GUERRA JUNQUEIRO
( 1850-1923)
Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 15 de setembro de 1850 — Lisboa, 7 de julho de 1923) foi alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". Poeta panfletário, a sua poesia ajudou a criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República. Foi entre 1911 e 1914 o embaixador de Portugal na Suíça (o título era "ministro de Portugal na Suíça"). Guerra Junqueiro formou-se em direito na Universidade de Coimbra. Mais detalhes biografia em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Junqueiro
(conservando a ortografia da época)
ALGUÉM
Para alguém sou o lírio entre os abrolhos
E tenho as formas ideais do Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos
E se na terra existe, é porque existo.
Êsse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo idolatrado!
Nem meus amigos, e nenhum de vós!
Quando alta noite me reclino e deito
Melancólico, triste e fatigado,
Êsse alguém abre as asas no meu leito
E o meu sono desliza perfumado.
Chovam bênçãos de Deus sôbre a que chora
Por mim além dos mares! êsse alguém
É de meus dias a esplendente aurora,
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!
VITA NUOVA
(POEMA DE AMOR)
Ao ver-te o lânguido rosto,
O olhar suavíssimo e brando,
Como quem anda cismando
Nalgum íntimo desgôsto;
Ao ver-te aquela expressão
Dos olhos negros, profundos,
Que a gente pensa que estão
Pregados lá noutros mundos,
Como o olhar dum querubim
Se enlaça no olhar de mãe:
Ao ver-te cismar assim,
Fiquei cismando também.
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Eu era a flor que nasceu
Escondida entre os abrolhos:
Chegou-me a luz dos teus olhos
E vi logo a luz do céu.
Como a andorinha ligeira
Leva no bico uma flor,
Levaste-me a vida inteira
Na asa do teu amor.
Quem tivera mil amôres
Para todos tos mandar,
Como um punhado de flores
Que andam dispersas no ar ...
Que martírio inda não visto,
Ai! que martírio sem fim!. ..
Se eu pudera ser o Cristo
E tua a cruz de marfim!
Passei-te rente ao mirante,
E dei de cara contigo,
E tu lançaste ao mendigo
O teu olhar - um diamante.
E eu, levantando do chão
A esmola, o cândido aljofre,
Meti-o dentro dum cofre,
Meti-o no coração.
Meu coração é quadrante,
Quadrante do meu desejo:
Nas horas em que te vejo
Não marca mais que um instante.
Como a lâmpada sombria
Balouçando a frouxa luz
Por defronte duma cruz
Tôda a noite e todo o dia:
Assim paira esta minha alma
Diante da alma tua ...
Como paira incerta e calma
Pelos céus a luz da lua ...
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Quando a lua se alevanta
Cheia de pálida luz,
Como o rosto duma santa,
Como a face de Jesus;
Também eu, num vôo imenso,
Remonto ao céu dos amôres,
Como o perfume das flores,
Ou como nuvem de incenso.
Quando dorme a branca luz
Num clarão incerto a vago,
Como um cisne que flutua
Nas águas mansas dum lago,
Também est'alma languesce
Ao ver-te, rosa de luz,
Como virgem que adormece
No supedâneo da cruz ...
Quando a lua vai medindo
No céu, a curva do amor
Como lágrima caindo
Pela face do Senhor,
Também minh'alma dolente
Busca teu seio de arminho,
Como a ave busca o ninho,
Como Ofélia na corrente.
POEMAS E CANÇÕES HEROICAS MARCIAIS (guerreiras). [edição sem nome do organizador, sem local e nome da editora, nem ano de publicação. Apresentação de Márcio R. 14 x 21 cm. ilus.
Ex. bibl. Antonio Miranda
CANÇÃO DA BATALHA
Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria...
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes...
Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d'arsenais;
E bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.
Acendei a fornalha enorme? a Inspiração.
Dai-lhe lenha —A Verdade, a Justiça, o Direito?
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E p'ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!
Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
E quem espalha a luz nessa amplidão sonora...
Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!
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JUNQUEIRA, Guerra. A Velhice do Padre Eterno. Porto: Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, L.da. editores. – 1911 268 p. ilus. Edição ilustrada por Leal da Câmara. 268 p. ilus. Capa dura
13 x 19 cm Ex. bibl. Antonio Miranda
PARASITAS
No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento...
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o mesmo arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus,
E eu, ao ver esse quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da cruz,
Que andais pelo universo, há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.
O PAPÃO
As crianças teem medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,
Para larvar no bolso ou no capuz dum frade.
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens mêdo ao bárbaro papão,
Que ruge pela bôca enorme do trovão,
Que abençôa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos teem escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!
EURICO
Eurico, Eurico, ó pálida figura,
Lastimoso, romântico levita,
Que nos serros do Calpe, em noite escura,
Ergues as mãos à abóboda infinita;
Rasga a página santa da Escritura;
O espírito da luz que em nós habita
Já não consente essa ideal loucura
Que faz do amor uma paixão maldita.
