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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

OCTAVIO PAZ

MÉXICO (1914-1998)

 

 

 

 

TRADUÇÕES DE FLORIANO MARTINS

 

 

Esta página integra o acervo inédito de Mundo mágico - Uma antologia crítica da poesia hispano-americana no século XX. Organização, tradução e notas de Floriano Martins. Cedida pelo Projeto Editorial Banda Hispânica:

http://www.jornaldepoesia.jor.br/BHBHportal.htm

 

 

 

 

Obra poética

 

Libertad bajo palabra (1935-1957). Fondo de Cultura Económica. México. 1960.

Salamandra. Joaquín Mortiz Editor. México. 1962.

Ladera este. Joaquín Mortiz Editor. México. 1969.

Pasado en claro. Fondo de Cultura Económica. México. 1975.

Vuelta. Ediciones Seix Barral. Barcelona. 1976.

Poemas (1935-1975). Ediciones Seix Barral. Barcelona. 1979.

Árbol adentro. Ediciones Seix Barral. Barcelona. 1987.

 

 

 

A POESIA

 

Chegas, silenciosa, secreta,

e despertas os furores, os gozos,

e esta angústia

que acende o que toca

e engendra em cada coisa

uma avidez sombria.

 

O mundo cede e se desmancha

como metal ao fogo.

Entre minhas ruínas me ergo,

sozinho, desnudo, despojado,

sobre a rocha imensa do silêncio,

como um solitário combatente

contra invisíveis tropas.

 

Verdade abrasadora,

para o que me empurras?

Não quero tua verdade,

tua insensata pergunta.

Para que esta luta estéril?

Não é o homem criatura capaz de conter-se,

avidez que só na sede se sacia,

chama que a todos os lábios consome,

espírito que não vive em nenhuma forma

mas faz arder todas as formas.

 

Sobes desde o mais fundo de mim,

desde o centro inominável de meu ser,

exército, maré.

Cresces, tua sede me afoga,

expulsando, tirânica,

aquilo que não cede

à tua espada frenética.

Já tão somente tu me habitas,

tu, sem nome, furiosa substância,

avidez subterrânea, delirante.

 

Golpeiam meu peito teus fantasmas,

despertas para meu tato,

gelas minha testa,

abres meus olhos.

 

Percebo o mundo e te toco,

substância intocável,

unidade de minha alma e de meu corpo,

e contemplo o combate que combato

e minhas bodas de terra.

 

Nublam meus olhos imagens opostas,

e as mesmas imagens

outras, mais profundas, negam-nas,

ardente balbucio,

águas que afoga uma água mais oculta e densa.

Em sua úmida treva vida e morte,

quietude e movimento, são o mesmo.

 

Insiste, vencedora,

porque existo tão somente porque existes,

e minha boca e minha língua se formaram

para dizer tão somente tua existência

e tuas secretas sílabas, palavra

impalpável e despótica,

substância de minha alma.

 

És tão somente um sonho,

porém em ti sonha o mundo

e sua mudez fala com tuas palavras.

Ao tocar teu peito roço

a elétrica fronteira da vida,

a treva de sangue

onde pactua a boca cruel e enamorada,

ávida ainda por destruir o que ama

e reviver o que destrói,

com o mundo, impassível

e sempre idêntico a si mesmo,

porque não se detém em nenhuma forma

nem se demora sobre o que engendra.

 

Leva-me, solitária,

leva-me entre os sonhos,

leva-me, mãe minha,

desperta-me do todo,

me faz sonhar teu sonho,

unta meus olhos com azeite,

para que ao conhecer-te me conheça.

