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HELDER MACEDO
Poeta, romancista, ensaísta, crítico e investigador literário, nasce em 1935, em Krugersdorp, perto de Joanesburgo, África do Sul. Passa a infância em Moçambique até 1948, ano em que vem para Lisboa. Entre 1955 e 1959 frequenta a Faculdade de Direito de Lisboa. No ano seguinte, Helder Macedo instala-se em Londres, onde se licencia em Estudos Portugueses e Brasileiros e História. Em 1971, inicia a sua carreira académica no King’s College, em Londres — onde obtém o doutoramento na área de Letras, em 1974 —, passando, entre outras universidades, por Harvard (E.U.A.), pela EHECS (França) e pela Universidade de São Paulo (Brasil). Especializou-se nas obras de Camões, Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, detendo, desde 1982, a cátedra Camões no King’s College. Colaborou na organização de várias antologias poéticas e assinou artigos ensaísticos em diversos jornais e revistas nacionais e internacionais.
O seu primeiro livro de poesia, Vesperal, foi publicado em 1957, marcando o início da sua obra poética.
OS TRABALHOS DE MARIA E O LAMENTO DE JOSE
ANUNCIAÇÃO
Espada dúctil de fogo
negro sol latejando vertical
ave branca explodia no meu ventre
é sem partilha
o amor que me anuncias
nem é humana
ou tua
a sombra que cresceu sobre o meu corpo
e me alongou num fundo mar
sem esperança
pois não há esperança no mistério revelado
e o que a carne concebe
é já divino
porque sem comando.
NATIVIDADE
Latejar intervalado de orgasmo já em ferida.
Rotura. Espanto. Irreversível dor.
Um ventre inchado golfa a expectativa de si próprio.
Porém já fui pequena
já fui também pequena
e me nasceram seios
e me cresceram pelos
e o sexo me floriu
no afago quente
do primeiro sangue.
Um grito rouco. Um ventre rasgado de dentro.
Viscoso, um novo corpo
tomba
e limita a eternidade.
Fiquei então sozinha
no corpo que era meu
para que o desse.
E dei-o
e mo romperam
com amor.
Não tem olhos nem dentes, não tem nome,
digere, vage, suga,
é calvo, é mole, é outrem,
só fúria sem contornos de crescer.
E agora
por mim própria violada
me castrei.
O amor que existe
Começa e acaba em mim.
Como negar-me
Se eu fui quem me devora:
Mas fui pequena
mas fui também pequena.
O DESERTO
Agora o vazio
agora o deserto
agora o vazio
porque estou sem mim
agora o deserto
porque a vida que gerei
negou a vida
chorai chorai comigo
ou tapai-me a boca
com pedras e com estrume
chorai chorai chorai
porque aquele que tinha em si
a morte e a vida
escolheu a morte
essas vozes que ouvias
meu menino
essas vozes que ouviste
e chamavam por ti
não era a morte não
que a morte é muda
e quando a morte fala
é porque a vida
era a voz do que tu és
e não conheces
a chamar-te por ti
a chamar o seu dono
para lhe mostrar
que toda a eternidade
está contida
no teu corpo
que podes conhecer
a eternidade
pois não há outra
além de conhecê-la
no prazo temporário
do teu ser
e só ai
só em ti
porque ela é tão finita
como tu
é tão mutável
e tudo o que o não seja
é só o nada
nada
nada
ah chorai comigo
ou então matai-me
recusaste
ser tudo quanto és
recusaste
encontrar-te
face a face
com o segredo de ti
ou cegaste
quando o viste
e guardaste só nos olhos
a visão
que projectaste no vazio
e então morreste
antes de ser
pois és profeta
de mundos que não há
e não do mundo
e morreste
e morreste
e morreste antes de seres
e não deste o teu nome
à tua vida
e eu choro
choro
choro
sobre o teu pavor
de não teres alma
de não seres tu
a alma do teu corpo
e choro sobre mim
que te gerei
e pari morte
porque negaste
a vida que em mim tinha
e que te dei
e fiquei só
e estou sem nada
e o meu ventre está oco
é o vazio
e sequei
e sequei
como o deserto
CRUCIFICAÇÃO
O que ofereces não chega.
Tua vontade tem o teu tamanho]
e o corpo que lhe dás é o teu corpo
meu corpo anterior que me usurpaste.
Nem o reino que anuncias pode abrir-se
para ti
mais que os lábios rasgados do meu sexo.
Um parto é sem regresso.
