|   OCTAVIO PAZ MÉXICO (1914-1998)         TRADUÇÕES  DE FLORIANO MARTINS     Esta página integra o acervo  inédito de Mundo mágico - Uma antologia crítica da poesia hispano-americana no  século XX. Organização, tradução e notas de Floriano Martins. Cedida pelo  Projeto Editorial Banda Hispânica: http://www.jornaldepoesia.jor.br/BHBHportal.htm         Obra  poética   Libertad bajo palabra (1935-1957). Fondo de Cultura  Económica. México. 1960. Salamandra. Joaquín  Mortiz Editor. México. 1962. Ladera este. Joaquín Mortiz Editor. México. 1969. Pasado en claro. Fondo de Cultura Económica. México. 1975. Vuelta. Ediciones Seix Barral. Barcelona. 1976. Poemas (1935-1975). Ediciones Seix Barral. Barcelona.  1979. Árbol adentro. Ediciones Seix Barral. Barcelona. 1987.       A POESIA    Chegas, silenciosa,  secreta, e despertas os  furores, os gozos, e esta angústia que acende o que  toca e engendra em cada  coisa uma avidez sombria.   O mundo cede e se  desmancha como metal ao fogo. Entre minhas ruínas  me ergo, sozinho, desnudo,  despojado, sobre a rocha  imensa do silêncio, como um solitário  combatente contra invisíveis  tropas.   Verdade abrasadora, para o que me  empurras? Não quero tua  verdade, tua insensata  pergunta. Para que esta luta  estéril? Não é o homem  criatura capaz de conter-se, avidez que só na  sede se sacia, chama que a todos  os lábios consome, espírito que não  vive em nenhuma forma mas faz arder todas  as formas.   Sobes desde o mais  fundo de mim, desde o centro  inominável de meu ser, exército, maré. Cresces, tua sede  me afoga, expulsando,  tirânica, aquilo que não cede à tua espada  frenética. Já tão somente tu  me habitas, tu, sem nome,  furiosa substância, avidez subterrânea,  delirante.   Golpeiam meu peito  teus fantasmas, despertas para meu  tato, gelas minha testa, abres meus olhos.   Percebo o mundo e  te toco, substância  intocável, unidade de minha  alma e de meu corpo, e contemplo o  combate que combato e minhas bodas de  terra.   Nublam meus olhos  imagens opostas, e as mesmas imagens outras, mais  profundas, negam-nas, ardente balbucio, águas que afoga uma  água mais oculta e densa. Em sua úmida treva  vida e morte, quietude e  movimento, são o mesmo.   Insiste, vencedora, porque existo tão  somente porque existes, e minha boca e  minha língua se formaram para dizer tão  somente tua existência e tuas secretas  sílabas, palavra impalpável e  despótica, substância de minha  alma.   És tão somente um  sonho, porém em ti sonha o  mundo e sua mudez fala  com tuas palavras. Ao tocar teu peito  roço a elétrica  fronteira da vida, a treva de sangue onde pactua a boca  cruel e enamorada, ávida ainda por  destruir o que ama e reviver o que  destrói, com o mundo,  impassível e sempre idêntico a  si mesmo, porque não se detém  em nenhuma forma nem se demora sobre  o que engendra.   Leva-me, solitária, leva-me entre os  sonhos, leva-me, mãe minha, desperta-me do  todo, me faz sonhar teu  sonho, unta meus olhos com  azeite, para que ao  conhecer-te me conheça.       PEDRA NATIVA     A Roger Munier   A luz devasta as  alturas Manadas de impérios  em derrota O olho retrocede  cercado de reflexos     Países vastos como  a insônia Pedregais de osso     Outono sem confins Ergue a sede seus  invisíveis fornecedores Um último peru  predica no deserto     Fecha os olhos e  ouve cantar a luz: O meio-dia anima em  teu tímpano     Fecha os olhos e  abre-os: Não há ninguém nem  sequer tu mesmo O que não é pedra é  luz     Como as pedras do  Princípio Como o princípio da  Pedra Como ao Princípio  pedra contra pedra Os fastos da noite: O poema ainda sem  rosto O bosque ainda sem  árvores Os cantos ainda sem  nome Mas logo a luz  irrompe com passos de leopardo E a palavra se  ergue ondula cai E é uma