 

 

 

PEDRA NATIVA

 

 

A Roger Munier

 

A luz devasta as alturas

Manadas de impérios em derrota

O olho retrocede cercado de reflexos

 

 

Países vastos como a insônia

Pedregais de osso

 

 

Outono sem confins

Ergue a sede seus invisíveis fornecedores

Um último peru predica no deserto

 

 

Fecha os olhos e ouve cantar a luz:

O meio-dia anima em teu tímpano

 

 

Fecha os olhos e abre-os:

Não há ninguém nem sequer tu mesmo

O que não é pedra é luz

 

 

Como as pedras do Princípio

Como o princípio da Pedra

Como ao Princípio pedra contra pedra

Os fastos da noite:

O poema ainda sem rosto

O bosque ainda sem árvores

Os cantos ainda sem nome

Mas logo a luz irrompe com passos de leopardo

E a palavra se ergue ondula cai

E é uma larga ferida e um silêncio sem mácula

A alegria madura como um fruto

O fruto madura até ser sol

O sol madura até ser homem

O homem madura até ser astro

Nunca a luz se repartiu em tantas luzes

As árvores as ruas as montanhas

Se desdobram em ondas transparentes

Uma jovem ri na entrada do dia

É uma pluma ardendo o canto do canário

A música mostra seus braços desnudos

Seu dorso desnudo seu pensamento desnudo

No calor se aguça o instante venturoso

Água terra e sol são um só corpo

A hora e seu sino se dissolvem

As pedras as paisagens se evaporam

Todos se foram sem virar o rosto

Os amigos as belas à margem da vertigem

Zarpam as casas a igreja os bondes

O mundo empreende o vôo

Também meu corpo se me escapa

E por entre as claridades se perde

O sol a tudo cobre a tudo vê

E em seu olhar fixo nos banhamos

E em sua pupila largamente nos queimamos

E nos abismos de sua luz caímos

Música precipitada

E ardemos e não deixamos marca

 

 

 

 

PEDRA DO SOL

 

 

La treizième revient… c’est encor la première;

et c’est toujours la seule – ou c’est le seul moment;

car es-tu reine, ô toi, la première ou dernière?

es-tu roi, toi le seul ou le dernier amant?

 

GÉRARD DE NERVAL, Arthémis.

 

 

Um salgueiro de cristal, um choupo de água,

um alto repuxo que o vento arqueja,

uma árvore bem plantada mas dançante,

um caminhar de rio que se curva,

avança, retrocede, dá um rodeio

e chega sempre:

                     um caminhar tranqüilo

de estrela e primavera sem pressa,

água que com as pálpebras fechadas

brota profecias por toda a noite,

unânime presença em marejada,

onda após onda até cobrir tudo,

verde soberania sem ocaso

como o deslumbramento das asas

quando se abrem na metade do céu,

 

um caminhar por entre as espessuras

dos dias futuros e o aziago

fulgor da desventura como uma ave

petrificando o bosque com seu canto

e as felicidades iminentes

entre os ramos que se desvanecem,

horas de luz que bicam então os pássaros,

presságios que escapam da mão,

 

uma presença como um canto súbito,

como o vento cantando no incêndio,

um olhar que sustenta no ar

o mundo com seus mares e montanhas,

corpo de luz filtrada por uma ágata,

pernas de luz, ventre de luz, baías,

rocha solar, corpo da cor de nuvem,

da cor de dia rápido que salta,

a hora cintila e tem corpo,

o mundo já é visível por teu corpo,

é transparente por tua transparência,

 

vou por entre galerias de sons,

fluo por entre as presenças ressonantes,

vou pelas transparências como um cego,

um reflexo me apaga, nasço em outro,

oh bosque de pilares encantados,

sob os arcos da luz penetro

os corredores de um outono diáfano,

 

vou por teu corpo como pelo mundo,

teu ventre é uma praça ensolarada,

teus seios duas igrejas onde celebra

o sangue seus mistérios paralelos,

meus olhares te cobrem como hera,

és uma cidade que o mar assedia,

uma muralha que a luz divide

em duas metades da cor de pêssego,

uma paragem de sal, rochas e pássaros

sob a lei do absorto meio-dia,

 

vestida da cor de meus desejos

como meu pensamento vais desnuda,

vou por teus olhos como pela água,

os tigres bebem sonho nesses olhos,

o colibri se queima nessas chamas,

vou por tua fronte como pela lua,

como a nuvem por teu pensamento,

vou por teu ventre como por teus sonhos,

 

tua saia de milho ondula e canta,

tua saia de cristal, tua saia de água,

teus lábios, teus cabelos, teus olhares,

a noite toda choves, o dia todo

abres meu peito com teus dedos de água,

fechas meus olhos com tua boca de água,

sobre meus ossos choves, em meu peito

afunda raízes de água uma árvore líquida,

 

