GOMES LEAL
Antônio Duarte Gomes Leal (1848-1921)
Nascido em Lisboa, desde muito jovem frequentava a boémia literária. Temperamento múltiplo, revelou-se insubordinado a tôda atividade sistemática, deixando-se levar por atitudes excêntricas e teatrais. Estas leviandades leva-ram-no à miséria, chegando esta situação a perturbar seu equilíbrio nervoso. A estas dificuldades acrescentou-se a morte de sua mãe, o que veio aguçar sua crise, dando-lhe nuances de religiosidade angustiada.
Protegido insuficientemente por um amigo, veio a morrer, após perder inteiramente a razão.
Os Brilhantes
Não ha mulher mais pálida e mais fria,
E o seu olhar azul vago e sereno
Faz como o efeito de um luar ameno
Na sua tez que é mórbida e macia.
Como Levam ... esta mulher sombria
Traz a Morte cruel ao seu aceno,
O Suicídio e a Dor!... Lembra do Reino
Um conto, á luz crepuscular do dia.
Por isso eu nunca invejo os seus amantes!
- E em quanto ontem, gabavam seus brilhantes,
No teatro, com vistas fascinadas...
Tortura das visões... incompreensíveis!
Em vez deles, cri ver brilhar - horríveis
E verdadeiras lagrimas geladas!
UMA CANÇÃO DE HILÁRIO
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir
Era a diamantes bordado,
Como o luar num terrado!...
Parecia o céu estrelado,
Ou a visão dum "fakir",
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Se é a Via-láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!...
Nenhuma vista, nenhuma
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via-láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para animar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.
Côr da lua, os sapatinhos
Eram mais sutis que o leque!...
Seu manto, púrpura e arminhos,
Não rojava nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio moleque.
Côr da lua, os sapatinhos
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembléia, em roda!
E a brilhante sala tôda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixo, ao ouvir, com graça,
Êsse brinde, em língua estranha!
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido.
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.
Quem era o moço viajante
Que fêz turbar a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fêz turbar a rainha.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair.
O OURO
Dizia o ouro à pedra: "Ente mesquinho.
Que profundo cismar sempre te prega
À beira duma estrada ou dum caminho,
Pasmada, mas sem ver, eterna cega?
Em vão o orvalho a ti te leva e rega!
Em ti não cresce nunca pão nem vinho,
Dura e inútil — o lôdo é teu vizinho,
E o homem só, por te pisar, te emprega.
Em ti só medra e cresce o cardo, os lixos, Tu serves só d'abrigo ao lôdo e aos bichos E ensaguentas os pés descalços, nus.
Oh! pedra! quanto a mim sou a riqueza!"
A cega disse então com singeleza:
— Eu também guardo no meu seio a luz!
Página publicada em novembro de 2020
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