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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FERNANDA DE CASTRO

 

 

Maria Fernanda Telles de Castro de Quadros Ferro (Lisboa, 8 de Dezembro de 1900 – 19 de Dezembro de 1994), foi uma escritora portuguesa.

 

Fernanda de Castro, filha de João Filipe das Dores de Quadros, Oficial da Marinha, Goês, e de sua mulher Ana Laura Codina Telles de Castro da Silva, fez os seus estudos em Portimão, Figueira da Foz e Lisboa, tendo casado em 1922 com António Joaquim Tavares Ferro. Deste casamento nasceu António Gabriel de Quadros Ferro que se distinguiu como filósofo e ensaísta e Fernando Manuel Teles de Castro e Quadros Tavares Ferro. A sua neta, Rita Ferro também se distinguiu como escritora.

 

Foi juntamente com o marido e outros, fundadora da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, atualmente designada por Sociedade Portuguesa de Autores. O escritor David Mourão-Ferreira, durante as comemorações dos cinquenta anos de atividade literária de Fernanda de Castro disse: "Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite".

 

Parte da vida de Fernanda de Castro, foi dedicada à infância, tendo sido a fundadora da Associação Nacional de Parques Infantis, associação na qual teve o cargo de presidente.

 

Como escritora, dedicou-se à tradução de peças de teatro, a escrever poesia, romances, ficção e teatro. Foi autora do argumento do bailado Lenda das Amendoeiras (Companhia Portuguesa de Bailado Verde Gaio, 1940) e do argumento do filme Rapsódia Portuguesa (1959), realizado por João Mendes, documentário que esteve em competição oficial no Festival de Cannes. Também se encontra colaboração da sua autoria nas revistas: lllustração portugueza (iniciada em 1903), Contemporânea [1915-1926), Ilustração  (iniciada em 1926) e ainda na Mocidade Portuguesa Feminina: boletim mensal (1939-1947).

 

 

DIA DE SOL

 

Dia de sol! Manhã de sol! Hora de sol!

Manhã lavada, rútila, estival...

Passam varinas a cheirar a sal...

Dia de sol! Manhã de sol! Hora de sol!

 

Domingo claro, alegre, cristalino

como as notas metálicas dum sino,

como um toque estridente de clarim...

O sol entra nas almas

como o hálito quente dum jardim.

 

Andam pregões suspensos sobre a rua:

"Dez tostões o salamim,

quem quere azeitonas novas?"

E o eco prolongado continua:

"Quem quere azeitonas novas?"

Amanheceu um dia claro e ardente

com sol, com muito sol em toda a gente.

Elétricos ligeiros e amarelos

mordem as calhas...

As rodas são martelos

arrancando faíscasaos rails, que parecem duas riscas

 

de prata nova sobre o chão cinzento...

 

— DaFundo, Lumiar, Brasil, São Bento...

Cada qual vai atrás do seu destino

através do ambiente campesino

que tem Lisboa num domingo assim...

 

Lá vai galgando, aos poucos, o Alecrim

um carro a transbordar de gente moça

que tem na pele um rebrilhar de louça.

Dois a dois, de mãos dadas e almas dadas,

vão merendar nas sombras das estradas.

Sendo tão desiguais e tão diversos,

cada par é uma rima destes versos...

 

Dia de sol! Manhã de sol! Hora 'de sol!

Dorme o Tejo debaixo dum lençol

de espinhaços, de fôlbis e de lascas...

— "Oh, leva as folhas, leva as cascas!"

No cais, por entre os barcos,

' a chapinhar nos charcos,

andam garotos a molhar os pés.

Lá vai um carro cheio para Algés!

Eles, os namorados, que eu distingo,

caras que vejo apenas ao domingo,

vestem os fatos bons, de cerimónia,

arrecadados na gaveta...

Borrifadas com água de Colónia,

elas vão procurar na cetineta

o brilho do cetim...

Nem cremes, nem olheiras, nem carmim...

Em vez do pó de arroz o pó das ruas...

Cabeleiras desfeitas e mãos nuas

sem luvas, sem anéis e sem verniz,

pobres e simples como Deus as quis.

