vi-me na Calle San Martin e deparei com Manuel Mujica Láinez que  vinha da redação de La Nación. Parecia um lorde inglês em pessoa. Ele me  disse que estava com o pressentimento, desde cedo, que ia encontrar o seu amigo  brasileiro... 
 
Fiquei perplexo  e intrigado. Atribuí a  “profecia” à possível notícia, que ele certamente teria, de que minha chegada.  Era provável que tivesse sido informado pelas autoridades e estivesse criando  seu “pressentimento” para ser simpático.  Convidou-me para tomar um café e depois levou-me, de taxi, à casa de suas tias.  Eram três. Todas elas idosas, solteiras, cultas. Conhecidas na sociedade como  as “tias Láinez”. Uma delas tinha um programa cultural pela Radio  
Buenos Aires, sobre a música do “Quatrocento”, sobre o período renascentista. 
 
Foi naquele período que Manucho publicou sua mais notável obra literária — o  romance Bomarzo. Em seguida vieram os lauréis, inclusive, o grande  prêmio do governo da Itália, como reconhecimento à sua contribuição à cultura  italiana. 
O romance contava a vida amoral — conforme os valores próprios às castas  superiores do período pré-renascentista, que davam poderes e direitos  ilimitados aos senhores feudais — de um príncipe italiano, corcunda, feio,  cheio de grandes virtudes e ainda maiores defeitos, à semelhança de seus  contemporâneos todo-poderosos. 
 
Bomarzo era o nome da propriedade dos príncipe, onde vivia a sua fantasia e as  suas alucinações, envenenando gente, emparedando outras nas construções de seus  palácios e jardins. Consta que povoou aqueles jardins com estátuas de sabor  neoclássico, às vezes de inspiração greco-latina do Orient, incluindo figuras  humanas hercúleas e atléticas; esculturas zoomórficas ou mesmo zoológicas sobre  as quais pairam lendas ou mesmo que sepultavam seus amantes, suas concubinas,  seus animais, servos preteridos ou outros seres desafortunados. Gente a quem o  príncipe amou desmesuradamente e que caiu em desgraça ao se transformarem em  entes medíocres, reais, sem a auréola do desejo, como meros detritos humanos de  seu insaciável e complexado apetite sexual. 
 
Manucho sofreu perseguições. No governo do golpe, sob a chefia do Presidente  Guido, foi simplesmente tolerado, enquanto as esquerdas o atacavam por seu  excentricismo, seu estilo oligárquico, seu refinamento, por sua ascendência  familiar, por seu conservadorismo político, por sua maneira elitista de ser. No  governo de Onganía, com o moralismo que imperou na censura, proibiram a versão  operística de “Bomarzo”, que recebeu o talento musical de Ginastera. Motivo: a  vida nada exemplar do príncipe corcunda da obra, seu sadismo, seu  homossexualismo, o “mau exemplo”. Tratar-se-ia, não somente de uma vida doentia  e degenerada, , mas de uma “degeneração” literária típica da burguesia  “decadente”, conforme os ideais castrenses e fascistas do novo governo  argentino. 
 
Voltei a conviver com Manucho no ano seguinte. Anos depois, morando em Caracas,  publiquei a 6ª. edição de meu livro “Tu país está feliz” com uma belíssima  carte do grande escritor argentino, à guisa de prefácio. Já era o ano de 1971. Manucho,  ao despedir-se de mim em 1963, garantiu que aquela seria uma separação por  muitos anos. Ele previa o nosso reencontro, muito tempo depois, no Oriente, em  país bem distante, por pura casualidade... 
Voltei a Buenos Aires somente em 1972. Ele deixara a capital para refugiar-se  mas serras de Córdoba, em uma chácara. Fui até lá e não tive a chance de  encontra-lo. 
 
Já na Europa, fazendo o mestrado em Librarianship na cidade de  Loughborough (Inglaterra), li nos jornais que estavam montando “Bomarzo”, em  versão inglesa, com grande elenco, em um teatro de ópera de Londres. Reservei  entrada par uma das apresentações, com amigos meus. Fiquei maravilhado com a  apresentação, com o clima orgiástico e de onirismo sadomasoquista,  principalmente nas cenas das danças. Os críticos especializados louvaram o  libreto, a música, as interpretações e registraram o surgimento do “pornô” na  ópera, com cenas de desnudo coletivo, o clima um tanto pagão das cenas da vida  do atormentado príncipe.  
Não foi possível contactar Manucho naquela temporada europeia de 1976. Não fiz  muito esforço porque estudava numa cidade do interior, distante de Londres. 
Voltei a Buenos Aires dois anos depois sem ao menos procurá-lo.   
 
Quando fui a Hong Kong e ao sul da China   popular, em 1982, andei buscando Manucho pela ruas, pelos restaurantes,  nos trens, barcos e no metrô, Em Aberdeen, ao atravessar aquele mar humano que  se move lentamente ao sabor do movimento coletivo, em uníssono, procurava o  rosto de Manucho. Meus amigos que andavam por aquelas regiões longínquas,  estavam com medo de atravessar aquela espécie de dragão em movimento, viam com  terror aquele aglomerado humano em progressão como um rio de cabeças  deslocando-se ritualmente. Estavam com nojo daquelas cobras sendo escaldadas  vivas, aquelas galinhas sendo escalpeladas na beira da água fervente, daqueles  mariscos malcheirosos em frituras viscosas. Eu queria, ao contrário ir mais  adiante, em busca de Manucho...  
 
Quando fui ao Japão, em meados de 1984, estive em um templo budista, e tive a  sensação de que Manucho estava lá. Na noite anterior, conversava muito com  Ricardo Gietz, com a Margarita Almada de Ascencio  e com a Sra. Currás, colegas da FID -  Federación Internacional de Documentación, com os mesmos que estiveram comigo  em Hong Kong. Foi o próprio Gietz, que é argentino, quem me falou da morte de  Mujica Láinez.  
 
Agora contemplo estas esculturas no meu jardim na Chácara Irecê, nos arredores  de Brasília, e vejo-as como monumentos votivos à memória de Manucho. Uma  homenagem pálida, pobre mas sentida a esse amigo com quem pouco convivi mas de  quem muito recebi. Ele me ensinou, nos poucos meses de contato, a ver o mundo  de uma forma equidistante. Ele se refugiava na arte, na literatura, para  compreender a transitoriedade da ação humana, para extrair dela a sua  imortalidade criadora. 
 
Lembro-me das folhas mortas à sombra da entrada da casa de Manucho, em Córdoba.  Havia muita sombra e silêncio e as folhas crepitavam e gemiam a meus pés.  Imagino as minhas estátuas de cimento à sombra de árvores maduras, com folhas  mortas pelo chão, denunciando não a presença mas a memória do meu querido  amigo. 
 
                
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