ANTÓNIO DE NAVARRO
( ANTONIO REBORDÃO NAVARRO )
António de Albuquerque Labatt Sotto-Mayor Pereira Navarro de Andrade nasceu a 9 de novembro de 1902, no solar materno de Vilar Seco, Nelas.
Fez os estudos liceais em Viseu, que apenas concluiu em Coimbra, onde se matriculou no curso de Direito na Universidade daquela cidade. Em 1922 subscreve uma mensagem enviada a António Sardinha, manifestando com outros companheiros a solidariedade com os ideais do movimento «Integralismo Lusitano».
É na "Lusa Atenas" que António de Navarro começa a publicar na revista «Contemporânea» em 1926, onde colabora com os poemas «Cantar d'Amigo» e «Duende». Em 1927, torna-se um dos principais colaboradores da revista «Presença». No ano de 1928, António de Navarro publica «Glauca», «Crânio» e «Ópio». No ano seguinte, publica «Thamar», «Deus», «Canção».
Apesar de ter frequentado Direito durante quatro anos, António de Navarro fez a sua licenciatura em Ciências Ultramarinas na Escola Superior Colonial de Lisboa, atual Instituto de Superior de Ciências Sociais e Políticas.
O seu primeiro livro publicado foi «Poemas de África» no ano de 1941, dedicado à memória da esposa Maria Eufémia Reis Ferreira, que morreu no ano anterior à publicação da obra e um ano depois de ter casado com António, em 1939.
Em 1942 publica o livro «Ave de Silêncio», e Franco Nogueira, em texto depois publicado no «Jornal de Crítica Literária», diz-nos: "Navarro é um poeta originalíssimo. Nenhum poeta hoje vivo tem como o autor de «Ave de Silêncio» capacidade de sentir pormenores mínimos e de extrair deles, por alteração dos seus termos lógicos, conceitos poéticos ou verdades poéticas de validade genérica".
Na coletânea «Poetas Novos de Portugal», editada em 1944 no Rio de Janeiro, pode António de Navarro mostrar-se ao público brasileiro. Já no ano de 1947 publicou «Ode à Manhã», que saiu como separata da revista «Portucale». Em 1951 Eugénio de Andrade, em homenagem à escrita de Navarro, dedica-lhe um poema na revista «Sísifo», intitulado «Para um pássaro». António de Navarro retribui a cortesia publicando em «A Serpente» o texto «Poema».
Adolfo Casais Monteiro, crítico da «Presença», no ano de 1952 não deixa de invocar o nome de António de Navarro para a mostra de poesia portuguesa contemporânea inserta na revista belga «Le Journal des Poètes». Em 1957, vem a lume o livro «Poema do Mar» com prefácio de Jorge de Sena. No ano seguinte, Navarro casa com Maria Amélia Gracinda Rodrigues, engenheira de formação, na igreja de Santa Isabel, em Lisboa.
Em 1971 publica pela Agência-Geral do Ultramar «Coração Insone». Neste mesmo ano, Adolfo Casais Monteiro, no prefácio que escreve para o livro de ensaios «A Poesia Portuguesa Contemporânea», que a livraria Sá da Costa virá a publicar apenas em 1977, lamenta não poder completar o conjunto (de ensaios) com artigos ou notas sobre os importantes António de Navarro, Sophia Mello Breyner e António Ramos Rosa.
Já no ano de 1980 é editado «O Acordar de Bronze», último livro em vida de António de Navarro, publicado pela Editora Pax, de Braga, e prefaciado por João Maia. Neste ano de 1980 faleceu a sua mulher em fevereiro, no dia 5, e a 20 de maio morreu António de Navarro, em Lisboa. Fonte da biografia: http://www.snpcultura.org
MONTEIRO, Adolfo Casais. A Poesia da "Presença" Estudo e antologia. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documentação, 1959. 364 p. (Coleção "Letras e Artes") 18x25 cm Impresso pelo Departamento de Imprensa Nacional. Inclui os poetas brasileiros: Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes. Ex. bibl. Antonio Miranda
BACANAL
Listas, fitas, bacantes nuas
apenas de lembrança,
apenas de Sombra,
esgares de magas de Goya,
contorcionismos de Chagall,
volitam velozes, dispersos no espaço
já baço e lasso da bacanal
que resvala, que se escombra
pela minha lembrança abaixo.