A cor saudável da papoula

e um vago cheiro de cebola

que o perfume barato não disfarça...

 

E através da cidade,

que se estende, se enrosca e serpenteia

e parece bordada em talagarça...

— Cidade quase linda e quase feia...

através da cidade de Lisboa

em que soa e ressoa

o mar, o inquieto mar,

uma voz anda sempre a declarar

versos gostosos, frescos, sumarentos

— os frutos são os versos do pomar —

— "Quem quer'figos, quem quer'almoçar?"

E desafiando o sol, o vento, a chuva:

—- "Ah, uvinha, quem quer'uva?"

Ao longe, o mar,

ao ver-se desprezado,

tem ciúmes, não gosta,

e num grito salgado

manda logo a resposta;

— "'Viva da Costa!"

 

E este pregão marítimo é um anzol

a chamar, a prender toda a cidade...

Cada vez é mais clara a claridade...

Dia de sol! Manhã de sol! Hora de sol!

 

 

 

HATHERLY, Ana.  CAMINHOS DA MODERNA POESIA PORTUGUESA. 2ª. edição  S.l.:Ministério da Educação Nacional, Direção Geral do Ensino Primário, 1969. 121 p.  (Coleção Educativa, Serie G, n. 8)  11x16 cm.  Ilustração Mário Pacheco

 

ALMA, SONHO, POESIA

 

Entrei na vida

com armas de vencida;

 

Alma, Sonho, Poesia.

Quando eu cantava

o mundo ria,

mas nada me importava:

cantava.

 

Depois, um dia,

o mundo atirou pedras ao meu canto

e a minha alma rasgou-se.

Que seria?
Medo, espanto,

revolta ou simplesmente dor?

Fosse o que fosse,

o orgulho foi maior.

Com dez punhais nas unhas afiadas

e nos olhos azuis duas espadas,

eu nunca mais seria, nunca mais,

a que entrara na vida

com armas de vencida.

Agora o meu querer era mais fundo:

de um lado, eu, do outro, o mundo.

E começou a luta desigual

do tigre e da gazela.

 

A vencida foi ela.

Mas que louros colheu dessa vitória

o mundo cego e bruto?

O sangue dos Poetas? Triste glória...

Cinza de sonhos mortos? Magro fruto...

Oh, não, punhais e espadas!

Eu só quero cantar! Não quero ossadas

nem, sob os pés, 'um chão de campas rasas.

Eu só quero cantar! Só quero as minhas asas

e a minha melodia:

Alma, Sonho e Poesia...                    ^

Alma, Sonho e Poesia...

 

(De «Exílio»)

 

 

ASAS

 

Eu tenho asas!

Piso o chão como pisa toda a gente

mas tenho asas

de impalpável tecido transparente,

feitas de pó de estrelas e de flores.

Asas que ninguém vê, que ninguém sente,

asas de todas as cores.

 

Pequenas asas brancas que me afastam

das coisas triviais

e as tornam leves, fluidas, irreais

—pólen, nuvem, luar, constelações,

irisados cristais.

Asa branca minha alma a palpitar,

bater de asas o doce ciciar

de pálpebras e cílios.

Ó minhas asas brancas de cetim!

Revoadas de pássaros meus sonhos,

Meus desejos sem fim!

 

(De «Exílio»)

 

MEIRELES, Cecília.  Poetas de Portugal.   Seleção e prefácio de Cecília Meireles.  Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos Editora Ltda, 1944.   315 p.   (Coleção Clássicos e Contemporâneos, dirigida por Jaime Cortesão                                      Ex. bibl. Antonio Miranda

 

“Finalmente, a poetisa FERNANDA DE CASTRO estabelece a passagem de um século para outro, não só cronologicamente , por ter nascido em 1900, como pela sua filiação literária. O movimento de seus verso, a graça espontânea e o gosto dos temas da vida popular, o sentido decorativo da paisagem portuguesa revelam sua linhagem artística, que descende de Cesário Verde e Antonio Nobre. O aparecimento de seus primeiros livros marcou bem a particularidade se servir sua poesia a um mundo objetivo, a cuja sedução de luz e ritmo a poetisa são pode escapar sem trair o que possui de mais autêntico em sua personalidade.

