MARIA AMÉLIA NETO
Maria Amélia Neto nasceu em Montijo a 30 de outubro de 1928. Poliglota, trabalhou como tradutora e como secretária. Manteve-se sempre à margem de grupos e de revistas literários. Desde o ano de 1960 vem publicando livros de poesias, que lhe angariaram grande prestígio no meio literário pela indiscutível qualidade do que escreve.
Jorge de Sena, referindo-se à obra da poeta, chama atenção para a sua “dicção hierática e solene, quer no verso curto, quer no verso longo”, a que se somam uma viva sensibilidade visionária, uma contida melancolia solitária” e um intenso sentimento do mundo, despido de sentimentalismo e de derramamentos emocionais, sem contudo ser árida, seca ou dura. Seu texto é enxuto, sua palavra é precisa e sem rodeios.
Maria Amélia posterga para um plano secundário a presença da primeira pessoa do discurso, incluída em um nós de cariz coletivo, lança mão de uma expressão quase despojada de emoção, evitando o empobrecimento das imagens pelo uso de metáforas banais, animando cada palavra e cada verso com subterrânea e insólita intensidade. Fonte: http://vialactealiteratura.blogspot.com.br
De O vento e a sombra, 1960:
O MEDO
Surgiu
Por detrás
Da nuvem escura
Que tapou a lua.
Escorregou
Sobre a planície,
Negro,
Envolto
Em longas chamas.
Era meu.
Pertencia-me.
Era o medo
A PEDRA
Para quê perturbar
O sono da pedra
Esquecida no vale?
Deixemo-la
No seu torpor de séculos.
Que lá não chegue
O eco das dores
Que o sono não esmaga.
Que não paire sobre ela
O ávido abutre
Que geme e que espera.
E que não acorde
O minuto de vida
Que anuncia a morte.
De A Primeira Verdade Nobre:
INCORRUPTA E LIVRE
Nem o declínio prematuro
Dos lírios do vale,
Nem a queixa pressentida
Das flautas ocultas,
Nem a marca na estrada,
Onde pousou, hirto,
O pequeno coró,
Nada do que afez germinar
Lhe prendeu os veio invisíveis.
Incorrupta e livre,
A amargura deixou
Os seus sinais translúcidos no portal,
E roçou, fluida,
Por todas as fronteiras estelares,
Tornando desumana a noite do poeta.
A VIAGEM
Acabo de chegar,
Irmão,
E vim de longe.
Vi rostos
Inclinados sobre a terra
E o torpor do mundo
Num olhar.
Vi as pedras
Da estrada
Ensanguentadas
E o sol
Feito poeira
Sore as pedras.
Vi a sombra
Da noite
A diluir-se
No frio da madrugada.
Agora
A Morte caminha atrás de mim,
Irmão,
E acabo de chegar.
De Equinócio:
FLUXO
O recolhimento, o silêncio,
O relógio suspenso,
A desintegração do tumulto,
O clamor, a tortura,
O vento salgado,
As liláceas pisadas,
Onde e quando?
Na sala envidraçada,
Que a última luz roxa incendiava?
Ou nas ruas,
Perscrutando os olhos próximos,
Perdidos na sombra, hierática e surda,
Impondo a iniciação inevitável?
Iluminemos a noite,
O rumor imperceptível do tempo,
Criemos um desconhecido brilho
Para os gestos que um irmão
Executa por nós no vasto palco.
Inventemos, silenciosamente, a prece,
A grande prece, a prece ininterrupta
Ao Deus desaparecido
AS TRINTA MOEDAS
Recebi todos os mensageiros,
Experimentei todos os relógios,
Aprendi alguns dos exorcismos,
Que não chegaram, porém,
A esvaziar
A minha gaveta de incertezas.
Recolhi-me quotidianamente,
Na hora do grande medo,
Escutei, ao largo, o ruído dos remos
Mas o barco não tocou na minha margem.
Vi o sol brilhar esplendorosamente
Sore a lama e sobre as minhas lágrimas,
Presenciei a servidão
E o poente ameaçado pelas vagas.
E numa noite,
Em que a Morte veio fazer-me companhia,
Vi espalhadas na terra as trinta moedas.
De Cicuta em Março:
O ROSTO
O caminho tem sido verdadeiramente longo
E o tempo tem chegado para muito:
Olhos perdidos nas cidades,
Passos hesitantes,
Mãos segurando as mãos da Morte,
E o sol, em Setembro, nos salgueiros.
Um dia,
Neste velho espelho que trago comigo,
Debruçou-se uma aldeia coberta de rosas
E um rosto adormecido como mármore,
Enquanto o oceano amava a terra, silenciosamente.
Este velho espelho quebrado
Conserva ainda do rosto adormecido as linhas firmes,
A proximidade, a quietude e a distância,
Mesmo quando o Quinto Anjo esvoaça sobre a terra
E a Grande Sombra tinge de noite a Vida.
PRELÚDIO
A cidade acorda, atolada de valas.
Penso num sinal, na manhã do mar,
Num gesto remoto,
E sobe da terra um clamor de limites:
Represas, sebes saqueadas,
Um pessegueiro morto,
E todas as nuvens caídas num charco.
Quem atravessou o gelo
E os mares
E o solo fendido
E escutou a gaivota
E andou sempre só,
Queimando o olhar, as veias cansadas,
Esteve serenamente sentado a um lado,
Mas não aprendi.
O sol violeta, a teia de prata,
Luzes e vento abraçando a cidade,
O cais interminável, fronteira adiada,
O vento de novo, águas enlodadas,
Presságio da noite, o preço tão alto,
A pétala, o viço e depois a vala.
Página publicada em agosto de 2016
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