Deixa a solidão dos montes escalvados;
Não soltes mais os trenos inflamados,
Nem tenhas mêdo às garras do demónio.
Beija a Hermenegarda, a tímida donzela,
E vão de braço dado tu e ela
Contrair civilmente o matrimónio.
CALEMBOUR
Ò Jesuítas, vós sois dum faro astuto,
Tendes tal corrupção e tal velhacaria,
Que é incrível até que o filho de Maria
Andando há tanto tempo em tam má companhia.
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JUNQUEIRA, Guerra. A Musa em férias (idílios e sátiras). Quinta edição, com o retrato do autor. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira; Livraria Editora, 1913. 238 p capa dura
Ex. biblioteca de Antonio Miranda
VISITA À FLORESTA
Que frescura meu Deus, e que deslumbramento!
Sancho Pança, vae pôr albarda ao teu jumento,
E conduze-o depressa aqui para eu montar,
Embebeda-me o azul, o céu, a terra, o mar!
Descalcem-me o coturno heroico da epopeia,
Não sei que cotovia olímpica gorgeia
Dentro de mim; não sei que hilaridade é esta!...
Satura-me o vigor profundo da floresta,
E debaixo do azul puríssimo, sem nuvens,
Sinto-me trasbordar, como um titan de Rubens,
N´uma explosão de força atlética, purpurea!
Entra-me nos pulmões a latejar com fúria
Esse excesso de vida imensas que atordoa!...
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Doe-me um tyrso virente e uma merenda bôa,
Que me quero perder nas solidões da mata,
Leva-me tu, Virgilio, o burro pela arreata.
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Ó clareiras do bosque! ó penumbras sagradas!
Como o sol entra aqui a rir às gargalhadas,
E como a natureza é virginal e é pura
A alma se me esvae, fundida de ternura,
Em murmúrios d´amor, em extais de crente!...
Como isto moralisa e diviniza a gente!
Dá-me vontade de ir subindo essas encostas,
Ajoelhando, a beijar a terra de mãos postas!
Eu quizera enroscar-me aos robles como a hera,
Ser perfume no lirio e ser vigor na féra,
Desfazer-me, diluir-me em luz, em ar, em côres,
Semearem-me e nascer todo o meu corpo em flores,
Com as águias voar no oceano do infinito,
Ser tronco, ser réptil, ser musgo, ser granito,
De fórma que eu andasse, em átomos disperso,
No céu, no mar, na luz, na terra — no universo!...
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Entre este fecundar de seivas luxuriantes,
Entre a vida brutal das árvores gigantes
Levantando ao azul os pulsos seculares,
De catos, de jasmins, de silvas, de roseiras,
De serpentes em flora — isto é, de trepadeiras,
A crescer, a romper da terra funda, escura,
Debaixo d´esta rica egreja de verdura,
Traspassada da luz cruel do sol faminto,
Ó Natureza, ó Terra, ó minha mãe! eu sinto,
Sinto bem que nasci do teu enorme flanco,
E que o homem e o tigre e o cedro e o lirio branco
São filhos a quem dás de mamar no teu seio
Eternamente bom e eternamente cheio!
GRUPO ANTIGO
Há em frente ao meu quarto um roble. — uma floresta
N´um tronco só. Podia ali dormir a sesta
À sombra Adamastor. Uma vide gigante
(A vide era a serpente e o roble era o elefante)
Enroscou-lhe, atirou-lhe os seus braços violentos,
E subindo e trepando a todos os momentos,
Um seculo gastou para ao alto chegar,
O roble enche um celeiro e a vide enche um lagar
E a vida de tal forma o carrega, o inunda
Co´a riqueza brutal, co´a fartur jacunda
Dos festões de verdura opípara e frondosa
Que eu nas áureas manhãs de Março, côr de rosa,
Jugo por entre o sol as nevoas ligeiras
Ver Hercules a rir com Bacho às cavaleiras!
CONSELHOS ACADEMICOS
Procurae com todo esmero
A sobriedade, o aticismo:
Um gigante é um exagero,
E um vulcão é um gongorismo.
Ó aguias, para sofrerdes
Do sol o rubro clarão,
Deveis pôr lunetas verdes,
Como o meu tabelião.
A luz de naus causa danno:
Emudece o rouxinol;
Vá lá cima Quintiliano
Pôr um abat-jour no sol.
O estilo rico e brilhante,
Feito de alvoradas d´oiro,
É como as mãos d´um marchante
Tintas no sangue d´um toiro.
Não mergulheis a paleta
No arco da aliança, artistas;
Fez Deus essa taboleta
Como reclame aos droguistas.
A doida orchestra — a procela
Rebenta, estoira, assobia;
Venha um mestre de capela
Dar-lhe lições de harmonia.
E esse cantor arruinado,
Rouco, epiléptico — o mar
Precisa um triple castrado
Para aprender a cantar.
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Página ampliada e republicada em janeiro de 2024.
Página ampliada e republicada em janeiro de 2022
Página publicada em outubro de 2015;
Página ampliada em setembro de 2020
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