 

 

O MERCADO

“Bem haja o sol! Parece uma laranja
a escorrer sumo...”
— disse a mulher d abarca num resumo,
olhando o sol de frente, em linha reta...
e eu pensei: de que vale ser poeta?

“Olá, cuidado! Não me pise a fruta!
Nem olha os pés, só porque tem chapéu!”
E eu penso, resignada
Há tanta gente bruta
sob este claro e luminoso céu!

Vou passando entre ruas de verdura...
apetece beber tanta frescura!

“Menina da hortaliça, faz favor?”
e logo surge, por detrás dum cesto,
uma fresca, uma linda e humana flor...s
— “Pronto, freguesa, quer levar o resto?”

Delgadinha, flexível como um junco,
tem a cara redonda, o narizito adunco,
e, à força do convívio, a rapariga
tomou a cor dos frutos e da giga.

Por um raro e curioso mimetismo
que lhes torna a aparência mais louçã,
as saloias que vendem hortaliças
são frescas, estivais como nabiças,
e cheiram a tomilho, a hortelã.

Leiteirinhas mais brancas do que o leite
descem das serras tristes e selvagens,
vergadas sob o peso das vasilhas...
Moças da serra sem nenhum enfeite,
trazem na pele o cheiro das pastagens,
passam airosas, sacudindo as bilhas.

Peixeiras há que em sua alegre roupa,
açodadas, esbeltas como guigas,
pela cidade vão legando as gigas
como barcos vogando, vento em popa.

Bendita seja a Praça da Figueira,
colorida, estridente, regateira,
como todo o mercado que se preza...
É bem esta a paisagem portuguesa
que se deve mostrar, como surpresa,
à colônia estrangeira.

“Morangos madurinhos! São de Sintra!
Mais barato? Pois não”! Ora a pelintra!”

E sobre as flores, os frutos, as mulheres,
o sol faz-se mais doce, mais dourado...
andam no ar, dispersos, mil prazeres,
e cada olhar reflete, apaixonado,
o paganismo ardente do mercado.

               
“Cidade em flor” – 1924.



A PASSAGEM DO CÍRIO

A poeira do caminho envolve e doira
o manto azul celeste,
a cabeleira desmanchada e loira,
o vestido pueril que a santa veste.

Nas suas mãos informes, tatuadas
pela humildade lenta dos altares,
ainda há sinais das rosas desfolhadas...

Nossa Senhora dos Mares,
Senhora de Nazaré,
Senhora do lindo jeito,
fazei descer a maré
e subir, em cada peito,
aquela doce, irresistível fé
que transformava os homens em meninos
e que subia ao céu na voz dos sinos.

Nossa Senhora do Mar
a caminhar na berlinda
com saudades do altar...
Senhora de roupa linda
e do brando olhar azul,
Santinha do lindo porte
que mesmo voltada ao sul
é sempre a estrela do norte.

Senhora de Nazaré,
Senhora dos mil milagres,
dos que partiram de Sagres
ao azar das caravelas,
e dos humildes barqueiros
de humildes barcos de velas,
que não procuram a glória
que a sua coragem deixe
entre as páginas da história,
mas que vão buscar o peixe
que os filhos pequenos comem.
Linda senhora do Círio,
manto azul e mãos de lírio,
a caminhar na berlinda,
tão mal pronta mas tão linda.

Cá de baixo da praia, os pescadores
quando a berlinda passa,
não se cansam de olha, presos na graça
dos seus olhos azuis e sonhadores.
De lábios mudos e almas bem à vista,
contam-lhes tudo: o seu destino amargo,
as lutas sobre o mar, os seus amores,
as madrugadas calmas de ametista,
a partida das barcas par o largo,
o regresso ao sol posto,
os ventos, as marés, a lua cheia,
tudo contam à Santa do seu gosto
que lhes sorri de entre as flores...

Alinhados na praia, sobre a areia,
os barcos são andores.

                   “Jardim” — 1928

 

 

 

 

 

Página publicada em julho de 2015

 


 

 

 
 
 
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