Fonte: http://www.astormentas.com/din/biografia.asp?autor=Nuno+J%FAdice
NUNO JÚDICE
Escritor, poeta e ensaísta português, natural de Mexilhoeira Grande, Portimão, em 1949,. Estudou Filologia Românica na Universidade de Lisboa, sendo atualmente professor da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989 com uma tese sobre Literatura Medieval.
Publicou o primeiro livro de poesia em 1972: A Noção do Poema. Seguiram-se Crítica Doméstica dos Paralelipípedos (1973), O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1975), O Voo de Igitur Num Copo de Dados (1981), A Partilha dos Mitos (1982), Lira de Líquen (1985, Prémio Pen Club Português), A Condescendência do Ser (1988), Enumeração de Sombras (1989), As Regras da Perspectiva (1990), Um Canto na Espessura do Tempo (1992), Meditação sobre Ruínas (1994, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, 1995), O Movimento do Mundo (1996), A Fonte da Vida (1997), Raptos/Enlévements/Kidnappings (1998, poemas escolhidos, com ilustrações de Jorge Martins), Teoria Geral do Sentimento (1999), Linhas de Água (2000) e A Árvore dos Milagres (2000).
Recebeu os mais importantes prêmios de poesia portugueses: Pen Clube (em 1985), D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1990) e da Associação Portuguesa de Escritores (1994), este último com o livro Meditação sobre Ruínas que foi finalista do Prémio Europeu de Literatura, Aristeion. Nuno Júdice recebeu ainda o Prémio de Poesia Pablo Neruda e o Prémio da Fundação da Casa de Mateus.
Em 2001, publicou Pedro, Lembrando Inês e Cartografia de Emoções, um livro de poesia. No mesmo ano, Rimas e Contas, integrada na colectânea Poesia Reunida 1976/2000, foi reconhecida com o Prémio Crítica 2000, pelo Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários (AICL)
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
CARPE DIEM
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.
ENCANTAMENTO
Vi as mulheres
azuis do equinócio
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo
que traziam de uma infância de magma
calcinado. A água ficava negra, à sua volta;
e os ramos das plantas submersas pelas chuvas
primaveris abraçavam-nas, puxando-as num
estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor
do verso; estendi-as na areia grossa
da margem, vendo as cobras de água fugirem
por entre os canaviais. Espreitei-lhes
o sexo por onde escorria o líquido branco
de um início. Pude dizer-lhes que as amava,
abraçando-as, como se estivessem vivas; e
ouvi um restolhar de crianças por entre
os arbustos, repetindo-me as frases com uma
entoação de riso. Onde estão essas mulheres?
Em que leito de rio dormem os seus corpos,
que os meus dedos procuram num gesto
vago de inquietação? Navego contra a corrente;
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese.
OUTRA IMAGEM
Conheço o mundo dos mortos. É frio, com terra
por cima, restos de tábuas, ossos desfeitos pelos invernos.
Os mortos vêem-nos: de onde estão, eles chamam pelos nomes
familiares, num murmúrio, e o vento dispersa-lhes os sopros
— música de ciprestes. Por isso, há quem ande entre as campas,
ao fim da tarde, com os ouvidos tapados; quem reze,
entre lábios, datas estéreis como as antigas pedras;
quem persiga a própria sombra, temendo que ela desapareça
sob a erva fresca. Memórias vagas e finais, atormentando-me
num secreto espelho - no canto de mim, absorto
e pálido, quem, me diz o nome, em silêncio, sem olhos,
sem lábios, sem os cabelos que outrora toquei?
EM LISBOA
(fim dos anos 60)
Bebi numa taça a cera derretida do passado.
À superficial análise sentia-se um sabor humano
a desgraça; mas quando, seca, a língua a percorria,
um autêntico pavão animal abria o seu leque
descendo,
como um deus, pela escadaria ampla do corpo.
À transparência manual do pescoço surgia, então,
um outonal jardim do Luxemburgo, de madrugada,
enquanto as cúpulas das igrejas e palácios emergiam
da nocturna névoa. Os barulhos da cidade juntavam-se,
no aro frio, com um sussurro de mar tempestuoso.
Tudo confluía numa determinada imagem de Norte.
