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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NATÉRCIA FREIRE

 

Foi poeta, contista, jornalista e mulher solitária. Escritora durante os anos em que o Estado Novo queria a mulher em casa. Ostracizada pela Revolução de Abril, Natércia Freire acabou por cair num silêncio imerecido. Deixa um legado poético que merece ser (re)descoberto.

Nasce em 1919, em Benavente, no Ribatejo e ainda criança muda-se com a família para Lisboa. Começa por dedicar-se à música, mas a poesia é a tentação a que acaba por não resistir.Em 1932 acaba o liceu. Dois anos antes morrera-lhe o pai, dois anos mais tarde conhece José Isidro dos Santos, com quem namora e acabará por casar. 1938 marca a sua estreia na poesia, com a publicação de Castelos de Sonho. Segue-se-lhe Meu Caminho de Luz, muito bem recebido pelo público e pela crítica.

Em 1940 inicia a sua colaboração com a Emissora Nacional, com palestras mensais. No início da década de 40, talvez a mais pesada do consulado de Salazar, lança ainda Estátua e Horizonte Fechado, este último também muito aclamado. Natércia ingressava assim no meio poético da altura, sendo íntima de alguns dos nomes mais destacados da poesia de então, como Carlos Queiroz, Cecília Meireles ou Egipto Gonçalves. Enceta a colaboração com a revista Panorama e, em 1944, estreia-se como professora na Escola Primária da Póvoa de Santa Iria. Começa também a colaborar com as publicações Atlântico e Diário Popular.

Nos anos seguintes, a sua obra começa a ser reconhecida e a ganhar prémios. Natércia Freire vence por duas vezes o Prémio Antero de Quental, por Rio Infindável e Anel de Sete Pedras, publicados em 1947 e 1952, respectivamente. Segue-se a entrada para o Diário de Notícias, a convite do Director Augusto Castro, pró-regime. Acabará por dirigir a secção Artes e Letras do periódico, da qual só sairá em 1974.

30 anos de isolamento

Deposto o Estado Novo, Natércia é afastada da Emissora Nacional e acaba por deixar, pela sua iniciativa, o DN. A escritora e jornalista inicia assim um processo de isolamento social, profissional e pessoal que se manterá até ao fim da sua vida. Não deixa, no entanto, de publicar e de colaborar com algumas publicações, como O Tempo ou O Século. Em 1984 fractura a bacia num acidente e passa um ano acamada, depois de um período de quase-coma.

É já no início da década de 90 que é publicado o primeiro volume da sua Obra Poética, prefacido por David Mourão-Ferreira, seu amigo.

Até ao final da sua vida veia publicando algumas antologias poéticas e foi alvo de várias homenagens.  Morre aos 85 anos, do mesmo modo discreto por que pautou os últimos anos da sua existência e deixa uma obra sobre a qual o seu desaparecimento venha talvez fazer incidir alguma atenção.

Fonte da biografia:  www.icicom.up.pt/blog/muitaletra/arquivos/005929.html

 

TRÊS POEMAS

 

 

VISITA

 

Visito os amigos mortos,

Pensando que indo, estão vivos.

Entre a penumbra dos quadros

Andam eles em sorrisos.

Pronuncio a frase antiga

E dou comigo sozinha.

Oiço então o dia exacto

Da estridente campainha.

Volto a casa, fecho o som

Por dentro da persiana.

E então os retratos andam,

à volta da minha cama.

 

 

O BAILE

 

Névoa em surdina

A sombra que acompanha

As finas pernas a dançar na tarde.

Jogo de jovens corpos.

Música de montanha,

Num tempo teu e meu

De eternidade.

E eu, as duas estranhas.

 

Olha quem toca o ponto

Que há no fim!

Ao fim de mim,

No ponto para que vim.

Ao fim de mim

No ponto donde vim.

Vulto de agulha

Em fumo de água e lenha.

 

Eu, as duas estranhas.

