VASCONCELLOS SOBRAL 
                      
                        
                      Vasconcelos  Sobral (Artur José Fernandes de) nasceu, de passagem, em Mértola, considerando,  porém, como sua terra natal a cidade de Castelo Branco onde mergulhou as raízes  de sua infância, adolescência e parte da juventude. 
                      Já em  Lisboa, aos 20 anos e a partir dos anos 60, principiou a colaborar em diversos  jornais, publicando em 1963 o seu primeiro livro, O Quotidiano Gritado, que  obteve calorosa crítica. Seguiram-se Tapume e Heteroácido (1966), o conto “O  Odionauta”, que Natália Correia exigiu que fosse incluído na Antologia do Conto  Fantástico Português, publicada em 1967. 
                        
                      Convidado  pelo compositor Joly Braga Santos a escrever um poema para o final de sua 4ª  Sinfonia (que já estava feita), para execução no Congresso Mundial da Juventude  que se realizou em 18.4.1968, no Cinema Tivoli, com a Orquestra Sinfônica  Nacional e o Coro Gulbenkian (100 vozes). O efeito causado por seus versos foi  de tal forma espetacular que grupos de diversos países sugeriram e o poema foi  proposto para Hino Mundial da Juventude, o que acabou não se concretizando em  virtude das ligações do compositor com o Estado Novo. 
                        
                    Em 1969  foi publicado seu livro de poemas O Tempo e a Dor. De sua biografia constam  ainda várias entrevistas e colaborações poéticas nas mais importantes páginas e  suplementos literários da época, bem como resposta ao “Questionário de Proust”.  
                        
                      Em 1972  publicou o seu último poema de então, remetendo-se ao silêncio até 1998, data  em que surgiu inesperadamente Na Memória dos Astros, impresso artesanalmente  para ofertas aos amigos; portanto, ainda não publicado. Vasconcelos  Sobral tem inéditos Homenagem à Música, poemas que prestam vassalagem de  Cláudio Monteverdi a Richard Strauss, e Cartas de Amor a Raquel, prosa de  indiscutível cadência e conteúdo poéticos. 
                      
                        
                      Ao Poeta Artur de Vasconcelos Sobral foi atribuída a Medalha de  Mérito Municipal - Grau de Ouro,  como reconhecimento da Câmara Municipal  de Sintra ao seu relevante papel cultural e social que desde sempre desempenhou  em prol da comunidade. A medalha de ouro corresponde à concessão do título de  Cidadão de Sintra (Património da Humanidade).  
                        
                  “O poeta português Vasconcelos  Sobral estreou em 1963, com o livro O Quotidiano Gritado. É hoje uma das vozes  mais afinadas com os rumos que a poesia moderna atingiu depois das reviravoltas  políticas que aconteceram em Portugal na segunda metade do século XX. Dono de  uma musicalidade e de um domínio rítmico invejáveis, o autor de Na Memória dos  Astros vem construindo sua poética com zelo e acuidade muito próximos da  Música.” João Carlos Taveira, poeta e crítico literário.  
                         
                     
                        
                      
                        
                        
                      Poemas sem título 
                      do livro inédito 
                      Na  Memória dos Astros 
                        
                        
                      I 
                        
                      Velada d’armas no horizonte 
                      burgos alarmes rebeldia 
                      audaz estirpe a que remonte 
                      à fé jurada do meio-dia 
                      
                      Com sentinelas monte a monte 
                      da temerosa fidalguia 
                      para que a Dama a sós desponte 
                      no reino da nossa fantasia 
                        
                        
                      II 
                        
                      A jovial cavalaria 
                      que com a Dama se confronte 
                      será tristeza luzidia 
                      prodígio que cedo se defronte 
                        
                      com mil acordes de magia 
                      por ser um astro que desponte 
                      no caos da nossa fantasia 
                      algures no pálido horizonte 
                        
                        
                      III 
                        
                      Aios para que o sol desponte 
                      buscam a Dama da Alegria 
                      e no entanto ela se esconde 
                      nos sóis da sua cortesia 
                        
                      Delírio um dia para um conde 
                      visão rebelde por um dia 
                      é um pendão no horizonte  
                      do Reino da nossa fantasia 
                        
                        
                      IV 
                        
                      O esplendor dos torreões 
                      veste os abismos imprecisos 
                      enquanto brilham alusões 
                      a brios e cercos indecisos 
                        
                      Que solstício d’ilusões 
                      que parapeitos indivisos 
                      donde aniquila corações 
                      quem traz a morte nos sorrisos? 
                        