E é já dos outros
a fé que rege o mundo
e que os teus braços breves esticou
num abraço maior do que podias.
Não o teu verbo
mas o teu corpo
eu quero
que nele se transformou o meu poder.
Morre sozinho
Se não crês em ti.
Meu ventre bifurcando lembra ainda
a forma imaculada do teu crânio.
RESSURREIÇÃO
E agora há morte
porque tu morreste
e agora já sou eu quem vai morrer
quando eu morrer
tu foste o sangue
mas eu sou a carne
devolveste-me a vida
quando acabaste a vida que te dei
e tenho medo agora
e já não sei
em que sonhos de ti me hei-de ocultar
teu cadáver não foi meu impunemente
pois desceste de ti
não ao teu ventre
mas ao ventre amorfo
e triturante
da terra
que te despojará da tua forma
corroendo de ti todo o meu ser
para ressuscitares
em nada
para sempre.
O LAMENTO DE JOSÉ
Amei. Não fui amado. Sem paixão.
O mundo que inventaste não permite
nem que o rancor defina o meu amor.
Teu corpo fecundei
inchou de mim
mas como um estupro do que te ofereci
recusaste a verdade do meu corpo
no filho que pariste
em vez do meu.
Meu destino cumpri em não ter sido.
Estou velho e só.
Que venha a morte
Mas que seja minha.
(De Poesia – 1957-1968)
OS ESPELHOS
Porque nasci entre espelhos
existo para além da minha imagem
que será minha
quando me encerrar
no espelho final da minha vida.
Porque nasci entre espelhos
meu amor
ao amor que tu me deres
não posso devolver
nada mais que a minha vida passageira
meu espelho paralelo
meu amor
que só sem mim me podes possuir.
Porque nasci entre espelhos
tenho pressa
de encontrar-me face a face
e a minha imagem mudou
quando te amei
porque nasci
e fui nascendo sempre
por amar-te
até ficar sozinho
só
sem mim
no espanto encruzilhado de o saber
cresci sozinho para além de mim
perdi a própria sombra
e vivo onde não sei quem estou a ser.
Quando a morte chegar
quando eu chegar à morte
quando
eu
morrer
e de mim não sobrar nem a memória
que me foi alma durante a minha vida,
entre espelhos lentamente revelado
os olhos cerrarei.
E porque ausente
terei sido
inteiro.
(Poesia)
Orfeu
Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a preze como o início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
por já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.
(Poesia)
ENCONTRO COM HELDER MACEDO
Atendendo a uma convocação da Embaixada de Portugal participei, na condição de diretor da Biblioteca Nacional, de um jantar em homenagem ao poeta Helder Macedo, no dia 15/05/2009, com um reduzido número de convidados, oportunidade para conhecer e trocar algumas informações com o admirável autor de Viagem de Inverno. Vinha de Manaus e seguia para Lisboa/Londres. Apresentamos impressa a página web que fizemos com os poemas dele, por indicação de nosso amigo comum o diretor do Instituto Camões de Brasília Adriano Jordão, e ficamos de ampliá-la em etapas futuras. A editora no Brasil que publica e divulga os textos dele é a Record, mas sua obra tem diversas edições e traduções, ao alcance do público brasileiro e de outros países.
Enquanto os cães ladravam um ladrar
ralo de sono
que não chegou para acordar os donos
na noite doutros sonhos sem luar
e sem retorno
também cruzei por mim sem me chamar.
(De Viagem de Inverno)
***
Não há luz antes das sombras
nem vida antes da morte
há um óvulo vazio
fecundado
pelo corpo que o meu canto construir.
(De Orfeu, 1968)
***
Os laços lentamente deslaçados
ergo o meu canto sem razão nem regra
ao mundo sem fronteiras que me afronta.
O rosto que compus já não comporta
o fogo original que aprisionou.
Falso destino meu que me guiaste
além de onde é possível fingimento,
se a alma gretaste de raízes ocas,
às verdadeiras que já não comando
deste o caminho que eu tinha vedado.
E sei agora, que me desconheço,
que só inteiro poderei voltar
ao fértil todo amorfo donde vim.
(De Nunca mais rosas, 1958)
II BIENAL INTERNACIONAL DE POESIA DE BRASÍLIA – Poemário. Org. Menezes y Morais. Brasília: Biblioteca Nacional de Brasília, 2011. s.p. Ex. único.
Cabe ressaltar: a II BIP – Bienal Internacional de Poesia era para ter sido celebrada para comemorar o cinquentenário de Brasília, mas Governo do Distrito Federal impediu a sua realização. Mas decidimos divulgar os textos pela internet.