 

É sempre pêlos outros que falamos.

Eu, as duas estranhas, por mim falam.

Em estradas como ramos

oscilamos. E vamos

Convergentes, dispersas, disparadas

Pêlos tiros de magos inocentes

Do caos ao sol

Em gradações de escadas.

 

Ouve-se às vezes uma voz: — Presente!

E já no corpo as almas vão trocadas.

 

Foi em concretos dias de sol-posto,

Em fábricas de fios de uma aranha,

Que se teceram

Em finíssimas teias de desgosto,

(Eu) as duas estranhas.

 

 

SUICIDAS

 

Tu que me lês terás cumprido a Lei

Da gratidão, ao menos um instante?

Da escada, o topo, é fito ao viajante.
Só a distância, é fito ao navegante.
Então com mar e praias de águas várias
Caem muros e grades solitárias.

Então,
Não por pouco,
Por dias ou por meses;
Não por horas de tênue desconforto,
Mas por anos imensos
Deste meu tempo morto,
É que os pressinto
Em extreme melodia
Dos dias junto à noite
Família que me voa em agonia,
Sabe o veneno da melancolia
E os tempos de correr sem companhia.
Suicidas de todas as Idades,
Terríveis solidões de atroz medida,
Expectativa de sono que se evade
Quando a porta se abre
E a luz é como um sabre
Entre a vigília,
Por que fugis?
Por que fugis,
Se a vós é que procuro,
(A vós, minha família)?
Porque só vós sabeis
A cor do desespero
         Que há no escuro.

 

Extraído da REVISTA DE POESIA E CRÍTICA, Ano IV,n. 6, Brasília, 1979.

 

HATHERLY, Ana.  CAMINHOS DA MODERNA POESIA PORTUGUESA. 2ª. edição  S.l.:Ministério da Educação Nacional, Direção Geral do Ensino Primário, 1969. 121 p.  (Coleção Educativa, Serie G, n. 8)  11x16 cm. 

 

 

O SONHO SEM DESTINO

 

Se QS caminhos são breves

e os dias tão compridos,

e as tuas mãos mais leves

que a espuma dos vestidos;

 

se é de ti que me ondeia

uma brisa subtil...

E a vaga- diz: — Sereia!

E o sonho diz:— Abril!

 

Se cresces e dominas

os campos que acalento,

e inundas as colinas

de fontes que eu invento;

 

se tens na luz dos olhos

o misterioso apelo

das cidades de fogo,

das cidades de gelo;

 

se podem bem guardar

na tua mão fechada

o meu altivo Tudo

e o meu imenso Nada;

 

se cabe nos meus braços

a bruma que tu és,

e em algas e sargaços

te abraço nas marés;

 

se, puro, na presença

da nossa grande Casa,

pões na voz do horizonte

um lume de asa e brasa.

 

Não sei porque te sonho

na sombra matinal,

e ao meu lado te vejo,

real e irreal.

 

Sabeis — adaga fria,

que ao meu peito cintilas

onde se oculta o dia

das aragens tranquilas?

 

Se tudo sabes, mata

com dedos de oiro fino,

ou com gume de prata,

o sonho sem destino!

 

(De «Azul de Sete Pedras»)

 

 

INDEFINIDA

 

Oh, poesia de andar

suspensa sobre outeiros!

Poesia de correr

Fundida nos ribeiros...

Oh, Poesia de ti,

que em mim estás a viver!

Oh, Poesia de então,

nos jardins, sob o Inverno,

pés na lama do chão,

e o dia, um dia eterno

de Poesia, a morrer!...

 

Poesia dos murmúrios,

dos nevoeiros densos,

dos silêncios sem luz,

dos pecados imensos,

sem gestos, qual a morte,

qual a ausência, sem vida.

Poesia de fechar

os olhos alagados

da Poesia de ti,

dos teus olhos fechados;

Poesia de ser virgem

e casta e indefinida...