larga  ferida e um silêncio sem mácula A alegria madura  como um fruto O fruto madura até  ser sol O sol madura até  ser homem O homem madura até  ser astro Nunca a luz se  repartiu em tantas luzes As árvores as ruas  as montanhas Se desdobram em  ondas transparentes Uma jovem ri na  entrada do dia É uma pluma ardendo  o canto do canário A música mostra  seus braços desnudos Seu dorso desnudo  seu pensamento desnudo No calor se aguça o  instante venturoso Água terra e sol  são um só corpo A hora e seu sino  se dissolvem As pedras as  paisagens se evaporam Todos se foram sem  virar o rosto Os amigos as belas  à margem da vertigem Zarpam as casas a  igreja os bondes O mundo empreende o  vôo Também meu corpo se  me escapa E por entre as  claridades se perde O sol a tudo cobre  a tudo vê E em seu olhar fixo  nos banhamos E em sua pupila  largamente nos queimamos E nos abismos de  sua luz caímos Música precipitada E ardemos e não  deixamos marca         PEDRA  DO SOL     La treizième revient…  c’est encor la première; et c’est toujours la  seule – ou c’est le seul moment; car es-tu reine, ô  toi, la première ou dernière? es-tu roi, toi le seul  ou le dernier amant?   GÉRARD DE NERVAL, Arthémis.     Um salgueiro de  cristal, um choupo de água, um alto repuxo que  o vento arqueja, uma árvore bem  plantada mas dançante, um caminhar de rio  que se curva, avança, retrocede,  dá um rodeio e chega sempre:                      um caminhar tranqüilo de estrela e  primavera sem pressa, água que com as  pálpebras fechadas brota profecias por  toda a noite, unânime presença em  marejada, onda após onda até  cobrir tudo, verde soberania sem  ocaso como o  deslumbramento das asas quando se abrem na  metade do céu,   um caminhar por  entre as espessuras dos dias futuros e  o aziago fulgor da  desventura como uma ave petrificando o  bosque com seu canto e as felicidades  iminentes entre os ramos que  se desvanecem, horas de luz que  bicam então os pássaros, presságios que  escapam da mão,   uma presença como  um canto súbito, como o vento  cantando no incêndio, um olhar que  sustenta no ar o mundo com seus  mares e montanhas, corpo de luz  filtrada por uma ágata, pernas de luz,  ventre de luz, baías, rocha solar, corpo  da cor de nuvem, da cor de dia  rápido que salta, a hora cintila e  tem corpo, o mundo já é  visível por teu corpo, é transparente por  tua transparência,   vou por entre  galerias de sons, fluo por entre as  presenças ressonantes, vou pelas  transparências como um cego, um reflexo me  apaga, nasço em outro, oh bosque de  pilares encantados, sob os arcos da luz  penetro os corredores de um  outono diáfano,   vou por teu corpo  como pelo mundo, teu ventre é uma  praça ensolarada, teus seios duas  igrejas onde celebra o sangue seus  mistérios paralelos, meus olhares te  cobrem como hera, és uma cidade que o  mar assedia, uma muralha que a  luz divide em duas metades da  cor de pêssego, uma paragem de sal,  rochas e pássaros sob a lei do  absorto meio-dia,   vestida da cor de  meus desejos como meu pensamento  vais desnuda, vou por teus olhos  como pela água, os tigres bebem  sonho nesses olhos, o colibri se queima  nessas chamas, vou por tua fronte  como pela lua, como a nuvem por  teu pensamento, vou por teu ventre  como por teus sonhos,   tua saia de milho  ondula e canta, tua saia de  cristal, tua saia de água, teus lábios, teus  cabelos, teus olhares, a noite toda  choves, o dia todo abres meu peito com  teus dedos de água, fechas meus olhos  com tua boca de água, sobre meus ossos  choves, em meu peito afunda raízes de  água uma árvore líquida,   vou por teu talho  como por um rio, vou por teu corpo  como por um bosque, como por uma trilha  na montanha que termina em um  brusco abismo, vou por teus  pensamentos