                        
                      V 
                        
                      Quem nos sorri de galhardia 
                      trazendo a morte nos sorrisos 
                      é uma luz límpida e fria 
                      de falseados paraísos 
                        
                      Mas nós poetas iludidos 
                      a fé jurada da magia 
                      seremos pagens destemidos 
                      da Dama da nossa fantasia 
                        
                        
                               * * * 
                        
                      Corcéis alados moldaram-me o brasão 
                      onde refeito luz e desamparos 
                      acaricio o místico clarão 
                      de violinos líquidos e raros 
                        
                      que executando nobre melodia 
                      liberta em armaduras e em espadas 
                      no campo resplandecente do meio-dia 
                      canta batalhas de som transfiguradas 
                        
                      Desse brasão moldado de corcéis 
                      minha sonoridade e meu espelho 
                      me despeço dum sonho aniquilado e velho 
                      com líquidos violinos nos papéis 
                        
                        
                                         *  * * 
                        
                        
                      Num vislumbrar de veias delicadas 
                      seda de pura ânsia 
                      com regalos nas ruas procurados 
                      em viagens de fatal elegância 
                        
                      novo sangue passou à minha porta 
                      com destinos incógnitos de lua 
                      e cada veia era uma nova rua 
                      a ressuscitar matéria morta 
                        
                      Adormeço de sonho por inteiro 
                      nas suas mãos de obsessivas veias 
                      que em belas reproduz as substâncias feias 
                      numa súbita agonia de tinteiro 
                        
                        
                                         *  * * 
                        
                      O sorriso floriu 
                      mas recolheu selado 
                      aos anais do segredo 
                        
                      perdido por um fio 
                      do mundo emaranhado 
                      das sucursais do medo 
                        
                      Busco-o donde fugiu 
                      ou água ou qualquer lado 
                      e é sempre tarde ou cedo 
                        
                      E vil desesperado 
                      sepulto-me no rio 
                      do emaranhado enredo 
                        
                        
                                         *  * * 
                        
                      No limiar do vento a sua voz se encontra e perde 
                      e recompõe e abandona a paisagem 
                      e o Maio submarino do meu sangue verde 
                      procura-a na eterna viagem 
                        
                      Sem tempo nem distância e sem ruído 
                      delírio tranqüilo de asas matinais 
                      num regato encontrado e depressa perdido 
                      na memória da luz e no som dos metais 
                        
                      Eis porque ouvindo-a nem sequer envelheço 
                      e com o mar dos versos faço as pazes 
                      Esta é a ondulação que procuro e mereço 
                      soltando-se do coração das aves 
                        
                        
                                         *  * * 
                        
                      No seu rosto a água dura 
                      e transparece ao sol-posto 
                      e é sempre aragem de Agosto 
                      e dissolve a noite escura 
                        
                      Nessa fonte de frescura 
                      que se transformou num rosto 
                      lavo o sangue predisposto 
                      e sempre a água perdura 
                        
                      Por isso envolto em verdura 
                      o lago ao redor disposto 
                      bebo a água do seu rosto 
                      e enlouqueço de água pura 
                        
                        
                        
                      
                      De 
                        Artur  Vasconcellos Sobral   
                        Homenagem à Música 
                                        Freguesia de Monte Abraão, Portugal: Junta da Freguesia de Monte Abrão,  2010.   
                        151 p.    ISBN978-989-20-2164-5 
                        
                      Anunciado há tempos, saiu  este livro de Vasconcellos Sobral dedicado à Música. Já havíamos adiantado  vários dos poemas ainda inéditos  graças  à generosa colaboração do autor, que tem muitos amigos no Brasil. Um deles é o  também poeta João Carlos Taveira, que nos premia com uma resenha sobre o livro  (que deve ser lida nesta página*). Vasconcellos Sobral nos honra dedicando-nos  um poema: [ antes, vejamos o comentário feito pelo poeta Anderson Braga Horta sobre o livro.] 
                        
