A CATEDRAL DA NOITE
A catedral da noite é como um berço
onde habitam harpas, acordes que procuram
a forma indivisível da casa
em colunas erguidas à última corda dos céus.
Dizem que no meio estão os anjos todos brancos
e que aí a música dos ares abre
crateras amplas de fogo e de cristal.
E que nas entranhas da noite se move
o espírito do poema. Por isso
nas mãos, nos dedos,
cresce-me a cadência, o uso
de revolver a palavra no negrume
até descer ao silêncio
e ouvir o som.
A TAÇA, AS PALAVRAS
Quero palavras como fruta viva ou pão cozido ao sol
palavras verdes e roxas, com seiva a correr e bagas cheias,
palavras fermentadas entre a terra e a boca
ou palavras cereais
brotando no trigo das antemanhãs
Quero palavras que se possam plantar em campos extensos,
que estejam nuas e que mantenham intacto o orvalho
Ou palavras temperadas de oiro, entre o metal e a faísca
com o âmago do fogo puro
e a luz toda no seu centro
Afasto a taça das palavras ocas, apodrecidas
sob as trevas dos punhais
ENTRE CADÊNCIAS
Adormeço entre a bigorna e a cadência
dos relâmpagos. Escavo o minério
por entre os ramos despenhados da ausência
O ritmo partiu-se no ar
e levanto o rosto de encontro ao fogo
quebrado e cego
Hoje não dançaremos a noite
Sou um barco melancólico
entre as dunas do silêncio
ÚLTIMO SILÊNCIO
Queria morrer numa praia desassombradamente livre
morrer sentindo morrer o grito da gaivota -
a pele da areia iluminada como a pele
em torrão da minha pele
como rúbia acendalha do templo, do vidro negro
beber das faúlhas do regaço infindo,
entrar por todas as aberturas
do último silêncio.
Se gritarem o meu nome
do limiar onde os demónios se amam em loucura -
digam que engoli um astro vivo comprimido
que afogarei num leito de pérolas suavíssimas
com as mãos cheias de noite e de nada
numa praia desassombradamente livre
A MÃO E A HARPA
O sangue do crepúsculo
é artéria pulsante,
derradeiro cisne - que em ti
corre
e lavra
a travessia das horas.
A mão e a harpa
habitam mais tarde a palavra
recôndita nas conchas negras
onde a luz se banha.
A noite é feita de espelhos
e prodígios
ESTRANHO OFÍCIO
Estranho ofício este
navegar
o rio da palavra portentosa
pelas frestas deslumbradas
dos olhos. Ser nau
soçobrada no muro, rede na areia
pura, ouro decantado
da sombra. Sabemos
dos fogos altos, da luz arremetida
à órbita dos braços, do poder da raiz.
Dos leitos fechados do tempo
que gritam êxtases.
As palavras que escrevo
tocam mãos em outras mãos,
quando de meus dedos transborda a espuma.
Desço em ti, fonte luminosa,
maresia, fio inacessível,
nocturno espelho
do encontro
És a viagem alva dos crescentes
com o sangue da lua ainda fixo no ocaso.
Mordem-se espelhos
Seremos mar
nas noites, seremos
dança,
o diamante que se verte no recesso curvo,
o verso líquido
O mar chove-nos o sal todo:
sou uma partícula de luz
agarrada à pele da tua garganta
Extraído de:
CRISOL
Na capa: pintura de Ana Pinto
Introdução: Maria do Sameiro Barroso
LIGA DE SALAMANDRA
Deixei de estar – sou o ocaso abaixo
à terra alta, a lava
que não regurgitou o cúmulo
a figueira maldita
que escondeu os nados.
Sou portanto, invisível, aprendi
o princípio da lenha ardente -
apaguei na linha o brilho da salamandra
consumi-me na violenta secura do visco
na espuma pulmonar da dor:
tive uma liga feita
de vermelho ouro -
respirei na sofreguidão, rubesci-me -
mas poros de chamas
perfuraram-me, cravaram orifícios
na combustão do forno onde subiam
serpentes de fumo -
Uma estação não dei fruto
nem talos, nem rebentos, nem nervos
nem uma única flor crua:
amaldiçoei
o desacerto do tempo
Com mel árido escudei o âmago
e nunca mais vi a minha amálgama
nunca mais senti a ferida –
o manto incandescente a subir o sol das costas
AS GÁRGULAS
As gárgulas estão vivas nos olhos das catedrais
vomitando águas doces, minérios à crosta -
a boca do poeta regurgita a levedura,
lâmina, prata afiada, fecunda
à folha estéril.
Na primeira vigília - a noite dá início
à corda da garganta subtilíssima, o daimon
dança debaixo dos pés, levitando-os,
roda nas pernas, nos braços
que escrevem,
a palavra golfa às cavernas crescentes, agudas
À descida da lua, as gárgulas
mordem-na no bico -
afiam-na - os lábios ficam prenhes:
ululam as aves de pedra,
voam acima das calhas, gorgulham a linfa
despedaçam-se à luz obscura do verso
para se elevarem desnudas pela ferida,
arfando verdes, animalescas
em pedaços sombrios que deslumbram
Névoa que toca os corpos brancos, musgo
do mármore, leva-me também pelas artérias do pó
dobra-me a seiva vermelha, faz-me jazer
ao calcário das juntas angulares - que minhas
linhas insones sejam o olho da pedra líquida
das feras do templo
e minhas unhas sejam
o ângulo onde se debruça a palavra viva
MAPAS DE ALABASTRO
Noites em que se escuta
o gerar de cristais em mapas de alabastro -
Vésper costura à janela oclusa
um vestido de camadas e camadas de ouro
Noites em que pálpebras se abrem
completamente às veias do bosque
às bocas escarlates -
Nas pautas, os magos
estalam ponteiros de quartzo,
porque a vida
é um percurso ínvio, uma desconstrução,
um passo no vazio, uma lona de nenúfares -
uma água que golfa
a um corpo alagado em versos e sargaços
Algures aqui, despedaçou-se uma lira.
Uma placa entre pedras roladas tem escrito um nome
mas a velha ponte de troncos de pinheiro bravo
já não existe, é apenas uma história
na qual há muito tempo adormeci
As ninfas desceram, rolaram às lapas,
Desfizeram corolas, conchas,
arrebataram o tempo nas mãos
refizeram-se em rochas calcinadas
E um espectro de organza abre a água
numa língua incompreensível, sibila uma música absurda,
mas é tudo um sonho
entre vagas e vagas de rumores
sepultados sob as areias das ampulhetas
OS POETAS MALDITOS
É na garganta do abismo
que estão todos os poetas malditos.
Os vivos e os mortos: os vivos malditos
parecem-se com os mortos malditos
e os mortos ainda uivam
e por vezes dançam e correm
a mastigar a cevada da lua
Estão lá, não porque um engoliu
uns quilos de pedras,
ou a outro lhe chumbaram
um relâmpago na fronte,
ou ainda outro que era sofredor
de iluminações insones,
ou aquele que estarrecido em criança
olhou um charco sacudido pela beleza da luz
Triste destino têm todos eles:
os poetas malditos mortos
ficam para sempre vivos
e os poetas malditos vivos
são como mortos
O abismo é o ermo onde encontram
o seu próprio deserto. E no fundo do deserto
são loucos e são livres
Convém porém evitá-los,
tanto aos poetas malditos mortos
como aos vivos:
porque eles já percorreram
o caminho inverso
que faz o abismo ser o infinito estelar
e mais ainda, porque eles sabem
do poder da palavra