M. PARISSY
Os sonhos de um poeta são o alimento das palavras. Os livros, as casas, o sol, a praia, o cheiro das raparigas, uma ida aos figos ou uma garrafa bebida em noites selvagens e outros instantes de vida, acrescentam a esses
sonhos um universo próprio de um autor em luta por uma presença no mundo que contrarie esta maldição civilizacional: «Obrigaram-me a ter um bilhete de identidade». É ainda o grito da beat generation, a revolta eterna na alma do poeta.
M. Paríssy procura nas suas publicações (opúsculos de autor ou livros editados em editoras marginais) criar um ambiente marcado por uma grande amizade pelos outros e uma alegria de viver, fundindo estas emoções com um pensamento interior de solidão e, por vezes, nostalgia de
um tempo que se esvai e cuja memória se obriga em fazer perdurar nos seus poemas. JAIME ROCHA
De
PARISSY, M. Cafurnas.
Nazaré, Portugal: edição do autor, 2992.
Exemplar n. 155 de uma edição de 500, autografada.
o imaginário da praia
todas as noites da nossa paixão
foram servidas por estandartes
que perduram no imaginário
andávamos atrás de deusas
de casas antigas de marchas de cegadas
de coisas que a história não deixa vestígios
quando procuramos arquivar o passado
tudo se dilui na correria que é entrar de bar em bar
e manter sempre a mesma respiração
é como apagar as chamas de um foguete das festas do sítio
nunca é tarde para o fazer
mas quando nos olhamos
não resistimos ao que resta de nós
(acabei agora de falar com o zé - o paulo não estava - e
soube que as cafurnas ainda enrolam a alegria e que o
mistério do voo das gaivotas ainda não foi desvendado)
havemos sempre de beber outra garrafa de vinho
e noutra púrpura noite rasgar a praia toda
canção do mar
o teu retraio transita de solidão em solidão
é como uma corda abandonada no interior de um barco
que serve a tripulação quando encalha
e serve ao marinheiro
que vai criando canções para ti
enquanto as vagas se despenham na quilha
o sol avança pela proa
escrevo
deixo embebedar-me pelo cheiro
tenho medo de não mais conhecer
o cio da noite
mas o retraio permanece em todas as luas
nas solidões tatuadas pelo frio
enquanto escrevo canções
acompanho o assobio das ilhas
uma a uma mergulhadas na chama
que ilumina os umbrais da noite
as palavras não adiantam o sonho
atrasam a tribo de alcançar o sol
são arrastadas pelo mar
por isso o quadrante da minha viagem
não tem constelações nem pautas
por onde se guie
mas canto assim mesmo
junto ao teu retraio
é a única brancura
que encontro e me repousa
De
PARISSY, M. Corpo indómito. Desenhos de Quim-Zé.
Nazaré, Portugal: edição do autor, 1989. s.p.
I
(fragmento)
ele mesmo
utiliza o azedo
nas paredes onde o brilho
sua
anda, a correr
por um bosque
estreito
e sublime
e onde o verso habita
numa das casas-mãe
onírica
na caverna mental
- o rugido -
apaixonante crença
leva-nos à madrugada
rápida, orgástica
à liberdade
( o ser )
De
PARISSY, M. Morte com dedos na ferida.
Porto: Edições Mortas, s,d. 30 p.
a lua ontem à tardinha
desceu ao telhado
os dois analisámos as imagens:
em geral as pessoas vão passando e sorriem
e perguntam o que é isso que arde
quando se ama mesmo em ferida
trazer o mundo às costas
é apenas uma aparência
**
a silhueta desfez-se em mil pedaços
reduzo a confissão
pela tinta escura
ninguém tem o direito de ler a sombra
bonecas na rua
desfilam sobre o vento
as criaturas passam pela primavera
de cara violentada
deixam a coragem ganhar espaço
absorver o cio da casa
lá fora a chama que olha os plátanos
as vozes vão tremendo pelos braços do húmus.
Página publicada em janeiro de 2012
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