                      POESIA E MÚSICA 
                        
                      Leio Homenagem à Música, do poeta Vasconcellos Sobral (edição da Junta de Freguesia de Monte Abraão, Portugal, 2010). A musicalidade dos versos, a diafaneidade das imagens, tudo nesses poemas se casa à música – esplendorosa deidade – que magnificamente homenageiam. Impressões de viés simbolista, são afinal, a seu modo, música. Belo livro, que vale conhecer. 
                        
                                                                                               Anderson Braga Horta 
  
                
                        
                      ÁRIAS DE SCARLATTI, HAENDEL E CALDARA  
                      Soprano  Cecília Bartoli 
                       
                        
                      A António Miranda.  
                      Ao Poeta. 
                       
                        
                      Canto a  luz nos ouvidos  
                      e o  incorruptível sangue que a deslumbra 
                        
                      Canto a  navegação  
                      e a sua  dança diáfana nas ondas 
                        
                      Canto o  espírito do ar  
                      precioso       sonoro         quase de água 
                        
                      O  esplendor do cavalo  
                      cujas  asas os instrumentos soltam 
                        
                      Poente  alado  
                      Líquida  uma voz canta 
                        
                      Ó meu  imperecível peito naufragado  
                        
                      A morte  quase branca  
                        
                        
                      
                               Ouvindo  “Improvisos” de Schubert 
                                       (Maria  João Pires ao Piano) 
                        
                      O tempo escorre e o seu ventre tece 
                      um poço disfarçado de postura 
                      e o rastejar dessa matéria escura 
                      assoma abraça e à luz desaparece 
                        
                      Leva-se o espelho à boca e a noite cresce 
                      no bailado voraz da ditadura 
                      que deslizante some-se e perdura 
                      e à distância dum hálito acontece 
                        
                      Canta o piano no dizer dos ventos 
                      e vivo envolve o que de nós sobeja 
                      de restos de inquietos pensamentos 
                        
                      E esses milagres ou o que quer que seja 
                      são porventura os últimos momentos 
                      com que o mundo à saída nos corteja 
                        
                        
                      FRANZ SCHUBERT 
                      Noite Sonhos 
                      D.827 
                        
                      Voz: Kathleen Batte 
                      Piano: James Levine 
                         
                      Oração 
                    flor desventurada    quase 
                      nocturna despedida 
                        
                      Luz fulgindo das sombras 
                      alado cativeiro 
                      e a noite é branca 
                      como cor solitária 
                        
                      Segue a voz os caminhos de Deus 
                      e a brisa que transporta é dolorosa 
                      Regaço breve 
                      teclas nuas apagando o tempo 
                        
                      Distantes sonhos levar-me-ão  
                      contigo 
                        
                      ou sede de asa 
                        
                      Coragem de morrer 
                      resplandecendo 
                         
                       
                      
                        
                      SERGE PROKOFIEV 
                      Cinderella.  Suite  N. 1  op. 107 
                      7.  Valsa de Cinderella 
                      Orquestra  de Paris. Direção: Semyor Byenkov 
                        
                      Fervor iluminado 
                      valsa que a noite  espera 
                      Primavera num barco 
                      do mundo que  começas 
                        
                      Flor com gestos de  ave 
                      ardores que flutuam 
                      em ritmos e  espelhos 
                      de lumes e frescura 
                        
                      Leveza que me  arranque 
                      aonde estarei morto 
                      achado no meu  sangue 
                      perdido no teu  corpo 
                        
                      
                      [Junho 2007] Do livro Homenagem à Música. 
                        
