JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
João Miguel Fernandes Jorge (Bombarral, 1943), é um escritor e poeta português.
Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa (1972). Vive e trabalha em Lisboa. Fundou em 1988 a editora Cotovia juntamente com o seu irmão André Fernandes Jorge.
A sua obra envolve o cinema, a música e as artes. Lista de sua imensa obra poética em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Miguel_Fernandes_Jorge
POESIA SEMPRE. Revista da Biblioteca Nacional do RJ. Ano 1 – Número 2 – Julho 1993. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro. ISSN 0104-0626m Ex. bibl. Antonio Miranda
Continentes e desertos
Na praia sob um chapéu à Hockney
eu vi uma história da guerra
o sol que me caía no corpo também caía
no vosso corpo
sobre a praia sob o chapéu de listas
verdes e azuis mal se distinguindo a luz
do verde e do azul sendo sempre aos que
passavam só azul, apenas verde como
vós, perfeitos corpos imperfeita coisa
de dizer. Um,
era a própria corrida que lançava sobre
a Costa a leve penugem negra como só
aos trinta anos ainda têm os portugueses
ah! oh! o outro não era tão bonito
era bonito, lembrando a cada um a guerra
a guerra a guerra puta que pariu
e mais às africas, com menos uma perna era
levado sob a areia
que ventos levemente erguiam
com um braço sobre o outro entrando o
mar.
Ainda havia uma criança, algumas bichas
e um moinho de papel que depois comprei.
Por David Hockney
Trazia comigo uma tristeza que não morria e
vinha de não haver em português... não sei que sentido faz
começar com estes versos um poema.
Chegou-me
no setembro de 66 pelas mãos do meu amigo We Two Boys Together
Clinging e desde então creio não haver perdido
ora uma palmeira ora uma cadeira de lona pelo fim do
verão. As aparas de ouro os irmãos Grimm e os versos
Rapunzel, Rapunzel
Let down your hair.
Um anão falando à rainha. Jonas na barriga da baleia.
Peter no albergo La Flora, Célia e toda uma série de lápis
frutos e cómodas cadeiras de hotel.
Mr. e Mrs. Clark e Percy estão no começo da história da gata
Maravilhas e do meu António Vieira andando siamês e devagar
mijando no pote de açucenas porque nem a pátria nem o rei. E
sob um chapéu de largas listas verdes e azuis
conto, porque vi, a mais história da guerra portuguesa:
um rapaz levando o seu amigo, com menos uma perna, para o
mar, sob a areia que ventos levemente erguiam.
Escrevo um jarro de anémonas uma gravata de riscas
uns grossos aros de tartaruga.
Escrevo tudo isto em defesa do figurativo? Hockney e Kitaj
trazidos na capa da revista, não vou dizer qual é, dois corpos de homem, um nu, outro apenas de camisola de alças peúgas negras sapatilhas, ainda uns óculos a correia de um relógio
o sorriso sobre a tela branca.
Trazia comigo uma alegria que não morria e
vinha de haver contra o mar
as águas das piscinas,
os retratos de todos os amigos.
Flaubert Auden Isherwood Cavafy ou apenas juventude.
Página publicada em novembro de 2017
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