VICENTE CECHELERO
(1950-2000)
Nasceu em Ascurra, Estado de Santa Catarina, em 1950. Licenciado em Filologia Portuguesa e Espanhola pela Universidade de São Paulo. Em 1981, seguiu o curso de especialização em ensino filológico e língua espanhola na Universidade de Madrid. Tem trabalhos publicados em revistas do Brasil e traduções.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
MITOLOGIA REAL DE INVERNO
Nesse céu oneroso
galáxia peregrina, semens de divindades,
em certo entardecer, intermitências-luzes:
deriva a bestialidade fria das coisas
materiais vagando no intemporal, sem fim.
Enquanto a ingenuidade infantil dos animais
Em seu natural pesadelo, sonha `a deriva...
sem inveja dos homens e dos seus deuses,
sem querer saber se somos gente ou não.
Nesse céu oneroso.
Amparo, 27.06.88
ECCE HOMO
João, 19, 5
Ei-lo, despojado em suas vestes.
‘E, como vós, mortal e eterno,
feito de memória e esquecimento.
(Uma tarde,junto a Jerusalém, feriu-se
o pé ao pisar falso numa pedra.)
revela, em sonho, o seu passado
povoado de reis e de escravos.
Vítima do tempo e acaso,
como vós guarda histórias banais
de cortes, ditas e mortes.
Por que vos assusteis, se em seu seio
Corrói-lhe a sina de milagres e fracassos?
Santiago de Compostela, 1981
Só Matéria do Mundo, 1991
CECHELERO, Vicente. A língua das sombras ou O livro dos desertos. Poemas. São Paulo: Editora Giordano, 1997. 47 p. 12x18 cm. Col. A.M.
UM ROSTO PRO TEU
Em que espelho ficou perdida a minha face?
CECÍLIA MEIRELES
No rosto da minha mãe, colada imagem.
Aos pedaços — no meu pai, irmãos, amados.
Ficou no rio da infância crivado de punhais vivos,
Foi-se com um lied de Schubert findando na vitrola.
Ficou num quadro do Fuji, no Japão.
Perdeu-se minha face no poema.
Ou afogou-se no rosto outro, narcisado no leito.
Nos hiatos, nos buracos do ser, no clamor do nada.
Foi Deus, além-matéria-tempo-nome.
A minha face se fundiu no esquecimento.
Lavrado pelas coisas, meu rosto se alter-ou:
transformou-se, amador, na coisa amada.
Foi Proteu, Narciso, filho, água, areia, saudade,
[ verbo.
Em que sombra se exilará a minha face?
Em que pedra se partirá o meu espelho?
Em que coisas restarão as nossas faces?
Com William Blake eu diria dessa metamorfose
desses pedaços de Deus: He whose face
gives no light, shall never become a star.
S. Paulo, 94.
RAPSÓDIA TIBETANA
Variações sobre um mito.
Os lagos são olhos de deuses
que espreitam do fundo da terra.
Teus olhos dois lagos-espelhos
de terra tua mente de mito.
Dois focos dois fulcros de veres
quais luzes nascidas no abismo.
Em ti há dois brilhos de cores
das rosas estranhas do nada.
Há lagos de luzes da morte
que dorme entranhas da Terra.
A morte dorme entre os lençóis
do fogo, das águas, das asas.
A Terra é a cabeça de Deus
Que, se não pensar, não existe.
Seu corpo quintal-universo
Dos homens-crianças vertigem.
No horto os numes latejam
enquanto Ele se refaz, dorme.
E as coisas refazem-se sempre:
meu filho, tijolo do eterno.
Da Casa que Sísifo ergue,
Das águas, lágrimas do Ermo,
emerge da Casa a folhagem.
`A morte, portal-do-informe
Fecunda-a o húmus das coisas.
O ser se insinua em teus olhos
qual peixe esquivo aos meus sóis.
São Paulo, 1983
A Língua das Sombras, 1997
ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA . Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Ed. Hipocampo, Fundação Rioarte, 1992. 334 p. ilus. Ex. bibl. Antonio Miranda
P A R A N Ó I A
Norte
Ecoam no silêncio
gritos que povoam madrugadas
Sul
Povoam o silêncio
cantos que latejam nas caladas
Leste
Latejam no silêncio
luzes que assombram nas ciladas
Oeste
Assombram o silêncio
vultos que brandem suas espadas
------------------------------------------------------------------------------ TEXTOS EN ESPAÑOL
Extraídos de
ANTOLOGÍA DE LA POESÍA BRASILEÑA
Org. y traducción de Xosé Lois García
Santiago de Compostela: Edición Loiovento, 2001.
MITOLOGíA REAL DE INVIERNO
En esse cielo oneroso
Galáxia peregrina, sêmen de divindades,
en cierto atardecer, intermitentes luces:
deriva la bestialidad fría de las cosas
materiales vagando en lo intgemporal, sin fin.
Mientras a la ingenuidad infantil de los animales,
en su natural pesadilla, sueña a la deriva...
sin envidia de los hombres y de sus dioses,
sin querer saber si somos gente o no.
en esse cielo oneroso.
Amparo, 27.06.88
ECCE HOMO
Juan, 19, 5
Helo ahí, despojado de sus vestidos.
Es, como vosotros, mortal y eterno,
hecho de memoria y olvido.
(Una tarde, junto a Jerusalén, se hirió
el pie al pisar en falso en una piedra).
Revela, en sueños, su pasado
poblado de reyes y de esclavos.
Victima del tiempo y quizás,
como vosotros, guarda historias banales
de cortes, dichos y muertes.
?Por qué os asustais, si en su seno
le corroe el destino de milagros y fracasos?
Santiago de Compostela, 1981
Só Matéria do Mundo, 1991
RAPSODIA TIBETANA
Variaciones sobre un mito.
Los lagos son ojos de dioses
que observan desde el fondo de la tierra.
Tus ojos dos lagos espejos
Dos focos dos puntos de vista
como luces nacidas en el abismo.
En tí hay dos brillos de colores
de las rosas extrañas del nada.
Hay lagos de luces de la muerte
que duerme en las entrañas de la Tierra.
La muerte duerme entre las sábanas
de fuego, de las aguas, de las alas.
La Tierra es la cabeza de Dios
de los hombres niños vértigo.
En el huerto los dioses laten
mientras ‘El se rehace, duerme.
Y las cosas siempre se rehacen:
hijo mio, ladrillo de lo eterno.
De la Casa que Sísifo levanta,
si, si fue la piedra que yo puse.
De las aguas, lagrimas del yermo,
emerge de la Casa el follaje.
A la muerte, portal de lo informe,
la fecunda el húmus de las cosas.
El Ser se insinua en tus ojos
cual pez esquivo a mis soles.
São Paulo, 1983
A Língua das Sombras, 1997
Página publicada em janeiro de 2008; ampliada e republicaca em junho de 2013.
Página ampliada em setembro de 2020 |