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LUÍS QUINTAIS
Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola. Antropólogo, poeta e ensaísta, lecciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como poeta, publicou A Imprecisa Melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999), Verso Antigo (2001), Angst (2002), e Duelo (2004), obra a que foram atribuídos o Prémio Pen Clube de Poesia e o Prémio Luís Miguel Nava - Poesia 2005.
Parecia verão
Parecia verão. Ele via na noite.
Ele via as pequenas árvores,
os atemorizados animais,
uma linha de signos junto à terra.
Ele celebrava os objectos,
as irrisórias meditações
sobre os objetos criados,
o simples pensamento:
escrever é seguir curso no leito da morte.
Um livro é sempre memória
de um verão aparente que acaba.
De alguém que não domina a sintaxe,
que, inadvertidamente, lhe destrói
as suas fontes,
Parecia verão, e era um nunca acabar de promessas
que o rigor, a justa dignidade da beleza,
ou a ilusão de tudo isso,
rondariam por perto.
Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Nos teus lábios a noite
descreve um arco.
É o ciclo da melancolia
que se fecha.
Talvez não regresse.
Por outros sinais
lamentaremos a beleza
que, nos teus lábios,
a noite fez cessar.
[Sem título]
I
O estrépito que o passado faz.
As palavras gritadas.
A terrível máquina de dizer
e calar.
Tudo gira no nada
e no nada se compraz.
Uma fúria ergue-se
no plasma.
Uma cidade é destruída.
Escuta os muros
que se abatem.
Desenha árvores,
o rápido deslizar de nuvens,
o desenho que a mão faz
quando teme agarrar o sentido,
e o sentido é escuro, escuro.
II
O dia acaba, e com ele
a incerta medida dos teus erros.
Uma lâmina de vento
inicia-se no escuro.
A noite apaga o teu zelo.
O vestígio do ontem
cruza o sítio da memória,
somente atenuado
por outras presenças.
III
O rio escurecia
e depois aclarava e depois escurecia.
As árvores gravitavam nas margens
da tua memória,
faziam correr estilos de morte e promessa.
As personagens do inscrevível
seriam afinal mais monstruosas
do que se suspeitara,
e os insectos emudeciam
enquanto o outono regurgitava as suas vítimas.
E tu, tu? E tu fazias abolir
o sentido para fazer eclodir de novo
o novo sentido. E tu procuravas entre despojos
um aro de bicicleta partido,
um casaco com bolsos que dessem para o improvável,
um qualquer outro achado preso à cega geometria
e à circunstância do procurar.
IV
Atravessas a ponte, lês o jornal, alheias-te
do rio, mas o rio sitia-te
com a sua música de eleição,
a que julgaste escutar,
apesar dos sinais de morte
te encadearem
com a sua luz extrema.
Terás tu ainda a certeza do começo
movendo-se no écran
do primitivo medo
de que não há limite,
fuga, consolo.
V
Animal afeiçoado à metamorfose e à fuga,
o rio muda de cor
e tu anotas o denso espelho
e imaginas a métrica
que o levará à foz.
O rio é o teu deserto
e a palavra
apenas palavra
com que o descreves
a tenda onde o provisório
vem habitar.
Realidade
Olho para a realidade desprovida de silêncios.
As coisas são o que são. Porém, há que ter em conta
a gravidade que as prende à terra.
Os signos são os poucos recados que a vida pouca nos traz.
São o muito desta vida
onde árvores se perfilam nas avenidas, e nas avenidas
o frágil contraponto de domingo se passeia
atento à soalheira chegada de famílias-à-beira-Tejo
alheias à semana que aí vem, onde cada um por si,
e a desrazão por todos,
irá colher as incertezas do amanhã.
Dos sentidos todos o que resta são olhos fechados,
tacto de treva onde a realidade acaba
como um promontório sobre o Outono: onde começo
a contar as folhas, a memória da sua queda, a avisada música.
Página publicada em novembro de 2009
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