(Mas tudo, tudo em Sombra)
O ar é um bailado de Salomé,
e a minha memória, pé ante pé,
seus passos, suas pernas e seus braços.
Taças partidas os meus beiços
e o silêncio, extático e longo
como um Buda, um Deus concentrado
e mudo,
— os segredos que a mim diria
o vinho que não bebo e me alucina.
Todos saíram por mim dentro;
Só eu fiquei.
E a bacanal, então, então sim,
a comecei.
Sozinho com o Silêncio por companhia.
..........................................................
Apenas lembranças vagas de memória,
— esquírulas, migalhas, um resquício,
e a esquina d'um Som
e as letras quase sumidas
da palavra VIDA,
O Strophion
d'uma bacante despida,
esgares de magas de Goya,
contorcionismos de Chagall,
e uma palavra esquecida
na alma de tôda a gente —
— MORTE!
(Mas tudo em bruma n'uma sonolência d'ópio)
Foi Ela a minha companheira
neste final de banquete onde fui: —
todos os convivas,
o vinho, as mulheres, as iguarias,
ânsias de fome entre góticas ogivas
luxúrias,
tôda a bacanal,
em suma.
Comunguei Deus e Satanás
pelo mesmo pão, pelo mesmo vinho,
fui Estrutura universal,
pedra d'um caminho,
e uma onda que veio de longe e apenas deixou espuma
— A VIDA.
Lisboa, 1927
CHARLESTON
O jazz
zurze, risca losangos, gumes,
planos, ângulos, sonoros motes
arrancados de dentro das pandeiretas, cornetas, timball's
serrotes
tocados por Hotentotes saltitantes
que rasgam o espaço côncavo
com os fortes botes
dos sonoros motes volantes
do jazz-band d'Ho-ten-to-tes. . .
Andam no ar jogos malabares de fogos de Bengala
num batuque d'Hotentotes. . . d'Ho-ten-to-tes
sal-ti-tan-tes no redondel duma senzala.
E ela surge, tôda nua,
sob a poalha luminosa e crua
d'um foco d'arco voltaico,
que, incendiando o mosaico
de sua pele tatuada a côres,
lhe dá o aspecto bizarro
d'um bronze colorido,
d'um manipanso Hotentote.
O seu corpo, asa que se desgarra,
esmurra, esbarra,
em movimentos ágeis, elétricos,
com os sons do jazz
pensamentos alados de Farrabraz
que esvoaçam, veloces, veloces no espaço.
As pernas são apenas
dois movimentos instáveis,
trémulos, nos espaços,
em malabárico jôgo.
E os braços,
duas antenas
vibráteis, duas
asas de fôgo
e côr
numa pluma de labareda.
Os olhos são duas puas,
acerados gumes,
agudos ângulos,
orgias de fogos e lumes,
facas de prestidigitador
sonâmbulo.
Seu corpo, cansado e bambo
— tomba
sobre almofadas de Damasco, Raz,
e panos de Trebisonda.
E o jazz
continua, já lassa a pel' dos bombos,
bambas as cordas dos banjos.
Entanto o jazz zurze, risca
o espaço também já lasso e bambo.
OS MEDRONHEIROS
Nos braços verdes, nus,
pousou um bando,
verde, leve,
d'asas glaucas
anunciando
o ocaso do inverno
Cavalgada de Nibelungos que no longe se perde.
No estio,
o mês
do sol
se desfez
num chuveiro
d'oiro mol;
em cada gomo
— um bago d'oiro
a tentar-me!
Quem me dera,
medronheiro,
como tu,
dar um fruto
que pudesse embriagar-me!