Líquido amor
Líquido amor
meu lago de narciso
onde pra ver-me não posso penetrar
e onde penetro sempre
porque na minha imagem destruída
talvez te encontre a ti
se tu existes
e então existiria
para o lado de lá da ironia
com que nem finjo já sequer acreditar
no que procuro sempre
porque já sei demais que esta procura
é o seu próprio fim
para que eu teça
e seja
o falso corpo construído
verdadeiro
da minha luz perdida
se tivesse havido luz
que eu pudesse ter perdido
mas nem lagos há
onde
me olhando
eu veja a tua imagem
há o teu corpo
há o meu corpo
há esta raiva fria
que prevê
e além da roupa e do perfume
em que fingimos nossos corpos
não temos nada mais que ossos e sangue
os lagos que os rochedos separaram
pra que não possam mais que refletir
a sua bloqueada comunhão
(De O Lago Bloqueado, 1977)
Não há mistério
Não há mistério
há corpos
com saídas e entradas
que se encontram
e articulam o serem divididos
não há não há mistério
e só assim conheço a minha imagem
onde mais me desconheço
no teu corpo
minha imagem verdadeira
como quis sempre não saber
há corpos
corpos apenas que não são embrulhos
de alma
nem morte redimida pela vida
por isso meu amor vejo-me em ti
porque te desconheço
e também te vejo em mim
mas não falo já de mim nem para ti
porque não és o corpo
que reflicto
à tua semelhança
que no entanto é tudo quanto sou
sossega meu amor
não há mistério
meu amor
meu excesso frio de paixão
há corpos
há corpos que se encontram
e se sondam
até que os corpos parem de morrer.
(De O Lago Bloqueado, 1977)
Eu sabia por ela as estações
Eu sabia por ela as estações
os esquilos os corvos as gaivotas.
Chegada a primavera abria os nós
em flores precipitadas e carnudas
de longas redondezas tacteantes
que batiam no vidro da janela.
Não dava fruto a minha castanheira
e na verdade não era sequer minha
ou só seria porque nos olhámos
cada manhã por mais de trinta anos.
Mas dava flores e esquilos e gaivotas
verão outono corvos primavera
sem contabilidades biológicas
doutras fertilidades transmissíveis.
Dava flores como se desse versos
sem precisar por isso de escrevê-los
como os amantes se amam num só corpo
sem ver onde um começa e o outro acaba
aberta toda em lábios vaginais
com uterinos longos falos brancos.
Também este ano floriu no tempo certo.
Mas o inverno chegou em plenas maias.
Disseram que a raiz rachou ao meio
que o centro do seu tronco estava oco
não percebiam como tinha flores.
Cortaram membro a membro a minha árvore
ficou só a raiz e o seu vazio
e sobre o campo em volta a neve quente
das suas flores perplexas
impossíveis.
(De Viagem de Inverno, 1995)
Na mesma estrada de sempre
Na mesma estrada de sempre
o mesmo velho de sempre
dava corda ao realejo
que toca sem fazer som
tem as mãos da cor da terra
tem os pés presos à terra
vai tocando o realejo
sem se importar com o som
quando parti já lá estava
já era um velho que estava
a tocar o realejo
que rodava sem ter som
certamente tocou muito
certamente sabe muito
porque toca um realejo
que não precisa de som
só os cães ainda ouvem
só rosnam enquanto ouvem
o eterno realejo
que faz música sem som
se o velho um dia morresse
se esquecesse ou se morresse
no silêncio o realejo
pararia sem um som.
(De Viagem de Inverno, 1995)
Tive uma amiga que ambicionava escrever
Tive uma amiga que ambicionava escrever
poemas de silêncio
trabalhou muito até que conseguiu
organizar numa mesa de vidro transparente
doze folhas brancas de papel em branco
com uma joia em cima de cada uma
para cada amigo receber
o seu poema de silêncio
quando fosse encontrada no robe branco
da morte branca que nos oferecia
cheguei a tempo de salvá-la
fizeram-lhe a lavagem ao estômago
não me perdoou a alma mal lavada
nunca mais nos vimos
viaja agora de país em país
sem joias sem poemas sem amigos
e telefona-me às vezes depois da meia noite
quando o silêncio raspa o vidro da janela
(De Colagens, 2011):
Página publicada em maio de 2008 e ampliada em maio de 2009. Ampliada em abril de 2019.
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