Fonte da foto e biografia: http://www.livroscotovia.pt/
A.M. PIRES CABRAL
A.M. Pires Cabral (1941) licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Coimbra. Foi Professor do ensino secundário em Vila Real, animador cultural, co-organizador das Jornadas Camilianas. Publicou até ao momento cerca de quatro dezenas de títulos de poesia, teatro, romance, conto, ensaio e crónica. Nos livros Cotovia publicou o romance O Cónego (2007) - distinguido com o Grande Prémio de Literatura DST - e os livros de poesia Douro: pizzicato e chula (2004), a que foi atribuído o prémio D. Dinis - Fundação da Casa de Mateus, As têmporas da cinza (2008), vencedor do Prémio Luís Miguel Nava 2009, Arado (2009) e Cobra d´água (2011).
CABRAL, A. M. Pires. gaveta do fundo. Lisboa: Tinta-da-china, 2014. 98 p. Ex. bibl. Salomão Sousa
A GAVETA DO FUNDO
A gaveta do fundo: onde guardava
brasas e joias de família –
ou seja, reservas de calor
para os dias do frio que aí vêm.
A gaveta do fundo:
forçada a fechadura, saqueada,
desmantelada em tábuas e ferragens.
Dada a beber às altas labaredas
que, bebendo, multiplicam a sede,
em vez de a extinguir.
***
PUNHAL EXCELENTE
Já quase não há, o punhal excelente
com que a mim próprio me esventrei algumas vezes
para melhor me desentranhar em versos –
– esse lícitos salpicos de lama,
essas coisas à toa, hossanas, ambições,
promessas, juras, astutas
ingenuidades: toda essa merda que há
dentro do poeta e com que ele gosta
de borrifar os outros. Para que
não se fiquem a rir.
E eis que agoniza: o gume rombo,
manchas inamovíveis de ferrugem,
incapaz de incisões, definitivamente
inoperacional o punhal excelente.
Paz ao seu aço.
***
A TERCEIRA VIA
Do alto deste monte, numa manhã assim,
só há duas coisas a fazer:
chatear deus ou deixar deus em paz.
Minto.
É claro que há uma terceira via
(mas dá muito trabalho):
fingir que não o vejo nem o oiço
do alto deste monte
na luz da manhã.
DO MAL O MENOS
Trago assanhada a veia da poesia.
Respinga como um falo escandecido
gotas de sémen, poluindo
tudo em redor. Uma vergonha.
Mas enfim, do mal o menos:
sempre é melhor trazer a poesia
assanhada do que ter, por exemplo,
a aorta dilatada.
Página publicada em setembro de 2015
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