afiados e à saída de tua  branca fronte minha sombra  despenhada se destroça, recolho um a um  meus fragmentos e prossigo sem  corpo, busco às tontas,   corredores sem fim  da memória, portas abertas a um  salão vazio onde apodrecem  todos os verões, as joias da sede  ardem ao fundo, rosto desvanecido  ao recordá-lo, mão que se desfaz  se a toco, cabeleiras de  aranhas em tumulto sobre sorrisos de  há muitos anos, à saída de minha  fronte busco, busco sem  encontrar, busco um instante, um rosto de  relâmpago e tormenta correndo por entre  as árvores noturnas, rosto de chuva em  um jardim às escuras, água tenaz que flui  em meu dorso,   busco sem  encontrar, escrevo a sós, não há ninguém, cai  o dia, cai o ano, caio com o  instante, caio a fundo, invisível caminho  sobre espelhos que repetem minha  imagem destroçada, piso dias,  instantes caminhados, piso os pensamentos  de minha sombra, piso minha sombra  em busca de um instante,   busco uma data viva  como um pássaro, busco o sol das  cinco da tarde amornado pelos  muros de tezontle: a hora madurava  seus racimos e ao abrir-se saíam  as jovens de sua entranha  rosada e se espelhavam pelos pátios de  pedra do colégio, alta como o outono  caminhava envolta pela luz  sob a arcada e o espaço ao  cingi-la a vestia de uma pele mais  dourada e transparente,   tigre cor de luz,  pardo veado pelos arredores da  noite, entrevista jovem  reclinada nas sacadas verdes  da chuva, adolescente rosto  inumerável, esqueci teu nome,  Melusina, Laura, Isabel,  Perséfone, Maria, tens todos os  rostos e nenhum, és todas as horas e  nenhuma, te pareces com a  árvore e com a nuvem, és todos os  pássaros e um astro, te pareces com o  fio da espada e com a taça de  sangue do verdugo, hora que avança,  envolve e desenraíza a alma e a divide  de si mesma,   escritura de fogo  sobre o jade, greta na rocha,  rainha de serpentes, coluna de vapor,  fonte na fraga, circo lunar,  penhasco das águias, grão de anis,  espinho diminuto e mortal que dá  penas imortais, pastora dos vales  submarinos e guardiã do vale  dos mortos, liana que pende do  cantil da vertigem, trepadeira, planta  venenosa, flor de  ressurreição, uva de vida, senhora da flauta e  do relâmpago, terraço do jasmim,  sal na ferida, ramo de rosas para  o fuzilado, neve em agosto, lua  do patíbulo, escritura do mar  sobre o basalto, escritura do vento  no deserto, testamento do sol,  romã, espiga,   rosto de chamas,  rosto devorado, adolescente rosto  perseguido anos fantasmas,  dias circulares que dão no mesmo  pátio, no mesmo muro, arde o instante e  são um só rosto os sucessivos  rostos da chama, todos os nomes são  um só nome, todos os rostos são  um só rosto, todos os séculos  são um só instante e por todos os  séculos dos séculos fecha caminho ao  futuro um par de olhos,   não há nada frente  a mim, só um instante resgatado esta  noite, contra um sonho de reunidas imagens  sonhado, duramente esculpido  contra o sonho, arrancado ao nada  desta noite, a pulso erguido  letra a letra, enquanto lá fora o  tempo se desboca e golpeia as portas  de minha alma o mundo com seu  horário carniceiro,   só um instante  enquanto as cidades, os nomes, os  sabores, o vivido, se desmoronam em  minha fronte cega, enquanto o pesadelo  da noite humilha meu  pensamento e meu esqueleto, e meu sangue  caminha mais lentamente e meus dentes se  afrouxam e meus olhos se nublam e os dias  e os anos seus horrores  vazios acumulam,   enquanto o tempo  fecha seu leque e não há nada  detrás de suas imagens o instante se  abisma e sobrenada rodeado de morte,  ameaçado pela noite e seu  lúgubre bocejo, ameaçado pela  algaravia da morte vivaz e  encoberta o instante se abisma  e se penetra, como um punho se  fecha, como uma fruta que madura para  