VÍTOR OLIVEIRA JORGE
Poeta, arqueólogo e professor da Faculdade de Letras do Porto, Portugal.
Em 2008 publicou o livro CASA DAS MÁQUINAS (Porto, ed. Papiro) e a 2a edição de PEQUENO LIVRO DE AFORISMOS SEGUIDO DE ALGUMAS ALUMIAÇÕES (Maia, Ed. Sempre em Pé, a mesma que publica a “Diversos”).
Blog: http://architectures.home.sapo.pt/Vitor.htm
Quatro poemas para o livro “ELECTRI-CIDADE” (inédito)
ATERRAGEM
Procuramos muito,
Mas de repente a brancura
Dos Pés Descalços
Pode impressionar
As películas atónitas;
Uma pista de luzes
Pode acende-se;
E o aeroporto que está do outro lado
Da noite imensa
Espreguiça-se e dá sinais
De acordar
Assim o corpo que chega
Sabe
Por onde fazer descer as asas
Sobre o Futuro,
Riscando a grafite
As extremidades
Do Horizonte.
Abatendo o peito enorme
Sobre o asfalto
Entre as Luzes,
Arrastando altares e esquifes
Tocando as cordas inquietas
Que põem a rodar a música
Das esferas.
Que batem com impacte
Nas pulsações do solo
Entre chispas iluminadas
E a imagem
Que se deitara
Ergue-se como um poste,
E de repente sustenta
A Tenda Celeste!
Indica as geometrias
Da direcção
Aos olhos cansados
Com tão tremenda
Veemência,
Com tão doce
Acolhimento,
Que planar assim sobre ela
É encontrar os Pés,
As luzes brancas, certas, justas,
Fosforescentes, vivas
Por onde começa
O voo suave:
Tenso, esticado, numa palavra:
Tenso!
PÚRPURA
Naquele dia, o cardeal e a sua esfinge
Vieram à janela ver o apocalipse,
Os tons raiados do poente.
Vamos de púrpura, disseram em uníssono.
Façamos pontaria para o pressentimento,
A pose tem um valor enorme!
É preciso sacrificar um animal, disse
Alguém, inadvertidamente
Atiremos as cores para a frente, como
Quem sacode uma toalha ou agita uma flâmula.
E apontemos à direcção: é crucial misturar.
Mesclar as veias dos olhos
Com as veias do céu no poente.
O inocente já foi sacrificado, disse
Outro alguém, mais advertido.
A pose é tudo. As insígnias. Os animais
Heráldicos respiram. A nobreza vive dos seus signos.
Olhemos de frente o perigo que não vemos.
Vem aí. Está para chegar há séculos.
Mas a sua vinda é sempre postergada.
O importante é estar à janela, virar as varandas
Para a agonia escarlate do poente.
E sucessivamente
Ver o grená, o rosa, o roxo, o carmim,
O cair abrupto dos veludos sobre as pálpebras.
A direcção uníssona das figuras.
Pai, por que me abandonaste,
Perguntara um pobre homem algures
É tarde demais, entre a Ordem e o Caos
Chegámos depois da hora. Temos ainda a pose,
Mas espalhou-se tudo, os arquivos estão nas ruas
E as suas folhas voam como asas;
As lanças erguem-se como dantes
Na procissão dos Segredos.
Mas os gatos vestiram-se ainda de cardeais.
E os cardeais aguardam o primeiro impacte
Atrás das suas liturgias.
Há um hieratismo, um fulgor de bronzes
Que se entorna de horizonte em horizonte;
Essa força caminha!
Por isso o cardeal se dirigiu à janela
Do Mundo, aquela por onde entra
O Presságio: e ergueu o globo,
E deu-se a ascensão das tiaras.
As bolas de fogo vêm aí, estão sempre
Para chegar a qualquer momento.
Em cima do altar fulgura ainda o bode.
O grande bode expiatório.
A cerimónia, en-
-fim.
Mas é (de) tarde,
talvez.
E é este último verso,
"Talvez",
Que prepondera, que esquadria
As atitudes.
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AS CONTRADIÇÕES OBJECTIVAS
uma frase contorce-se
e distribui-se pelo espaço
em que as linhas se entremeiam.
pelo meio passa o vento,
a força com que um corpo avança e
embate, e se contorce
contra a superfície da imagem.
pelo meio das linhas passa o tempo,
insinua-se o vento,
neste lugar abandonado às frases,
neste solo plano em que apenas pedras
se erguem, e fazem minúsculas sombras.
talvez uma respiração subsista,
talvez um peito esteja ainda vivo nas suas
saliências e reentrâncias,
e uma intenção passe entre as linhas.
os rios secos de outrora correm a direito,
esta é a face lunar, abandonada entre alças
e pregas, onde o sentido busca uma cintura,
umas espáduas, tão avidamente
entre dois momentos do mesmo movimento,
entre um eu e um tu, largados no deserto
das frases levadas pelo vento, dos movimentos
atirados subitamente para trás.
quando afinal se passa tudo aqui
e as linhas se fixam avidamente
ao olhar cego, objectivo, desamparado,
atirado sem querer contra a interrogação.
SUPERFÍCIE
Às vezes o mar enruga-se como uma cortina horizontal.
Até ao infinito.
Como um cântico dos defuntos
Que sob ele jazem, e que voltam com as suas rugas
À superfície, clamando redenção.
Mas como os defuntos estão reduzidos a fragmentos,
Só se vêem à superfície pequenos pedaços do que foi
O passado de cada pessoa, a história de cada biografia.
São ecos longínquos, que vêm de outro universo,
E entre os quais vamos avançando numa praia baixa,
Afastando cortinas, descortinando sussurros,
Vendo por vezes rostos mortos mais belos
Do que quando eram em vida.
Passeamos por este mar em pregas.
Como se atravessássemos a saia do mundo
Em busca do que sempre a saia esconde, e mostra,
O seu umbigo cheio de algas, o seu odor.
E nestas experiências empíricas nos perdemos,
Caminhando, caminhando, enquanto os defuntos cantam,
E o mar ondula como uma cortina, como uma toalha
Nunca lisa, enrugada sobre o passado, num sentimento
De que nada está jamais pronto, reencontrado, completo,
E apenas nos ficam imagens e sons, o coração trespassado
Por cruzes, as mãos incapazes de alisar tudo.
Página publicada em fevereiro de 2009
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