 

Poesia, dos passeios

por entre a claridade,

entre árvores tão esguias

que tocavam os Céus,

e as folhas a cair

de um oiro sem idade...

Poesia fabulosa,

de uma riqueza enorme...

Uma Poesia fina,

alada, misteriosa;

Poesia de um passado

que em mim nunca mais dorme!

 

Poesia perturbada,

Poesia abandonada.

Poesia na prisão,

sufocada, esquecida,     

Poesia recalcada,

Poesia maltratada.

Ai, Poesia troçada

da jovem bem-casada

na poesia da vida!...

 

Ai, dias sem desígnio!

Ai, noites de mistério!

Poesia de ser virgem

e casta e indefinida!...

 

 

(De «Anel de Sete Pedras»)

 

 

AMOR

 

Vibrátil, fina, perfumada e clara

ondula a aragem que o amor provoca.

Longe respira a vida. Aqui o sonho.

Tudo é infância de águas e colmas

Na manha dos teus olhos.   

E voos de mãos dadas.

E cantos, cantos de infinito amor,

Nos galhos, nas correntes e nas sombras veladas.

 

Envolve-se de nuvem nosso abraço.

Vibrátil, fina, perfumada e clara

ondula a aragem. Fadas e duendes

agitam instrumentos na folhagem.

 

Vibrátil, fina, imperceptível, fluída

orquestra ao longe. Ao fundo dos sentidos.
Dedos de flores ondeiam sobre a pele
de Céus indefinidos.


Cantam mistérios bocas fascinadas.

Abrem corolas sob a luz que as toca.
Vibrátil, fina, perfumada e clara
ondula a aragem que o amor provoca.

(De “Poemas”)

 

 

REVISTA DE POESIA E CRÍTCA   ANO XVII  No. 17   - Conselho Diretor: Afranio Zuccolotto, Cyro Pimentel, Geraldo Vidigal, Domingos Caravalaho da Silva e Waldemar Lopes..  Brasília – São Paulo – Olinda -  SETEMBRO – 1993.           Ex. doado pelo livreiro Brito – DF 

 

        O DESERTO ABERTO

        
       Eu te daria
                Por teus planos de dor
                                   e agonia
                Minha suspensa
                Abstracta geometria
                que me golpeia as veias noite e dia.

                Em troca, nada mais do que o Deserto...(...)

                (N. Freire, in
Liberta em Pedra – 1966)

 

Ao longe, entre a Luz e o clamor

        Estava o Deserto aberto,
       E ao pressenti-lo perto
       Soube-o mel e Senhor.
       Mas já provara o fel
       De um Deserto maior,
       Entre o Baptista e Ele.

Cumpriam-se os augúrios:

 Alisei as veredas,
 Afastei os abismos
 As esponjas azedas.

 Foi a passagem,
 Estreita, fria, alongada,
 Por vezes alargada
 Em tempestade.

 Só a passagem
 E o que resta, em festa,
 Já não pertence
 Às luas da Cidade.

 Foi apenas passagem
 É apenas passagem
 O que resta.

 Mas não teria inscrito,
 Nalguns astros,
 Ao menos o Amor da Solidão?
 O beijo do leproso,
 O mistério dos partos
 E um tempo de correr
 de Norte a Sul
 Todos os céus abertos da Efusão?

 E nos livros?
 Como poder contê-los?
 Talvez no Livro
 Que selado guarda
 A Verdade negada
 À minha vida...

 Se não quebrei os selos
 Não sei nada.

 Se eu abrir o Desertos,
 Única porta que não está vedada
 No murmúrio encoberto,
 Deixo de ser passagem
 Para ser tua imagem
 Amado meu, Deserto!

       Meu Deserto, obrigada!
       Obrigada, Deserto!

 

*

Página ampliada e republicada em março de 2023

 

 

Página publicada em fevereiro de 2010; atualizada em julho de 2015.


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