vou por teu talho como por um rio,

vou por teu corpo como por um bosque,

como por uma trilha na montanha

que termina em um brusco abismo,

vou por teus pensamentos afiados

e à saída de tua branca fronte

minha sombra despenhada se destroça,

recolho um a um meus fragmentos

e prossigo sem corpo, busco às tontas,

 

corredores sem fim da memória,

portas abertas a um salão vazio

onde apodrecem todos os verões,

as joias da sede ardem ao fundo,

rosto desvanecido ao recordá-lo,

mão que se desfaz se a toco,

cabeleiras de aranhas em tumulto

sobre sorrisos de há muitos anos,

à saída de minha fronte busco,

busco sem encontrar, busco um instante,

um rosto de relâmpago e tormenta

correndo por entre as árvores noturnas,

rosto de chuva em um jardim às escuras,

água tenaz que flui em meu dorso,

 

busco sem encontrar, escrevo a sós,

não há ninguém, cai o dia, cai o ano,

caio com o instante, caio a fundo,

invisível caminho sobre espelhos

que repetem minha imagem destroçada,

piso dias, instantes caminhados,

piso os pensamentos de minha sombra,

piso minha sombra em busca de um instante,

 

busco uma data viva como um pássaro,

busco o sol das cinco da tarde

amornado pelos muros de tezontle:

a hora madurava seus racimos

e ao abrir-se saíam as jovens

de sua entranha rosada e se espelhavam

pelos pátios de pedra do colégio,

alta como o outono caminhava

envolta pela luz sob a arcada

e o espaço ao cingi-la a vestia

de uma pele mais dourada e transparente,

 

tigre cor de luz, pardo veado

pelos arredores da noite,

entrevista jovem reclinada

nas sacadas verdes da chuva,

adolescente rosto inumerável,

esqueci teu nome, Melusina,

Laura, Isabel, Perséfone, Maria,

tens todos os rostos e nenhum,

és todas as horas e nenhuma,

te pareces com a árvore e com a nuvem,

és todos os pássaros e um astro,

te pareces com o fio da espada

e com a taça de sangue do verdugo,

hora que avança, envolve e desenraíza

a alma e a divide de si mesma,

 

escritura de fogo sobre o jade,

greta na rocha, rainha de serpentes,

coluna de vapor, fonte na fraga,

circo lunar, penhasco das águias,

grão de anis, espinho diminuto

e mortal que dá penas imortais,

pastora dos vales submarinos

e guardiã do vale dos mortos,

liana que pende do cantil da vertigem,

trepadeira, planta venenosa,

flor de ressurreição, uva de vida,

senhora da flauta e do relâmpago,

terraço do jasmim, sal na ferida,

ramo de rosas para o fuzilado,

neve em agosto, lua do patíbulo,

escritura do mar sobre o basalto,

escritura do vento no deserto,

testamento do sol, romã, espiga,

 

rosto de chamas, rosto devorado,

adolescente rosto perseguido

anos fantasmas, dias circulares

que dão no mesmo pátio, no mesmo muro,

arde o instante e são um só rosto

os sucessivos rostos da chama,

todos os nomes são um só nome,

todos os rostos são um só rosto,

todos os séculos são um só instante

e por todos os séculos dos séculos

fecha caminho ao futuro um par de olhos,

 

não há nada frente a mim, só um instante

resgatado esta noite, contra um sonho

de reunidas imagens sonhado,

duramente esculpido contra o sonho,

arrancado ao nada desta noite,

a pulso erguido letra a letra,

enquanto lá fora o tempo se desboca

e golpeia as portas de minha alma

o mundo com seu horário carniceiro,

 

só um instante enquanto as cidades,

os nomes, os sabores, o vivido,

se desmoronam em minha fronte cega,

enquanto o pesadelo da noite

humilha meu pensamento e meu esqueleto,

e meu sangue caminha mais lentamente

e meus dentes se afrouxam e meus olhos

se nublam e os dias e os anos

seus horrores vazios acumulam,

 