Escuto,
das seivas o corpo ébrio,
todo nu,
bailando no silêncio
rumoroso da floresta,
onde o vento canta
— a eterna canção de gesta.
Os medronhos,
um a um,
vão caindo,
terminou o festim.
Nas taças, o vinho,
já tem sono,
já tem sonhos de mim.
E o outono
pelo oiro do caminho,
vindo,
vem bailando
na dança-dos-véus,
dança das névoas.
Terminou o festim.
Principia a saturnália das fôlhas-mortas.
BORDEL
Horas mortas. . .
... turvas...
tortas
agora
e tôda a hora. . .
. . . Amen
Portas tortas
bertas
hirtas
abertas
tortas
retortas
de trincos
e trancas
partidas
E tudo torto
. . . mas tudo. . .
tudo torcido
e contorcido
e turvo e torto. . .
. . . mas, sobretudo
mui. . . muito torto,
tão hirtamente. . .
. . . terrivelmente!
E há horas brancas
adormecidas
nas horas pretas
e há um fado
cantando
contando,
embalado,
a sina de tôdas
que tu, e eu, mais enlodas
(Baixinho, que ninguém ouça!
podem chamar-me doido. . . )
Pressinto,
quando entro,
não sei porquê!
o Cristo
e a Virgem Mãe
lá dentro
naquele antro
a par e ao pé
dum Mefisto
de quebranto
estranho encontro!. . .
Agora,
e tôda a hora. . .
. . . Amen!
EPITÁFIO
(Para o túmulo do poeta)
Na pedra rígida e austera
aonde o tempo grava a sua
legenda, que ninguém altera,
eu quero: — Êste homem sem lua
vivendo do império ou signo
desígnio, o seu imaginário
sonhou. Não tendo um ideário
ideou, como seu hepígono
um ser humano e onde o astral se expanda
natural, qual a mão que cose
o pano, ou carne, a pontos naturais.
Isso bastou para a alma ser-lhe vela panda
d'um barco, lépido, singrando
o mar, aonde, num sangrar,
as idéias sejam Ideais
reincarnando.
Na sua carne, assim, êle creu
(e crer é já humanizar à Deusa
sua alquimia imarcessível
d'onde escoa o escuro da gnose)
ter naturalizado o mar,
chamando-lhe — "Eu"
e, n'alma, Orfeu,
ânima da matéria em narcose
de novo endeuse em natureza
divina mas sensível
E crer n'alguma coisa, seja no que fôr
é já do seu mistério ver-se confessor;
olhar e ver
é já fixar de certo modo o seu não-ser.
POEMA
Procuro a cópia exata da minha vida
e não encontro (um deus não serve
um deus criei-o eu e êle depois degenerou em verve
na imaginação dos mais)
talvez uma criança adormecida
talvez se pareça com uma árvore
na mão dos temporais.
. . . Talvez se pareça com muitos pensamentos
que digam e contradigam e afirmem e neguem
— neguem o que afirmem como ventos
que façam andar mas depois já perseguem
na tempestade o barco à vela.
Parece-se talvez mais com os ventos
e com aquela estrêla de papel
que tem sonhos infantis e a esperança
de vir a ser a estrêla verdadeira
do bom-pastor ou da bonança. . .
... ou a estrêla da cegueira.
Talvez com uma árvore. . . talvez. . .
talvez com aquela frase que gravei no mármore
— azul ou verde, mas, deus, de que côr? —
que não existia e era feito talvez da dor
que tudo faz e tudo constrói numa ânsia
louca de exceder o criador.
Afinal parece-se com um poema de amor
dalguém que ame a distância
e a ingenuidade duma flor.
. . . E a dor, afinal,
é o mais individual
poema d'amor.
Nota —Nenhum destes poemas foi recolhido em volume, assim como muitos outros de Antônio de Navarro, um dos mais assíduos colaboradores da "Presença".
Página publicada em maio de 2017