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EDUARDA CHIOTE
(1930-)
Eduarda Chiote nasceu em Trás-os-Montes (Bragança). Licenciada em Histórico-Filosóficas pela UL, foi directora do Centro Psicotécnico de uma grande empresa industrial e gerente comercial de uma outra — de Estudos e Realizações — ligada ao Cinema, onde trabalhou também como guionista. Estreou-se na literatura em 1975 com Esquemas (poesia), sendo incluída na A Jovem Poesia Portuguesa 1 com o fragmento «Estilhaços», a que se seguiu Travelling (livro em parceria com Helga Moreira em Quem Não Vier do Sul). Em 1983, publica o livro de ficção A Décima Terceira Ilha e a obra poética Altas Voam Pombas. Segue-se a publicação de A Preços de Ocasião (1987). Após um hiato, publica Branca Morte (1994) e A Celebração do Pó (2002). Não Me Morras (2004), seu último livro, foi considerado pela crítica como uma narrativa segundo a qual se atravessam vários géneros e subgéneros: o lírico, o trágico, o elegíaco. Regressa de novo à ficção com Vala Comum. Biografia: www.quasi.com.pt
Cega tragicidade
Hoje possuí-te o corpo
que te havia
abandonado. Estavas branco,
acabado de morrer
cegamente.
Só a Mim cabia o cobrir-te a nudez
com a toalha de banho
ou o abandonar-te
no quarto do hotel,
chamando o porteiro de
urgência.
Ainda há pouco,
tomado de contracções, o teu pénis enrijecera,
e, para meu espanto,
ejaculara sozinho
e atónito.
Lasso,
pendera para o lado esquerdo,
tombando
sob a tua virilha: um pequeno animal
dócil.
Toquei-o leve.
Reagiu, enfastiado.
Sustentava-o ainda uma tristeza
terrena: o resto de um cheiro
bom. A sémen.
Bebi-to, debruçada sobre
o que atravessara essa deliciosa
ferida, interrogando-a: — Então... és tu, prazer
amado, o fim de um homem?
A alma não dava, nele, o mínimo sinal
de recusa.
Colhi-a em minha boca.
E foi nesse instante que me apercebi
de que o nosso exílio
não seria nunca definitivo.
Debrucei-me sobre o recorte de teus lábios
e aspirei neles o sopro de minha
própria fala.
Queimava.
O teu corpo era agora o meu
— uma frieza como jamais havia sentido, definindo
as dês(razões) do meu copular
a morte.
Não há fronteira
O Poeta diz: a vida
é uma «merda» que precisa ser vista com o máximo
requinte.
O requinte do olhar. Olhar que o obrigue a pecar.
Porque a vida
tal como o olhar
exerce-se fora da inocência dos sentidos
numa mesma intenção
e cumplicidade: a da boca
cega
que procura já, da morte, o peito recém-nascido
e canibal.
Porque é nesse altar
onde o pavio aceso toda a noite fulgura
que os lábios se entreabrem: flagelados de jejum
e castidade — céu despedaçado pela
águia fraccionando
o espaço
das cidades.
Não há intimidade no mal — escreve o poeta exilado.
Vinda de onde, então,
Poesia,
a poderosa luz da tua absurda
generosidade?
Do «animal que se sente no mundo como a água
na água?» — Não se sabe.
Escreve-se por nada, Arnaldo, para ninguém,
para nada.
Por isso, implacável, a ti mesma
eu me ofereço — um osso duro de roer
mas que ácido floresce
no aroma que mistura o oiro à merda e o mar
ao sal.
Extraído de POESIA SEMPRE, revista da Fundação Biblioteca Nacional, Número 26, Ano 14, 2009, dedicada quase que exclusivamente à poesia portuguesa contemporânea, uma antologia organizada por Arnaldo Saraiva.
Página publicada em outubro de 2009
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