enquanto o tempo fecha seu leque

e não há nada detrás de suas imagens

o instante se abisma e sobrenada

rodeado de morte, ameaçado

pela noite e seu lúgubre bocejo,

ameaçado pela algaravia

da morte vivaz e encoberta

o instante se abisma e se penetra,

como um punho se fecha, como uma fruta

que madura para dentro de si mesma

e bebe a si própria e se derrama

o instante translúcido se fecha

e madura para dentro, deita raízes,

cresce dentro de mim, me ocupa todo,

me expulsa sua folhagem delirante,

meus pensamentos são só seus pássaros,

seu mercúrio circula por minhas veias,

árvore mental, frutos sabor de tempo,

 

oh vida por viver e já vivida,

tempo que retorna em uma marejada

e se retira sem virar o rosto,

o que passou não foi mais está sendo

e silenciosamente desemboca

em outro instante que se desvanece:

 

frente à tarde de salitre e pedra

armada de navalhas invisíveis

uma vermelha escritura indecifrável

escreves em minha pele e essas feridas

como um traje de chamas me recobrem,

ardo sem consumir-me, busco a água,

e em teus olhos não há água, são de pedra,

e teus seios, teu ventre, tuas ancas

são de pedra, tua boca tem sabor de pó,

tua boca tem sabor de tempo envenenado,

teu corpo tem sabor de poço sem saída,

passagem de espelhos que repetem

os olhos do sedento, passagem

que volta sempre ao ponto de partida,

e me levas cego pela mão

por essas galerias obstinadas

até o centro do círculo e te ergues

como um fulgor que se congela em tocha,

como luz que esfola, fascinante

como o cadafalso para o condenado,

flexível como o látego e esbelta

como uma arma gêmea da lua,

e tuas palavras afiadas cavam

meu peito e me despovoam e esvaziam,

as lembranças uma a uma me arrancas,

esqueci meu nome, meus amigos

grunhem entre os porcos e apodrecem

comidos pelo sol em um barranco,

 

não há nada em mim senão uma larga ferida,

um vazio que já ninguém percorre,

presente sem janelas, pensamento

que volta, se repete, se reflete

e se perde em sua própria transparência,

consciência transpassada por um olho

que se vê se vendo até inundar-se

de claridade:

           eu vi tua atroz escama,

Melusina, brilhar esverdeada na alvorada,

dormias enroscada entre os lençóis

e ao despertar gritastes como um pássaro

e caíste sem fim, quebrada e branca,

nada ficou de ti senão teu grito,

e ao cabo dos séculos me descubro

com tosse e miopia, embaralhando

velhas fotos:

           não há ninguém, não és ninguém,

um monte de cinzas e uma vassoura,

uma faca cega e um espanador,

um couro pendido de uns ossos,

um racimo já seco, uma negra cova

e no fundo da cova os dois olhos

de uma menina afogada há mil anos,

 

olhares enterrados em um poço,

olhares que nos vêem desde o princípio,

olhar criança da velha mãe

que vê no filho grande um pai jovem,

olhar mãe da criança sozinha

que vê no pai grande um filho criança,

olhares que nos olhos do fundo

da vida e são ardis da morte

— ou é o contrário: cair nesses olhos

é retornar à verdadeira vida?,

 

cair, voltar, sonhar-me e que me sonhem

outros olhos futuros, outra vida,

outras nuvens, morrer de outra morte!

— esta noite me basta, e este instante

que não acaba de abrir-se e revelar-me

onde estive, quem fui, como te chamas,

como me chamo eu:

                              fazia planos

para o verão – e todos os verões –

em Christopher Street, há dez anos,

com Fílis que tinha duas covinhas

onde bebiam luz os pardais?,

pela Reforma Carmem me dizia

“não pesa o ar, aqui sempre é outubro”,

ou o disse para outro que perdi

ou eu o invento e ninguém me disse?,

caminhei pela noite de Oaxaca,

imensa e verdenegra como uma árvore,

falando sozinha como o vento louco

e ao chegar em meu quarto – sempre um quarto –

não me reconheceram os espelhos?,

do hotel Vernet vimos a alvorada

bailar com os castanheiros – “já é muito tarde”

dizias ao te pentear e eu via

manchas na parede, sem dizer nada?,

subimos juntos à torre, vimos

cair a tarde do recife?,

comemos uvas em Bidart?, compramos

gardênias em Perote?,

                              nomes, lugares,

ruas e ruas, rostos, praças, ruas,

estações, um parque, quartos solitários,

manchas na parede, alguém se penteia,

alguém canta ao meu lado, alguém se veste,

quartos, lugares, ruas, nomes, quartos,

 