dentro de si mesma e bebe a si própria  e se derrama o instante  translúcido se fecha e madura para  dentro, deita raízes, cresce dentro de  mim, me ocupa todo, me expulsa sua  folhagem delirante, meus pensamentos  são só seus pássaros, seu mercúrio  circula por minhas veias, árvore mental,  frutos sabor de tempo,   oh vida por viver e  já vivida, tempo que retorna  em uma marejada e se retira sem  virar o rosto, o que passou não  foi mais está sendo e silenciosamente  desemboca em outro instante  que se desvanece:   frente à tarde de  salitre e pedra armada de navalhas  invisíveis uma vermelha  escritura indecifrável escreves em minha  pele e essas feridas como um traje de  chamas me recobrem, ardo sem consumir-me,  busco a água, e em teus olhos não  há água, são de pedra, e teus seios, teu  ventre, tuas ancas são de pedra, tua  boca tem sabor de pó, tua boca tem sabor  de tempo envenenado, teu corpo tem sabor  de poço sem saída, passagem de  espelhos que repetem os olhos do  sedento, passagem que volta sempre ao  ponto de partida, e me levas cego  pela mão por essas galerias  obstinadas até o centro do  círculo e te ergues como um fulgor que  se congela em tocha, como luz que  esfola, fascinante como o cadafalso  para o condenado, flexível como o  látego e esbelta como uma arma gêmea  da lua, e tuas palavras  afiadas cavam meu peito e me  despovoam e esvaziam, as lembranças uma a  uma me arrancas, esqueci meu nome,  meus amigos grunhem entre os  porcos e apodrecem comidos pelo sol em  um barranco,   não há nada em mim  senão uma larga ferida, um vazio que já  ninguém percorre, presente sem  janelas, pensamento que volta, se  repete, se reflete e se perde em sua  própria transparência, consciência  transpassada por um olho que se vê se vendo  até inundar-se de claridade:            eu vi tua atroz escama, Melusina, brilhar  esverdeada na alvorada, dormias enroscada  entre os lençóis e ao despertar  gritastes como um pássaro e caíste sem fim,  quebrada e branca, nada ficou de ti  senão teu grito, e ao cabo dos  séculos me descubro com tosse e miopia,  embaralhando velhas fotos:            não há ninguém, não és ninguém, um monte de cinzas  e uma vassoura, uma faca cega e um  espanador, um couro pendido de  uns ossos, um racimo já seco,  uma negra cova e no fundo da cova  os dois olhos de uma menina  afogada há mil anos,   olhares enterrados  em um poço, olhares que nos  vêem desde o princípio, olhar criança da  velha mãe que vê no filho  grande um pai jovem, olhar mãe da  criança sozinha que vê no pai  grande um filho criança, olhares que nos  olhos do fundo da vida e são ardis  da morte — ou é o contrário:  cair nesses olhos é retornar à  verdadeira vida?,   cair, voltar,  sonhar-me e que me sonhem outros olhos  futuros, outra vida, outras nuvens,  morrer de outra morte! — esta noite me  basta, e este instante que não acaba de  abrir-se e revelar-me onde estive, quem  fui, como te chamas, como me chamo eu:                               fazia planos para o verão – e  todos os verões – em Christopher Street, há dez anos, com Fílis que tinha  duas covinhas onde bebiam luz os  pardais?, pela Reforma Carmem  me dizia “não pesa o ar,  aqui sempre é outubro”, ou o disse para  outro que perdi ou eu o invento e  ninguém me disse?, caminhei pela noite  de Oaxaca, imensa e verdenegra  como uma árvore, falando sozinha  como o vento louco e ao chegar em meu  quarto – sempre um quarto – não me reconheceram  os espelhos?, do hotel Vernet  vimos a alvorada bailar com os  castanheiros – “já é muito tarde” dizias ao te  pentear e eu via manchas na parede,  sem dizer nada?, subimos juntos à  torre, vimos cair a tarde do  recife?, comemos uvas em  Bidart?, compramos gardênias em  Perote?,                               