GARÇÃO
– Pedro António Joaquim Correia Garção
(Lisboa, 13 de junho 1724 — Lisboa, 10 de novembro 1772) foi um poeta português. Frequentou a Universidade de Coimbra mas não terminou os estudos. Exerceu o cargo de escrivão na Casa da Índia. A sua atenção pública e literária apresentou-se mais ou menos obscura. Pouco a pouco antes de morrer incompatibilizou-se com o Marquês de Pombal.
A esposa, D. Maria Ana Xavier Fróis Mascarenhas de Xande Salema, trouxe-lhe avultados bens, desaparecidos, mais tarde, em litigio judicial. A perda da fortuna não representou a sua única desgraça; ocorreu-lhe a prisão, a principio em segredo; após na sala livre. Quando, graças à dedicação da mulher, ia ser solto, faleceu.
A causa da sua prisão até hoje não está devidamente averiguada. Supos-se que fosse por causa de um poemeto ao infante D. Pedro, em que se não consentia que se fosse levantada uma estátua, e no qual se quis ver uma crítica ao Marquês de Pombal, que mandara colocar o seu medalhão no monumento a D. José I. A hipótese é inaceitável, porque o encarceramento ocorreu em 1771, datando a estátua de 1775. Outros atribuiram o caso a uma aventura amorosa com a filha do intendente escocês MacBean, de cuja hospitalidade teria abusado; contudo, nada se esclareceu e a imaginação elaborou livremente o aspecto fantasioso.
A obra de Correia Garção abrange múltiplos aspectos, ressaltando a sua atividade de legítimo teórico e orientador do Classicismo. Cultivou a sátira horaciana e foi excelente metrificador.
(...)
Garção também foi autor, entre outras obras, de Obras Poéticas e Discursos Académicos.
Biografia completa em: https://pt.wikipedia.org/
SONETO
Três vezes vi, Marília, de alva lua
Cheio de luz o rosto prateado,
Sem que dourasse o campo matizado
A linda aurora da presença tua.
Então subindo à serra calva e nua,
De um íngreme rochedo pendurado,
Os olhos alongando pelo prado,
Chamava, mas em vão, a morte crua.
Ali comigo vinham ter pastores,
Que meus suspiros férvidos ouviam,
Cortados do alarido dos clamores.
Tanto que a causa do meu mal sabiam,
Julgando sem remédio minhas dores,
Por não poder-me consolar, fugiam.
ODE
0 suicídio
Rompa-se embora do estelante assento
A máquina lustrosa;
Conspire-se em meu dano a terra toda,
E a fortuna perversa;
Mil duras portas de pesado ferro
Sobre mim se aferrolhem;
E agrilhoado ao carro do triunfo
Me leve algum tirano:
A negra fome, a sórdida penúria
Vão-me escoltando os passos:
Sobre deserta inabitada praia
Me ponha a tirania;
Agudos dentes de raivosas feras
Contra mim se aparelhem:
Risonho, alegre, intrépido, constante
Me há-de ver o universo.
Enquanto em mil pedaços se despenhe,
E me afogue em ruínas,
Lá sai, lá corre de ignorado mundo
Um espectro medonho
Mas agradável à romana gente
E ao Bretano inflexíbil;
Dos heróis divindade; eis o Suicídio,
O refúgio dos sábios.
Sanguinoso punhal na mão sustenta,
O escudo da desgraça
Com que se opõe à tirania infame,
À inveja e à soberba.
Sobre montões de desmembrados corpos,
Sobre abatidas águias,
Em tristes restos de estandartes rotos
Entre extintos soldados,
Que em vão a pátria libertar procuram
Das mãos da tirania,
Lá vejo estar com intrépido semblante
O magnânimo Bruto,
Que nos sanguíneos campos de Filips
Fica vencido e roto;
Mas que um triunfo mais altivo e nobre
Já de si mesmo alcança,
Com que as correntes ríspidas suplanta
Do ditador soberbo.
Por que Roma não sirva, a César mata;
Com o mesmo duro ferro,
Por que a César não sirva, expira Bruto.