Madrid, 1937,

na Plaza del Ángel as mulheres

costuravam e cantavam com seus filhos,

depois soou o alarme e houve gritos,

casas ajoelhadas no pó,

torres fendidas, fachadas esculpidas

e o furacão dos motores, fixo:

os dois se despiram e se amaram

por defender nossa porção eterna,

nossa ração de tempo e paraíso,

tocar nossa raiz e nos recobrar,

recobrar nossa herança arrebatada

por ladrões de vida há mil séculos,

os dois se despiram e se beijaram

porque as nudezes enlaçadas

saltam o tempo e não invulneráveis,

nada as toca, voltam ao princípio,

não há tu nem eu, amanhã, ontem nem nomes,

verdade de dois em um só corpo e alma,

oh ser total…

                    quartos à deriva

entre cidades que vão a pique,

quartos e ruas, nomes como feridas,

o quarto com janelas para outros quartos

com o mesmo papel descolorido

onde um homem em camisa lê um jornal

ou uma mulher engoma; o quarto claro

que visitam os ramos do pessegueiro;

o outro quarto: lá fora sempre chove

e há um pátio e três crianças oxidadas;

quartos que são navios que se movem

em um golfo de luz; ou submarinos:

o silêncio se espalha em ondas verdes,

tudo o que tocamos fosforesce;

mausoléus do luxo, já roídos

os retratos, raspados os tapetes;

armadilhas, celas, cavernas encantadas,

aviários e quartos numerados,

todos se transfiguram, todos voam,

cada moldura é nuvem, cada porta

dá no mar, no campo, no ar, cada mesa

é um festim; fechados como conchas

o tempo inutilmente os assedia,

já não há tempo, nem muro: espaço, espaço,

abre a mão, colhe esta riqueza,

corta os frutos, come da vida,

estende-te ao pé da árvore, bebe a água!,

 

tudo se transfigura e é sagrado,

cada quarto é o centro do mundo,

é a primeira noite, o primeiro dia,

o mundo nasce quando dois se beijam,

gota de luz de transparentes entranhas

como um fruto o quarto se entreabre

ou estala como um astro taciturno

e as leis comidas por ratazanas,

as grades dos bancos e os cárceres,

as grades de papel, os alambrados,

os timbres e as puas e os agulhões,

o sermão monocórdio das armas,

o escorpião meloso e com boné,

o tigre com cartola, presidente

do Clube Vegetariano e da Cruz Vermelha,

o burro pedagogo, o crocodilo

metido a redentor, padre de aldeias,

o Chefe, o tubarão, o arquiteto

do porvir, o porco uniformizado,

o filho predileto da Igreja

que lava a negra dentadura

com a água benta e toma aulas

de inglês e democracia, as paredes

invisíveis, as máscaras apodrecidas

que dividem o homem dos homens,

o homem de si mesmo,

                               caem

por um instante imenso e vislumbramos

nossa unidade perdida, o desamparo

que é ser homens, a glória que é ser homens

e compartilhar o pão, o sol, a morte,

o esquecido assombro de estarmos vivos;

 

amar é combater, se dois se beijam

o mundo se modifica, encarnam os desejos,

o pensamento encarna, brotam asas

nas costas do escravo, o mundo

é real e tangível, o vinho é vinho,

o pão torna a saber, a água é água,

amar é combater, é abrir portas,

deixar de ser fantasma com um número

condenado à prisão perpétua

por um amo sem rosto;

                               o mundo se modifica

se dois se olham e se reconhecem,

amar é desnudar-se dos nomes:

“deixa-me ser tua puta”, são palavras

de Eloísa, mas ele cedeu às leis,

tomou-a por esposa e como prêmio

castraram-no depois; melhor o crime,

os amantes suicidas, o incesto

dos irmãos como dois espelhos

enamorados de sua semelhança,

melhor comer o pão envenenado,

o adultério em leitos de cinzas,

os amores ferozes, o delírio,

sua hera peçonhenta, o sodomita

que leva por cravo na lapela

um gargalho, melhor ser lapidado

nas praças que arrodear o poço

que exprime a substância da vida,

muda a eternidade em horas ocas,

os minutos em cárceres, o tempo

em moedas de cobre e merda abstrata;

 

melhor a castidade, flor invisível

que se move nos talhos do silêncio,

o difícil diamante dos santos

que filtra os desejos, sacia o tempo,

núpcias da quietude e do movimento,

canta a solidão em sua corola,

pétala de cristal é cada hora,

o mundo se despoja de suas máscaras

e em seu centro, vibrante transparência,

o que chamamos Deus, o ser sem nome,

se contempla no nada, o ser sem rosto

emerge de si mesmo, sol de sóis,

plenitude de presenças e de nomes;

 

sigo meu desvario, quartos, ruas

caminho às tontas pelos corredores

do tempo e subo e desço seus degraus

e apalpo suas paredes e não me movo,

retorno aonde comecei, busco teu rosto,

caminho pelas ruas de mim mesmo

sob um sol sem idade, e ao meu lado

caminhas como uma árvore, como um rio

caminhas e me falas como um rio,

cresces como uma espiga entre minhas mãos,

palpitas como um esquilo entre minhas mãos,

voas como mil pássaros, teu riso

me cobriu de espumas, tua cabeça

é um astro pequeno entre minhas mãos,

o mundo reverdece se sorris

comendo uma laranja,

                              o mundo se modifica

se dois, vertiginosos e enlaçados,

caem sobre a relva: o céu desce,

as árvores ascendem, o espaço

é somente luz e silêncio, somente espaço

aberto para a águia do olho,

passa a branca tribo das nuvens,

rompe amarras o corpo, zarpa a alma,

perdemos nossos nomes e flutuamos

à deriva entre o azul e o verde,

tempo total onde não passa nada

senão seu próprio transcorrer venturoso,

 

não passa nada, calas, pestanejas

(silêncio: cruzou um anjo este instante

grande como a vida de cem sóis),

não passa nada, só um pestanejo?

- e o festim, o desterro, o primeiro crime,

a queijada do asno, o ruído opaco

e o olhar incrédulo do morto

ao cair na planície cinzenta,

Agamenon e seu mugido imenso

e o repetido grito de Casandra

mais forte que os gritos das ondas,

Sócrates em cadeias (o sol nasce,

morrer é despertar: “Critón, um galo

para esculápio, já são da vida”),

o chacal que disserta entre as ruínas

de Nínive, a sombra que viu Bruto

antes da batalha, Montezuma

no leito de espinhos de sua insônia,

a viagem na carroça até a morte

— a viagem interminável mas contada

minuto após minuto por Robespierre,

a mandíbula rota entre as mãos –,

Churruca em sua barrica como um trono

escarlate, os passos já contados

de Lincoln ao sair para o teatro,

o estertor de Trotski e seus queixumes

de javali, Madero e seu olhar

que ninguém contestou: por que me matam?,

os caralhos, os ais, os silêncios

do criminoso, do santo, do pobre diabo,

cemitérios de frases de anedotas

que os cães retóricos escarvam,

o delírio, o relincho, o ruído obscuro

que fazemos ao morrer e esse arquejo

da vida que nasce e o som

de ossos esmagados na briga

e a boca de espuma do profeta

e seu grito e o grito do verdugo

e o grito da vítima…

                     são chamas

os olhos e são chamas o que veem,

chama a orelha e chama o som,

brasa os lábios e tição a língua,

o tato e o que toca, o pensamento

e o pensado, chama o que o pensa,

tudo se queima, o universo é chama,

arde o mesmo nada que não é nada

senão um pensar em chamas, fumaça ao final:

não há verdugo nem vítima…

                                       e o grito

na tarde de sexta?, e o silêncio

que se cobre de signos, o silêncio

que diz sem dizer, não diz nada?,

não são nada os gritos dos homens?,

não passa nada quando passa o tempo?