Mas logo, dissipada a primitiva impressão do sonho,
chegavas com os teus dedos reais e ambos,
naquele recanto do café,
víamos chegar o inverno,
o beco sem saída das nossas vidas,
o tédio oficial dos primeiros jornais do dia.
VISÃO
Nas correntes frias onde morre a luz dos astros,
e entre os gritos rápidos dos condenados, encontrei o reflexo
de um amor antigo. Deixou-me um gosto de sangue nos dentes,
os lábios gretados num roxo de ânsia.
Rasgou-me a alma
num seco crepita de papel. Estava imóvel, encostado aos ventos
e à marés, e o seu corpo exalava o cheiro húmido dos litorais. Falava
baixo, num segredo de sombra, num horizonte de bocas de bocas sem alegria,
arrastando a voz num sussurro de litania. Fiquei de longe,
a olhar, enquanto o sol nascia.
De
POR DENRO DO FRUTO A CHUVA
Antologia poética
Seleção, organização e prefácio de
Vera Lúcia de Oliveira
São Paulo: escrituras, 2004
ISBN 85-7531-123-9
GÊNESE
Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista (isto é céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura – a luz incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por uma acaso cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso.
com o sol a querer romper.
EPIGRAMA
A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.
Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.
Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.
Dai-me, ó loucos, a vossa razão
- esses remos de subir o tempo
até a fonte de um deus obsceno e nu.
VIAGEM
Há olhos que só olham o sonho; e, quando
o sonho se dissipa, ficam cegos.
Há pontes por onde não se passa, no inverno,
embora ninguém as guarde: pontes
sem arcos, abstractas como um arco-íris
e frias como a chuva da madrugada.
Um campo de erva que amadurece;
o feitiço fútil dos faróis quando a manhã
limpa as últimas névoas;
um bater de pálpebras como asas:
imagens que lembro
e me restituem os olhos
com que avisto a entrada da cidade.
PLANO
Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se deseja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.
Extraído de:
2011 CALENDÁRIO poetas antologia
Jaboatão dos Guararapes, PE: Editora Guararapes EGM, 2010.
Editor: Edson Guedes de Morais
/ Caixa de cartão duro com 12 conjuntos de poemas, um para cada mês do ano. Os poetas incluídos pelo mês de seu aniversário. Inclui efígie e um poema de cada poeta, escolhidos entre os clássicos e os contemporâneos do Brasil, e alguns de Portugal. Produção artesanal.
Foto extraída de:
MORDZINSKI, Daniel. A literatura na lente de Daniel Mordzinski. Textos de Adriana Lisboa e Victor Andresco. São Paulo: SESI-SP editora, 2015. 412 p. ilus. col. ISBN 978-82075-604-2 Textos em português e castelhano. Ex. bibl. Antonio Miranda
TEXTOS EN ESPAÑOL
Traducción de Vicente Araguas
CARPE DIEM
?Confías en el incierto mañana? ¿Entregas
a las sombras del azar la respuesta inaplazable?
¿Aceptas que la diurna inquietud del alma
substituya la risa clara de un cuerpo
que te exige el placer? Te huyen, por entre las dedos,
los instantes; y en los labios de esa que amaste
muere un final de frase, dejando la duda
definitiva. Un nombre inútil persigue tu memoria,
para que lo robes al sueño de los sentidos. Sin embargo,
ningún rostro le da la forma que desearías;
y abrazas la propia figura del vacío. ¿Entonces,
por qué esperas para salir al encuentro de la vida,
del aliento caliente de la primavera, de las orillas
visibles de lo humano? «No», dices, «nada me obligará
a la renuncia de mí mismo - ¡ni ese mirar
que me ofrece el lecho profundo de su imagen!»
Loco, ignora que el destino, por momentos,
se confunde con la brevedad del verso.
ENCANTAMIENTO
Ví las mujeres azules del equinoccio
volando como pájaros ciegos; y sus cuerpos
sin alas ahogándose, despacio, en los lagos
volcánicos. Sus labios vomitaban el fuego
que traían de una infancia de magma
calcinado. El agua estaba negra, a su vuelta;
y los ramos de las plantas sumergidas por las lluvias
primaverales las abrazaban, empujándolas en un
estertor de imágenes. Las tapé con el cobertor
del verso; las extendí en la arena gruesa
de la orilla, viendo las culebras de agua huir
por entre los cañaverales. Les aceché
el sexo por donde se escurría el líquido blanco
de un inicio. Pude decirles que las amaba,
abrazándolas, como si estuviesen vivas; y
oí un rastrojar de criaturas por entre
los arbustos, repitiéndome las frases con una
entonación de risa: ¿Dónde están esas mujeres?