nomes, lugares, ruas e ruas,  rostos, praças, ruas, estações, um  parque, quartos solitários, manchas na parede,  alguém se penteia, alguém canta ao meu  lado, alguém se veste, quartos, lugares,  ruas, nomes, quartos,   Madrid, 1937, na Plaza del Ángel  as mulheres costuravam e  cantavam com seus filhos, depois soou o  alarme e houve gritos, casas ajoelhadas no  pó, torres fendidas,  fachadas esculpidas e o furacão dos  motores, fixo: os dois se despiram  e se amaram por defender nossa  porção eterna, nossa ração de  tempo e paraíso, tocar nossa raiz e  nos recobrar, recobrar nossa  herança arrebatada por ladrões de vida  há mil séculos, os dois se despiram  e se beijaram porque as nudezes  enlaçadas saltam o tempo e  não invulneráveis, nada as toca,  voltam ao princípio, não há tu nem eu,  amanhã, ontem nem nomes, verdade de dois em  um só corpo e alma, oh ser total…                     quartos à deriva entre cidades que  vão a pique, quartos e ruas,  nomes como feridas, o quarto com  janelas para outros quartos com o mesmo papel  descolorido onde um homem em  camisa lê um jornal ou uma mulher  engoma; o quarto claro que visitam os  ramos do pessegueiro; o outro quarto: lá  fora sempre chove e há um pátio e  três crianças oxidadas; quartos que são  navios que se movem em um golfo de luz;  ou submarinos: o silêncio se  espalha em ondas verdes, tudo o que tocamos  fosforesce; mausoléus do luxo,  já roídos os retratos,  raspados os tapetes; armadilhas, celas,  cavernas encantadas, aviários e quartos  numerados, todos se  transfiguram, todos voam, cada moldura é  nuvem, cada porta dá no mar, no  campo, no ar, cada mesa é um festim;  fechados como conchas o tempo inutilmente  os assedia, já não há tempo,  nem muro: espaço, espaço, abre a mão, colhe esta  riqueza, corta os frutos,  come da vida, estende-te ao pé da  árvore, bebe a água!,   tudo se transfigura  e é sagrado, cada quarto é o  centro do mundo, é a primeira noite,  o primeiro dia, o mundo nasce  quando dois se beijam, gota de luz de  transparentes entranhas como um fruto o  quarto se entreabre ou estala como um  astro taciturno e as leis comidas  por ratazanas, as grades dos  bancos e os cárceres, as grades de papel,  os alambrados, os timbres e as  puas e os agulhões, o sermão monocórdio  das armas, o escorpião meloso  e com boné, o tigre com  cartola, presidente do Clube  Vegetariano e da Cruz Vermelha, o burro pedagogo, o  crocodilo metido a redentor,  padre de aldeias, o Chefe, o tubarão,  o arquiteto do porvir, o porco  uniformizado, o filho predileto  da Igreja que lava a negra  dentadura com a água benta e  toma aulas de inglês e  democracia, as paredes invisíveis, as  máscaras apodrecidas que dividem o homem  dos homens, o homem de si  mesmo,                                caem por um instante  imenso e vislumbramos nossa unidade  perdida, o desamparo que é ser homens, a  glória que é ser homens e compartilhar o  pão, o sol, a morte, o esquecido  assombro de estarmos vivos;   amar é combater, se  dois se beijam o mundo se  modifica, encarnam os desejos, o pensamento  encarna, brotam asas nas costas do  escravo, o mundo é real e tangível,  o vinho é vinho, o pão torna a  saber, a água é água, amar é combater, é  abrir portas, deixar de ser  fantasma com um número condenado à prisão  perpétua por um amo sem  rosto;                                o mundo se modifica se dois se olham e  se reconhecem, amar é desnudar-se  dos nomes: “deixa-me ser tua  puta”, são palavras de Eloísa, mas ele  cedeu às leis, tomou-a por esposa  e como prêmio castraram-no  depois; melhor o crime, os amantes  suicidas, o incesto dos irmãos como  dois espelhos enamorados de sua  semelhança, melhor comer o pão  envenenado, o adultério em  leitos de cinzas, os amores