 

— não passa nada, somente um pestanejo

do sol, um movimento apenas, nada,

não há redenção, o tempo não volta atrás,

os mortos estão fixos em sua morte

e não modem morrer de outra morte,

intocáveis, cravados em seu gesto,

desde sua solidão, desde sua morte

sem remédio nos olham sem nos mirar,

sua morte já é a estátua de sua vida,

um sempre já estar nada para sempre,

cada minuto é nada para sempre,

um rei fantasma rege tuas pulsações

e teu gesto final, tua dura máscara

lavra sobre teu rosto mutante:

somos o monumento de uma vida

alheia e não vivida, apenas nossa,

 

— a vida, quando foi deveras nossa?,

quando somos deveras o que somos?,

bem-visto não somos, nunca somos

a sós senão vertigem e vazio,

esgares no espelho, horror e vômito,

nunca a vida é nossa, é dos outros,

a vida não é de ninguém, todos somos

a vida – pão de sol para os outros,

os outros todos que nós somos –,

sou outro quando sou, os meus atos

são mais meus se são também de todos,

para que possa ser tenho de ser outro,

sair de mim, buscar-me entre os outros,

os outros que não são se não existo,

os outros que me dão plena existência,

não sou, não há eu, sempre somos nós,

a vida é outra, sempre além, mais longe,

fora de ti, de mim, sempre horizonte,

vida que nos desvive e aliena,

que nos inventa um rosto e o desgasta,

fome de ser, oh morte, pão de todos,

 

Eloísa, Perséfone, Maria,

mostra finalmente teu rosto para que veja

minha verdadeira cara, a do outro,

minha cara de nós sempre todos,

cara de árvore e de padeiro,

de motorista e de nuvem e de marinheiro,

cara de sol e arroio e Pedro e Paulo,

cara de solitário coletivo,

desperta-me, já nasço:

                              vida e morte

pactuam em ti, senhora da noite,

torre de claridade, rainha da alvorada,

virgem lunar, mãe da água mãe,

corpo do mundo, casa da morte,

caio sem fim desde meu nascimento,

caio em mim mesmo sem tocar meu fundo,

recolhe-me em teus olhos, junta o pó

disperso e reconcilia minhas cinzas,

ata meus ossos divididos, sopra

sobre meu ser, enterra-me em tua terra,

teu silêncio dê paz ao pensamento

contra si mesmo irado;

                              abre a mão,

senhora de sementes que são dias,

o dia é imortal, ascende, cresce,

acaba de nascer e nunca acaba,

cada dia é nascer, um nascimento

é cada amanhecer e eu amanheço,

amanhecemos todos, amanhece

o sol cara de sol, João amanhece

com sua cara de João cara de todos,

 

porta do ser, desperta-me, amanhece,

deixa-me ver o rosto deste dia,

deixa-me ver o rosto desta noite,

tudo se comunica e transfigura,

arco de sangue, ponte de latejos,

leva-me ao outro lado desta noite,

aonde eu sou tu somos nós,

ao reino de pronomes enlaçados,

 

porta do ser: abre teu ser, desperta,

aprende a ser também, lavra tua cara,

trabalha tuas facções, tem um rosto

para ver meu rosto e que te veja,

para ver a vida até a morte,

rosto de mar, de pão, de rocha e fonte,

manancial que dissolve nossos rostos

no rosto sem nome, o ser sem rosto,

indizível presença de presenças…

 

quero seguir, ir mais além, e não posso:

o instante se despenhou em outro e outro,

dormi sonhos de pedra que não sonha

e ao cabo dos anos ouvi cantar

como pedras meu sangue encarcerado,

com um rumor de luz cantava o mar,

uma a uma cediam as muralhas,

todas as portas desmoronavam

e o sol saqueava por minha frente,

despregava minhas pálpebras fechadas,

desprendia meu ser de sua envoltura,

me arrancava de mim, me separava

de meu bruto dormir séculos de pedra

e sua magia de espelhos revivia

um salgueiro de cristal, um choupo de água,

um alto repuxo que o vento arqueja,

uma árvore bem plantada mas dançante,

um caminhar de rio que se curva,

avança, retrocede, dá um rodeio

e chega sempre:

 


 

 

 
 
 
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