FERNANDO GUIMARÃES
Fernando Guimarães nasceu no Porto em 1928. Tem-se notabilizado como poeta, ensaísta e tradutor. A sua obra poética encontra-se reunida nos seguintes livros: Casa: o seu Desenho, IN-CM, 1985; Poesias Completas, vol. I: 1952-1988, Edições Afrontamento, 1994; A Analogia das Folhas, ed. Limiar, 1990; O Anel Débil, Edições Afrontamento, 1992. A sua obra ensaística orienta-se para o estudo de questões teóricas, ligadas à estética, e da evolução da poesia portuguesa nos últimos cem anos, a partir de grandes movimentos como o Simbolismo, o Saudosismo ou o Modernismo. Nestes dois domínios publicou: A Poesia da "Presença" e o Aparecimento do Neo-Realismo, Ed. Brasília; Linguagem e Ideologia, ed. Lello; Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, ed. Lello; Poética do Saudosismo, ed. Presença; A Poesia Portuguesa Contemporânea e o Fim do Modernismo, Editorial Caminho; Poética do Simbolismo em Portugal, IN-CM; Conhecimento e Poesia, ed. Oficina Musical; Os Problemas da Modernidade, ed. Presença. É também autor de um livro de narrativas: As Quatro Idades, ed. Presença, 1996. Traduziu, em livro, poemas de Byron, Shelley, Keats, Dylon Thomas e, em colaboração com Maria de Lourdes Guimarães, Hugo von Hofmannsthal e Elaine Feinstein.
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De
Fernando Guimarães
LIÇÕES DE TREVAS
Ilustrações de Flor Campino
Prefácio de Maria João Reyard
São Paulo: Escrituras, 2006
120 p (Col. Ponte Velha)
ISBN 85-7531-231-6
"O presente que assinala, poema a poema, o fluxo intermitente de um tempo interior, funciona simultaneamente como eixo de uma enunciação ostensivamente dialógica. Abrir um livro é dar-se cona daquela distância intransponivel em que se vislumbra o rasto de quem o escreveu." MARIA JOÃO REYNAUD
O ANJO AFLIGIDO
Há muito que se conserva ali sozinho. Adivinha-se o esforço que fazia
para esconder o próprio corpo. E que se tornaram nele as vestes
mais frágeis. A luz atravessa-as. Depois, uma ruga forma-se e descai
como uma suspeita. O que se pode saber de um sinal que fica
pouco nítido
e não era diferente do caminho de qualquer veia? Mesmo que se
estenda
uma das mãos, como se viesse agora proteger-nos, sabíamos como
este gesto
era para nós demasiado leve. Nada que lhe fosse atribuído podia sequer
existir. Sempre há-de tornar-se maior a agonia para quem se habituou
a olhar para tão longe. A claridade diminui. Espalham-se as
sementes
até onde ficava a sombra dos seus pés. Permanecem aí escondidas.
Talvez
procurassem o que se parecia agora com uma despedida. Há muito
esperava as preces que sabia estarem prometidas. Nenhuma dor
existe nele; mas todos os dias a pensa. Caídas pêlos olhos, as lágrimas.
ÚLTIMO REQUIEM
Onde fica guardado o tempo? Posso agora dizer
que é dentro dos olhos. Mesmo que se conservem assim límpidos
acabam por pousar neles algumas folhas. Desejaria
que fosse mais fácil este caminho onde se encontra
o vestígio de outros passos, uma voz quase extinta. Sei
como o repouso é menos que uma palavra. Dali vemos
as mesmas ondas que se julgava estarem há muito esquecidas,
a neblina que parece ser um arco onde se reúne
este pressentimento que vinha ao nosso encontro
sem o sabermos. Reservo alguns instantes para a profundidade
da água; outros para o modo como estremecem as mãos.
METAMORFOSE
Ao longe viste os ramos do que somos
tocados pelo vento. Os mesmos lábios
disseram o que em ti se espalha como
a areia, estas dunas, o prenúncio
da substância extrema que se amolda
a tudo. E unidos ficam por mais tempos
até que sejam a dispersa forma
de se perderem num mais firme gesto
que dissipe as sementes junto aos sulcos
há muito entreabertos para serem
o lugar de repouso. Este era o súbito
vislumbre das suspeitas que nos trazem
o impulso com que possas receber
apenas outro dom, a identidade.
ENCONTRO
Ficava ali, por muito que se estranhe
a luminosidade em que se mostra
uma outra superfície, a que nos há-de
aproximar daquilo que contorna
este limite. Assim era o desígnio
que vinha de uma idade quase extrema
porque seria a vida nela um límpido
espaço que nos une sempre à mesma
vontade de cumprir o que no corpo
pudesse ser igual ao movimento
capaz de recordar o leve assomo
das mãos. E surpreendemos o que há muito
se conservava apenas no sereno
encontro de nós mesmo, que era tudo.
Página publicada em janeiro de 2011, a partir de um exemplar da obra gentilmente enviado pela editora e por intermediação de Floriano Martins.
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