¿En qué lecho de río duermen sus cuerpos,
que mis dedos buscan en un gesto
vago de inquietud? Navego contra corriente;
busco la fuente, el silencio frío de una génesis.
OTRA IMAGEN
Conozco el mundo de los muertos. Es frío, con tierra
por encima, restos de tablas, huesos deshechos por los inviernos.
Los muertos nos ven: desde donde están, llaman por los nombres
familiares, en un murmullo, y el viento les dispersa los alientos
—música de cipreses. Por eso, hay quien ande entre los túmulos,
al final de la tarde, con los oídos tapados; quien rece,
entre dientes, fechas estériles como las antiguas piedras;
quien persiga la propia sombra, temiendo que desaparezca
bajo la hierba fresca. Memorias vagas y finales, atormentándome
en un secreto espejo — ¿en mi lugar, absorto
y pálido, quien pronuncia mi nombre, en silencio, sin ojos,
sin labios, sin los cabellos que otrora toqué?
Poemas extraídos do livro JÚDICE, Nuno. ANTOLOGÍA. Ed. De Vicente Araguas. Madrid: Visor, 2003. 247 p. (Colección Visor de Poesía - ISBN 84-7522-509-8
Contato com a editora: www.visor-libros.com
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Traducciones de
XOSÉ LOIS GARCÍA
EN LISBOA
(finales de los años 60)
Bebi en una taza la cera derretida del pasado.
Al superficial análisis se sentia um sabor humano
la desgracia; pero cuando, seca, la lengua la recorría,
um auténtico pavo real animal abria su abanico
descendiendo,
como un dios, por la escalera amplia del cuerpo.
A la transparencia manual del cuerpo surgía, entonces,
un otoñal jardín de Luxemburgo, de madrugada,
mientras las cúpulas de las Iglesias y palacios emergían
de la nocturna niebla. Los ruidos de la ciudad se juntaban,
en el aire frío, como un sussuro de mar tempetuoso.
Todo confluía en uma determinada imagen de Norte.
Pero después,disipada la primitiva impresión del sueño,
llegabas con tus dedos reales y ambos,
en aquel rincón del café,
veíamos llegar el invierno,
el callejón sin salida de nuestras vidas,
el tédio oficial de los primeros periódicos del día.
VISIÓN
En las corrientes frías donde muere la luz de los astros,
y entre los gritos rápidos de los condenados, encontre el reflejo
de un amor antiguo. Me dejó un gusto de sangre en los dientes,
los labios agrietados en un morado de ansiedad. Me rasgo el alma
en un seco crepitar de papel. Estaba inmóvil, apoyado en los vientos
y a las mareas, y su cuerpo exhalaba el olor húmedo de los litorales. Hablaba
bajo, en un secreto de sombra, en un horizonte de bocas sin alegria,
arrastrando la voz en un sussurro de letanía. Permanecí lejos,
mirando, mientras el sol nacía.
A POESIA É PARA COMER: iguarias para corpo e para o espírito. Seleção de poemas Ana Vidal; coordenação editorial Renata Lima. São Paulo: Rabel, 2011. 252 p. 23,5x31,5 cm. Capa dura. Impresso em papel couchê matte 170 g/m2.
Ex. bibl. Antonio Miranda
OMELETA
Quando se misturam gema e clara,
se transforma o branco em amarelo e o amarelo
em branco, e a púrpura do meio se confunde
com um raio de sol, invento um canto
para que o ovo se não quebre. Então vejo-o
ficar suspenso no equilíbrio do poema. De
um lado, dá-lhe a luz do sol; do outro, a palidez
da lua rouba-lhe o brilho. Gira
sobre si próprio: e a sua rotação sobrepõe-se
ao movimento da terra. Depois, com o gesto brusco,
parto-o: para que a sua gemada se espalhe pelo chão,
e o som do poema se misture com os seus pedaços
— aliterações duras como as casca, vogais
divididas pela simetria do ovo.
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Página ampliada e republicada em outubro de 2022.
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