http://www2.uol.com.br/entrelivros
GONÇALO M. TAVARES
escritor português nasceu em 1970 em Angola, Luanda. Há seis anos publicou a sua primeira obra.
Recebeu os mais importantes Prémios em Língua portuguesa: o Portugal Telecom 2007; o Prémio José Saramago 2005 e o Prémio LER/Millennium BCP 2004 com o romance - "Jerusalém" (Caminho); o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do Jornal Expresso, com o livro O Senhor Valéry (Caminho); o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com Investigações.Novalis (Difel) e o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores "Camilo Castelo Branco" com água, cão, cavalo, cabeça (Caminho).
Os seus livros deram origem a peças de teatro, objectos artísticos, vídeos de arte, ópera, etc. Tem 21 livros a serem traduzidos em mais de dezasseis países.
O romance "Jerusalém" foi incluído na edição europeia de "1001 livros para ler antes de morrer – um guia cronológico dos mais importantes romances de todos os tempos".
As duas velhas
São duas velhas, lado a lado, no café.
Não se olham: certezas em cada uma.
A da direita: dedos no ar ao ritmo das queixas.
O ar, dócil, percebe estas velhas: em poucos anos
serão suas companheiras.
Chama-lhes irmãs pequenas, ingênuas.
As velhas prosseguem vivas e a falar de dinheiro.
Deus é interrompido pelo preço do arroz, nas conversas.
Descrevem a doença, a fraqueza e, logo a seguir, acusam
de impiedade quem ainda não é tão doente quanto elas.
Alguém as enganou.
Provavelmente sacrificam a vida pelos filhos;
esperaram pelo futuro.
Agora ele chegou e a única novidade que traz é o cansaço;
a dificuldade de movimentos,
a maneira como facilmente se esquecem do que ainda ontem
consideravam imprescindível.
Não vão morrer, hoje, já, porque não trouxeram o coração.
Voltarão, mais tarde, a casa e às orações,
depois de desejarem intimamente que os filhos se tornem ricos
e que a amiga morra primeiro.
Sobre o mundo
O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
Espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
Em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
Ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
Excessivo. Monumentos que ocupam
Quilômetros quadrados são explicados por uma equação de
Dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
As equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
Constrói uma torre de observação no centro
Do mar. As águas não se bebem
Por inteiro, e nem toda a água é doméstica. o mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
Não existem; os cientistas
Colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
Do Mundo. Felizmente, fomos salvos
Pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
Antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
Monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
E mesmo assim crescem; tem células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
De grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
Não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
De descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
Alto que um banco de cozinha. O mundo
Não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.
O mapa
Sempre senti a matemática como uma presença
Física; em relação a ela vejo-me
Como alguém que não consegue
Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado
Apertada nas mangas.
Perdoem-me a imagem: como
Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja
E provocar com a nossa indiferença o desejo
Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um
Mundo onde entro para me sentir excluído;
Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação
Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,
Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever
Não é mais inteligente que resolver uma equação;
Porque optei por escrever?Não sei. Ou talvez saiba:
Entre a possibilidade de acertar muito, existente
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,
Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.
Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
TAVARES, Gonçalo M. Os velhos também querem viver. Rio de Janeiro: Editora Foz, 2014. 88 p. 13x21 cm. ISBN 978-85-66023-21-3
A seguir, uns fragmentos da “ficção”, em verdade, prosa poética:
“ Se os novos gostam de viver, os velhos também.
E por que razão a vida de um velho valeria menos
do que a vida de alguém que agora começa?
Que cálculos absurdos são esses?
E por que não o contrário?
Por que não proteger a sabedoria dos muitos anos,
em vez da excitação do jovem que ainda quer conhecer?”
(...)
Os velhos, note-se, sempre pareceram formas humanas
de, em plena vida, se publicitar a morte;
formas experientes de anunciar algo que se aproxima
por baixo, por cima, por todos os lados. É por isso injusto,
pensa Admeto, vai contra tudo o que é a lógica da
causa e do efeito,
do um mais um igual a dois,
um velho não dar um passo em frente;
não dizer: estou aqui, sacrifico-me; que o meu filho fique —
pois eu por aqui já fiquei o tempo suficiente.
Uma forma de não ver o pai é virar de costas.
Outra, é fechar os olhos; outra ainda, é colocar
entre um corpo
e o outro, distância, metros,
espaço vazio ou ocupado por obstáculos intransponíveis —
quer pelos olhos, quer pelo passo.
E eis o que, com raiva, diz querer Admeto:
virar as costas, fechar os olhos,
colocar entre si e o pai mil obstáculos, ou um apenas,
mas que baste: a partir daquele dia não mais o quer ver.
Sem esposa, porque morta,
sem pai, porque já o esqueceu,
eis Admeto: demasiada família perdida em tão pouco
tempo.
Página publicada em novembro de 2009; AMPLIADA em novembro de 2016.
|