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MARTA GONÇALVES
Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, em 1940, descendente de italiano. Autora de numerosos livros de poesia.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
PAISAGEM IMAGINADA
A incapacidade de isolar a mentira
da palavra. De separar a alma e colher
a paisagem imaginada. Renascer outros dentes
na fria boca.
Morrer o interior antes de apagar o corpo.
Arrancar lianas no jardim. Olhar o peixe.
A dimensão escura da existência fica ali
na árvore. O pássaro verde é fonte.
Os símbolos riscados: silêncio de vida.
No exílio dos dias, medo. Medo de apodrecer
a fala, a imagem. Medo de fechar a mão para o sol.
Medo de cerrar os olhos para o sono.
O VENTO NAS FOLHAS
Converso com o tamarindo e escuto
o vento nas folhas.
A palavra cobre a terra, cobre
as mãos inquietas. A idade é remota.
Longe ficaram as sementes.
A idade cega os olhos e invade a morte.
Não tenho o sono do limbo. O muro nasce
a erva no pôr-do-sol. A árvore vem do tempo
das águas e traz a maresia dos cardumes.
O silêncio das nascentes guarda a lonjura
da canção. O mesmo silêncio no verde pinheiro.
O verso perdeu o sol. Quero falar da criança
da rosa do último adeus da velha casa.
Sombras habitam o âmago do texto.
Converso com o tamarindo a história da alma.
A alma se esqueceu das estrelas. O medo
das confissões e o desespero da fala abrigam
um século de vida nos dedos nodosos de sonhos.
Paisagem imaginada, 1997
MANTEIGUEIRA COR-DE-TANGERINA
Guarda-louça textura o tempo
jogado no pêndulo da infância
com bonequinhos picotados de papel
recompondo as prateleiras de madeira.
Manteigueira cor-de-tangerina
da avó amargando a Itália
nesta terra de dor, de aço , de lida.
Ferro de brasa assoprado pela
negrinha escrava da casa
de pau-a-pique, onde a lenha
do fogão aquentava o café amigo
– para bocas de desamparo.
Pó da memória na arcada dos anos.
Dois cálices de cristal. Xícaras made in Japan.
Jarros de água secos e áridos não apagavam a sede
dos dias bolorentos pastados na idade.
Cheiro de azinhavre no tacho de cobre
retém substâncias na mente,é a névoa
diluindo no forno de tijolo, onde o pão
amassado na angústia alimentava corpos.
Não é a manteigueira cor-de-tangerina
o itinerário das lembranças.
Mas o retrato escovado,pálido,da Tia Maria
que morreu de melancolia
nos vitrais da insônia.
De
GONÇALVES, Marta.
CAVALOS VERDES.
Capa: óleo de Carlos Gonçalves.
São Paulo: Massao Ohno, 1991. 75 p. ilus p&b
“Li todos os seus poemas. Você está em excelente forma poética.” FÁBIO LUCAS
ENGANO
De que me serve sorver o melaço
dos dias quentes e azuis de cristal?
De que me serve ser festejada
pelo poema editado no jornal?
Nada disso importa/ se a orquídea
lembra dedos cruzados no velório.
Vejo espanto no olhar do bêbado.
Na sua madorna, a lucidez:
Sabe que cuspo no mundo imundo.
No canto da tempestade
brinco de caleidoscópio no tempo.
Finjo que existe Deus movendo pedras
para aceitar o inexplicável da vida.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Extraídos de
ANTOLOGÍA DE LA POESÍA BRASILEÑA
Org. y traducción de Xosé Lois García
Santiago de Compostela: Edición Loiovento, 2001.
PAISAJE IMAGINADO
La incapacidad de aislar la mentira
de la palabra. De separar el alma y coger
el paisaje imaginado. Renacer otros dientes
en la fria boca.
Morir el interior antes de apagar el cuerpo.
Arrancar lianas en el jardín. Mirar al pez.