                        
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                      HOMENAGEM  À MÚSICA, UM LIVRO PRECIOSO 
                        
                        
                      João Carlos Taveira 
                        
                           
                       
                      
                               Acaba de chegar às minhas mãos um dos  melhores livros de poesia de que se tem notícia nos últimos anos. Sem nenhum  exagero. Trata-se de Homenagem à Música, do poeta português Vasconcellos  Sobral, uma coletânea que celebra, com poemas em versos livres e medidos, os  grandes autores musicais dos períodos barroco, clássico, romântico e moderno, e  também presta homenagem a alguns amigos seus, poetas, músicos e compositores. 
                        
                               O livro editado pela Junta de Freguesia  de Monte Abraão, de Queluz, tem posfácio de Bruno Ribeiro Tavares, fiel  discípulo musical do poeta, que lhe traça alguns dados biográficos e enaltece,  com justíssima agudeza, seus dotes poéticos e musicais, pois Vasconcellos  Sobral é antes de tudo um melômano dedicado e exigente. E, digo eu, um mestre  na arte de fazer amigos, pelos quatro cantos da Terra. 
                        
                               Em cada poema escrito, uma sutileza,  uma nuança, uma filigrana. As peças musicais em que são inspiradas as criações  literárias são únicas porque fazem parte do gosto pessoal do autor, e  universais porque nos tocam sempre de maneira diferente e nos induzem a  reavaliar imediatamente — em novas audições — o sentido da obra conhecida e  talvez pouco ouvida ou mal ouvida. A lição do poeta é assaz extraordinária! 
                        
                      Um  só exemplo, mas que exemplo! 
                        
                        
                        
                      MONTEVERDI (1567-1643) 
                        
                      Magnificat — Gloria 
                        
                        
                        
                      Quando se despe a noite de si própria 
                      e outonos líquidos me soltam da prisão 
                      é que eu sei porque és 
                      esplêndido e justo sobre o Tempo 
                      as armas 
                      e a sua crueldade 
                        
                      Quando falece a noite e a Música alvorece 
                      lanças de luz rompem o horizonte 
                      Quem és tu que me apagas? 
                      Quem de versos me eleva? 
                        
                        
                      Ó turbilhão da Paz 
                      Ó límpida Glória 
                        
                      E seremos relâmpagos 
                        
                      E que fique a Memória 
                        
                        
                                      Vasconcellos Sobral publica desde  1963 e já tem considerável obra editada no campo da poesia. Mas sua  popularidade cresceu muito depois de ter escrito um poema para o andamento  final da Quarta Sinfonia de Joly Braga Santos, por ocasião do 22.º Congresso Mundial  das Juventudes Musicais, que foi apresentada em 18 de abril de 1968 pela  Orquestra Sinfônica do Porto. Em seguida, essa sinfonia foi gravada em CD, com  interpretação do Coro da Filarmônica George Enesco e da Orquestra Sinfônica da  Rádio e Televisão Romena, sob a regência do Maestro Silva Pereira. 
                        
                                      No Brasil, o autor tem alguns  amigos, como Branca Bakaj, José Santiago Naud e o autor destas linhas, e já  granjeia uma pequena legião de admiradores, pois figura, com destaque, na  página do poeta Antonio Miranda (antoniomiranda.com.br), na seção Poetas de A a  Z. Ali é comentada sua vida e sua obra, com a publicação de vários poemas de  sua lavra e o aval crítico de alguns especialistas da área. 
                        
                                      Agora é torcer e esperar pela  edição da poesia de Vasconcellos Sobral em terras brasileiras, para que um  número maior de leitores possa privar com uns poucos escolhidos a graça e a  beleza de uma poesia tão preciosa quanto necessária. 
                               
                      
                        
                        
                      Brasília, 21 de dezembro de 2010. 
                        
     
                      (página publicada em junho 2007, reeditada em agosto de 2007; ampliada e reeditada em deezembro de 2010) 
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