ferozes,  o delírio, sua hera  peçonhenta, o sodomita que leva por cravo  na lapela um gargalho, melhor  ser lapidado nas praças que  arrodear o poço que exprime a substância  da vida, muda a eternidade  em horas ocas, os minutos em  cárceres, o tempo em moedas de cobre  e merda abstrata;   melhor a castidade,  flor invisível que se move nos  talhos do silêncio, o difícil diamante  dos santos que filtra os  desejos, sacia o tempo, núpcias da quietude  e do movimento, canta a solidão em  sua corola, pétala de cristal é  cada hora, o mundo se despoja  de suas máscaras e em seu centro,  vibrante transparência, o que chamamos  Deus, o ser sem nome, se contempla no  nada, o ser sem rosto emerge de si mesmo,  sol de sóis, plenitude de  presenças e de nomes;   sigo meu desvario,  quartos, ruas caminho às tontas  pelos corredores do tempo e subo e  desço seus degraus e apalpo suas  paredes e não me movo, retorno aonde  comecei, busco teu rosto, caminho pelas ruas  de mim mesmo sob um sol sem  idade, e ao meu lado caminhas como uma  árvore, como um rio caminhas e me falas  como um rio, cresces como uma  espiga entre minhas mãos, palpitas como um  esquilo entre minhas mãos, voas como mil  pássaros, teu riso me cobriu de  espumas, tua cabeça é um astro pequeno  entre minhas mãos, o mundo reverdece  se sorris comendo uma  laranja,                               o mundo se  modifica se dois,  vertiginosos e enlaçados, caem sobre a relva:  o céu desce, as árvores  ascendem, o espaço é somente luz e  silêncio, somente espaço aberto para a águia  do olho, passa a branca  tribo das nuvens, rompe amarras o  corpo, zarpa a alma, perdemos nossos  nomes e flutuamos à deriva entre o  azul e o verde, tempo total onde  não passa nada senão seu próprio  transcorrer venturoso,   não passa nada,  calas, pestanejas (silêncio: cruzou  um anjo este instante grande como a vida  de cem sóis), não passa nada, só  um pestanejo? - e o festim, o  desterro, o primeiro crime, a queijada do asno,  o ruído opaco e o olhar incrédulo  do morto ao cair na planície  cinzenta, Agamenon e seu  mugido imenso e o repetido grito  de Casandra mais forte que os  gritos das ondas, Sócrates em cadeias  (o sol nasce, morrer é despertar:  “Critón, um galo para esculápio, já  são da vida”), o chacal que  disserta entre as ruínas de Nínive, a sombra  que viu Bruto antes da batalha,  Montezuma no leito de  espinhos de sua insônia, a viagem na carroça  até a morte — a viagem  interminável mas contada minuto após minuto  por Robespierre, a mandíbula rota  entre as mãos –, Churruca em sua  barrica como um trono escarlate, os  passos já contados de Lincoln ao sair  para o teatro, o estertor de  Trotski e seus queixumes de javali, Madero e  seu olhar que ninguém  contestou: por que me matam?, os caralhos, os  ais, os silêncios do criminoso, do santo,  do pobre diabo, cemitérios de  frases de anedotas que os cães  retóricos escarvam, o delírio, o  relincho, o ruído obscuro que fazemos ao  morrer e esse arquejo da vida que nasce e  o som de ossos esmagados  na briga e a boca de espuma  do profeta e seu grito e o  grito do verdugo e o grito da  vítima…                      são chamas os olhos e são  chamas o que veem, chama a orelha e  chama o som, brasa os lábios e  tição a língua, o tato e o que  toca, o pensamento e o pensado, chama  o que o pensa, tudo se queima, o  universo é chama, arde o mesmo nada  que não é nada senão um pensar em  chamas, fumaça ao final: não há verdugo nem  vítima…                                        e o grito na tarde de sexta?,  e o silêncio que se cobre de  signos, o silêncio que diz sem dizer,  não diz nada?, não são nada os  gritos dos homens?, não passa nada  quando passa o tempo?   — não passa nada,  somente um pestanejo do sol, um  movimento apenas, nada, não há redenção, o  tempo não volta atrás, os mortos estão  fixos em sua morte e não modem morrer  de outra morte, intocáveis,  cravados em seu gesto, desde sua solidão,  desde sua morte sem remédio nos  olham sem nos mirar, sua morte já é a  estátua de sua vida, um sempre já estar  nada para sempre, cada minuto é nada  para sempre, um rei fantasma  rege tuas pulsações e teu gesto final,  tua dura máscara lavra sobre teu  rosto mutante: somos o monumento  de uma vida alheia e não  vivida, apenas nossa,   — a vida, quando  foi deveras nossa?, quando somos  deveras o que somos?, bem-visto não  somos, nunca somos a sós senão  vertigem e vazio, esgares no espelho,  horror e vômito, nunca a vida é  nossa, é dos outros, a vida não é de  ninguém, todos somos a vida – pão de sol  para os outros, os outros todos que  nós somos –, sou outro quando  sou, os meus atos são mais meus se  são também de todos, para que possa ser  tenho de ser outro, sair de mim,  buscar-me entre os outros, os outros que não  são se não existo, os outros que me  dão plena existência, não sou, não há eu,  sempre somos nós, a vida é outra,  sempre além, mais longe, fora de ti, de mim,  sempre horizonte, vida que nos  desvive e aliena, que nos inventa um  rosto e o desgasta, fome de ser, oh  morte, pão de todos,   Eloísa, Perséfone,  Maria, mostra finalmente  teu rosto para que veja minha verdadeira  cara, a do outro, minha cara de nós  sempre todos, cara de árvore e de  padeiro, de motorista e de  nuvem e de marinheiro, cara de sol e  arroio e Pedro e Paulo, cara de solitário  coletivo, desperta-me, já  nasço:                               vida e morte pactuam em ti,  senhora da noite, torre de claridade,  rainha da alvorada, virgem lunar, mãe  da água mãe, corpo do mundo,  casa da morte, caio sem fim desde  meu nascimento, caio em mim mesmo  sem tocar meu fundo, recolhe-me em teus  olhos, junta o pó disperso e  reconcilia minhas cinzas, ata meus ossos  divididos, sopra sobre meu ser,  enterra-me em tua terra, teu silêncio dê paz  ao pensamento contra si mesmo  irado;                               abre a mão, senhora de sementes  que são dias, o dia é imortal,  ascende, cresce, acaba de nascer e  nunca acaba, cada dia é nascer,  um nascimento é cada amanhecer e  eu amanheço, amanhecemos todos,  amanhece o sol cara de sol,  João amanhece com sua cara de  João cara de todos,   porta do ser,  desperta-me, amanhece, deixa-me ver o  rosto deste dia, deixa-me ver o  rosto desta noite, tudo se comunica e  transfigura, arco de sangue,  ponte de latejos, leva-me ao outro  lado desta noite, aonde eu sou tu  somos nós, ao reino de  pronomes enlaçados,   porta do ser: abre  teu ser, desperta, aprende a ser  também, lavra tua cara, trabalha tuas  facções, tem um rosto para ver meu rosto  e que te veja, para ver a vida até  a morte, rosto de mar, de  pão, de rocha e fonte, manancial que  dissolve nossos rostos no rosto sem nome,  o ser sem rosto, indizível presença  de presenças…   quero seguir, ir  mais além, e não posso: o instante se  despenhou em outro e outro, dormi sonhos de  pedra que não sonha e ao cabo dos anos  ouvi cantar como pedras meu  sangue encarcerado, com um rumor de luz  cantava o mar, uma a uma cediam as  muralhas, todas as portas  desmoronavam e o sol saqueava  por minha frente, despregava minhas  pálpebras fechadas, desprendia meu ser  de sua envoltura, me arrancava de  mim, me separava de meu bruto dormir  séculos de pedra e sua magia de  espelhos revivia um salgueiro de  cristal, um choupo de água, um alto repuxo que  o vento arqueja, uma árvore bem  plantada mas dançante, um caminhar de rio  que se curva, avança, retrocede,  dá um rodeio e chega sempre:   
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