La dimensión oscura de la existência queda allí
en el árbol. El pájaro verde es fuente.
Los símbolos rayados: silencio de vida.
En el exílio de los días,miedo. Miedo de pudrise
el habla, la imagen. Miedo de cerrar la manos al sol.
Miedo de cerrar los ojos al sueño.
EL VIENTO EN LA HOJAS
Converso con el tamarindo
el viento en las hojas.
La palabra cubre la tierra, cubre
las manos inquietas. La edad es remota.
La edad ciega los ojos e invade la muerte.
No tengo el sueño del limbo. El muro nace
la hierba al ponerse el sol. El árbol viene del tiempo
de las águas y trae la marea de las muchedumbres.
El silencio de las nacientes guarda la longitud
de la canción. El mismo silencio del verde pino.
El verso perdió el sol. Quiero hablar del niño
de la rosa del último adiós de la vieja casa.
Sombras habitan el interior del texto.
Converso con el tamarindo la historia del alma.
El alma se olvido de las estrellas. El miedo
se las confesiones y el desespero del habla abrigan
un siglo de vida en los dedos nodulosos de sueños.
Paisagem imaginada, 1997
POESIA SEMPRE. Ano 5 Número 8. Editor Geral: Antonio Carlos Secchin. Rio de Janeiro: MINISTÉRIO DA CULTURA / Fundação BIBLIOTECA NACIONAL, 1997.
452 p. ISSN 0104-0626 No. 10 927
Exemplar da Biblioteca de Antonio Miranda
Chuva na quilha
A chuva vem de longe, abriga
o fim do ano. No arroio,
memórias memórias
trituradas nas tardes outonais.
Vem chuva na campina da alma.
Guardamos os anéis usados nos dias
do calendário. A água repõe salivas
e lembramos as flores idas na maré.
Esperamos sóis que virão marcados
de cruzes. A madeira pesa o corpo
e levará o corpo. Somos sobreviventes
do oceano. Sua água chega na porta da casa
mesmo que se faça distante.
A chuva cinza os olhos.
O canto é anterior aos que sobrevivem.
Ainda que se conte o tempo.
Ainda que nas mãos o adeus.
Os mortos virão para o Ano Novo.
Estão sentados à mesa,
vestem linho.
Descerão na aurora
e quando o dia nascer
ficaremos só com a túnica
e a tempestade na quilha.
E o vento o vento presságios
nos olhos
trazendo cardumes. Trazendo a ferrugem
dos números.
Na lonjura dos gestos
Pesam os olhos abertos em mim.
O frio no corpo é de Amsterdã.
O sol morre na torre e golpeia
os cabelos sonhados no vento. Sinto
o cerne do ser apanhando grãos.
Grãos secos dormidos na lonjura
dos gestos que ficaram amortalhados.
O frio de Amsterdã, o corpo cheira
montanhas, o corvo voa longe. Há memória
do filho esperado que ficou no exílio.
Pesam os olhos abertos em mim.
Pesam crucificadas as sombras.
A insônia dilui lembranças.
Enforcamos os inventos do corpo.
Enformamos o rio. Enforcamos a paz.
Mariposa ociosa na folha
O escaravelho olha o pássaro na tarde.
Uma ausência perfura a boca. A realidade
é o mistério do tempo a morrer. Espaços
ordenam o pensamento. O vazio sé lúcido.
Havia aconchego de falas no jardim.
Havia peixes se amando no lago. No azul.
Entre uma palavra e um gesto escondíamos
moedas de ouro. A mariposa ociosa na folha.
Resta livre memória, discordância. Viver
a fragilidade a flutuação do imóvel.
Na andança visões dentro de mim.
A solidão da imaginação liberta.
Ah, o vento, o vento no âmago.
O amor se esvai. Habita uma força
proclamando o nascimento.
*
Página ampliada e republicada em setembro de 2025.
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