Eis como a liberdade
Do tirano e da morte, Bruto alcança
Nos campos de Filips.
E o génio tutelar da infeliz pátria,
Em Útica expirante,
Por que ao duro Pompeu não sirva, morre.
As faixas despedaça,
Que as f’ridas tampam do sagrado peito:
Nunca é Catão mais forte!
No quente banho Séneca expirando
Vence o pérfido Nero.
Doce refúgio de fatal desgraça,
Eu te abraço contente;
Tu és o meu escudo impenetrável
Contra empenadas setas,
Que a indigência e a penúria em vão disparam.
Todos podem a vida
Tirar ao homem na mesquinha terra;
Ninguém lhe tira a morte.
ODE À VIRTUDE
Ligado com aspérrimas algemas
Ao rígido penedo;
Com um agudo cravo de diamante
O peito traspassado;
Convulso o rosto, e tinto em negro sangue,
Que brota da ferida,
As sonoras pancadas do martelo,
Com que bate Vulcano
Nas cavernas do Cáucaso retumbam:
Porém constante e forte
Não geme Prometeu; antes acusa
A Júpiter de ingrato:
Inocente se julga; à força ímpia
Não cede do tirano.
Assim, assim, a mísera pobreza,
A contrária fortuna
Deve imóvel sofrer uma alma grande,
Ó Sousa esclarecido!
Varra o credor soberbo a pobre casa
Co desabrido alcaide;
Dorme no duro chão tão descansado,
Como no leito brando,
O intrépido varão, que do destino
Prova os fatais revezes.
Coa dourada carroça o mole eunuco
O pise ou atropele,
Não lhe inveja a riqueza. Que outrem lavre.
Nas ribeiras do Tejo
Cos malhados bezerros longa terra,
Não lhe acorda a cobiça.
Vente embora do Sul; caindo, açoite
Ao negro mar que brada,
O pluvial Arcturo; a vara creste
Do podado bacelo
Espessa chuva de árida saraiva;
Nada lhe abala o peito.
Enroscada no braço macilento
A venenosa serpe
Chegue ao seio cruel a triste inveja;
E a pérfida mentira
Cos titubantes beiços o crimine,
Rirá no cadafalso.
Só dos delitos pode o vil remorso
Mudar-lhe a cor serena
Do tranquilo semblante: a mão potente
De quem o fez só teme.
Os homens não receia, que a virtude
O coração lhe anima;
E a consciência sã, a fé intacta,
Os austeros costumes.
Não fantásticas honras isto ensinam.
Assim douram a morte
Os Uticenses, Régulos, os Mários,
Apesar do sepulcro.
Sobre as asas do tempo assim passaram
As letárgicas ondas
Do rio sonolento. Assim c'roado
De gangéticas palmas,
O destemido Castro n'alta serra,
Que templo foi de Cíntia,
Retirado vivia; a mão invicta,
Terror e glória d'Ásia,
Os silvestres arbustos cultivava,
Subjugando a vaidade.
"Passe à gineta o tímido guerreiro,
Que com as armas limpas
Da batalha fugiu espavorido;
Porque do sangue antigo
A árvore apresenta. Ainda que honrado,
O desvalido mostre
As roxas cicatrizes das feridas
Que sofreu pela pátria,"
Dizia o grande Castro. O lisonjeiro
Estudando o segredo
De agradecer desprezos, não se afaste
Da sala do ministro.
Ali dourando o sol os altos montes
Na madrugada veja;
Ali o deixe a lua, que vermelha
No horizonte metida,
Estende os frouxos raios pelas ondas;
Se com pública fraude
Ao miserável órfão a capela
Subnegar-lhe pretende.
Aspire à beca o julgador iníquo,
Que aos olhos da justiça
Roubou a santa venda, que equilibra
Nas vendidas balanças
Os dourados delitos. Sofra, e busque
A vergonhosa cena
Da súbita catástrofe o privado,
Que o rosto não conhece
Da clara fama, da imortal me
mória,
Da honra, e da virtude.
Mas qual Marpézia rocha, um peito forte
Não roga, não se abate.
Página publicada em setembro de 2020
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