Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br
ISABEL MEYRELLES
Nasceu em Matosinhos em 1929. Fixou residência em Paris em 1950, onde prosseguiu os estudos superiores (Université René Descartes – Paris V – Sorbonne e Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts).
De
Isabel Meyrelles
PALAVRAS NOTURNAS & outros poemas
Organização e prólogo de Floriano Martins
São Paulo: Escrituras, 2006
(Coleção Ponte Velha)
143 p ISBN85-7531-227-8
Libertei os demónios,
é inútil que se escondam
atrás da fonte cor-de-rosa
do Jardim das Delícias,
sei que estão lá,
de nada serve atravessar
este mar encristado de cavalos selvagens,
a praia terá dentes
e dedos de enxofre e de sal,
as armadilhas-para-sonhos já levantam
as cabeças de arestas petrificadas
e o tempo, o tempo, esse,
penteia os seus cabelos de areia negra
e alimenta-se do meu desejo de ti.
* * *
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar os meandros
mais secretos
do teu corpo
floresta e armadilha,
fonte e bramido
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
entrelaçadas, adormecidas,
recriando o peito,
as espáduas, o ventre,
as coxas, o sexo,
amazônia interior
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
por vezes um único dedo
desenha no ar
os olhos, a boca, o cabelo,
estrela negra
que só eu conheço
Gosto de ver as minhas mãos
sonhar contigo,
sonhar esta travessia do espelho
de reflexos infindos
que é a minha recordação de ti.
Aliás, que outra coisa
podem elas fazer?
IN MEMORIAM
A Inês Guerreiro
Como é possível descrever com palavras
os mil murmúrios da alma
quando os mortos nos visitam,
a sua essência sutil
constelada de tantas recordações
que o nosso coração se torna
um vasto mar enfeitiçado?
Hoje foste tu, Inês,
que vieste, com a tua voz
de espuma e de andorinha
falar-me de décors de teatro
impossíveis, de máscaras e de plumas,
como se toda a gente pudesse compreender
a sabedoria do teu universo
de velho carvalho sonhador.
Ah! que saudade, Inês!
[Julho, 1998]
PARIS EM 1950
(para Robert Desnos)
Pequeno pequeno pequeno
ronronava a formiga de dezoito metros
aproximando-se dissimuladamente do Leão de Belfort
mas este fez orelhas moucas,
ele era não apenas de bronze
mas também cartesiano
e dizia para consigo que uma formiga de dezoito metros
não existe
não existe...
No que ele se enganava redondamente
o poeta a criou,
logo ela existe. Q.E.D.
Esteve ultimamente na Praça Denfer-Rochereau?
[Junho, 1998]
Página elaborada graças à generosa colaboração da editora Escrituras (http://www.escrituras.com.br/ ) e do poeta e ativista cultural Floria |