O Beija-flor
Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.
Neste bosque alegre e rindo
Sou amante afortunado,
E desejo ser mudado
No mais lindo beija-flor.
Todo o corpo num instante
Se atenua, exala e perde;
É já de oiro, prata e verde
A brilhante e nova cor.
Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergi da em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.
Vejo as penas e a figura,
Provo as asas, dando giros;
Acompanham-me os suspiros,
E a ternura do pastor.
E num vôo feliz ave
Chego intrépido até onde
Riso e pérolas esconde
O suave e puro amor.
Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega a teu rigor.
Toco o néctar precioso,
Que a mortais não se permite;
É o insulto sem limite,
Mas ditoso o meu ardor;
Já me chamas atrevido,
Já me prendes no regaço;
Não me assusta o terno laço
É fingido o meu temor.
Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.
Se disfarças os meus erros,
E me soltas por piedade,
Não estimo a liberdade,
Busco os ferros por favor.
Não me julgues inocente,
Nem abrandes meu castigo,
Que sou bárbaro inimigo,
Insolente e roubador.
Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.
Madrigais
Neste áspero rochedo,
A quem imitas, Glaura sempre dura,
Gravo o triste segredo
Dum amor extremoso e sem ventura.
Os faunos da espessura
Com sentimento agreste
Aqui meu nome cubram de cipreste;
Ornem o teu as ninfas amorosas
De goivos, de jasmins, lírios e rosas.
***
Suave fonte pura,
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti de seus olhos a ternura:
Ela já te procura;
Ah! como vem formosa, e sem desgosto!
Não lhe pintes o rosto:
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade,
Meu terno amor, minha infeliz saudade.
* * *
No ramo da mangueira venturosa
Triste emblema de amor gravei um dia,
E às dríades saudoso oferecia
Os brandos lírios e a purpúrea rosa.
Então Glaura mimosa
Chega do verde tronco ao doce abrigo ...
Encontra-se comigo ...
Perturbada suspira, e cobre o rosto.
Entre esperança e gosto,
deixo lírios e rosas ... deixo tudo;
Mas ela foge (ó céus!) e eu fico mudo.
* * *
Capada laranjeira, onde os amores
Viram passar de agosto os dias belos,
Então de brancas flores
Adornaste risonha os seus cabelos.
A fortuna propícia aos teus desvelos
Anuncia feliz novos favores:
Glaura torna; ah! conserva lisonjeira,
Copada laranjeira, por tributos,
Na rama verde-escura os áureos frutos.
* * *
Ó sono fugitivo,
De vermelhas papoulas coroado,
Torna, torna amoroso, e compassivo
A consolar um triste, e desgraçado,
Gemendo nesta gruta recostado,
Sinto mortal desgosto;
Não vejo mais que o rosto descorado
Da saudade, e da mágoa, com que vivo;
Ó sono fugitivo,
Torna, torna amoroso, e suspirado
A consolar um triste, e desgraçado.
* * *
Crescei, mimosas flores,
Adornai a verdura deste prado.
Já zéfiro aparece entre os Amores
Risonho e sossegado:
Da amável Primavera o doce agrado
Novo prazer inspira às Graças belas:
Verei brincar entre elas
A Ninfa mais cruel nos seus rigores.
Crescei, mimosas flores,
Fugiu o Inverno triste, e congelado;
Adornai a verdura deste prado:
* * *
Ó águas dos meus olhos desgraçados,
Parai que não se abranda o meu tormento:
De que serve o lamento
Se Glaura já não vive? Ai, duros Fados!
Ai, míseros cuidados!
Que vos prometem minhas mágoas? águas,
Águas! . " responde a gruta,
E a ninfa que me escuta nestes prados!
Ó águas de meus olhos desgraçados,
Correi, correi; que na saudosa lida
Bem pouco há de durar tão triste vida.
(De Glaura).
À LUA
Como vens tão vagarosa,
Oh formosa e branca lua!
Vem co'a tua luz serena
Minha pena consolar!
Geme, oh! céus, mangueira antiga,
Ao mover-se o rouco vento,
E renova o meu tormento
Que me obriga a suspirar!
Entre pálidos desmaios
Me achará teu rosto lindo
Que se eleva refletindo
Puros raios sobre o mar.
De Glaura
|
De
Manuel Inácio da Silva Alvarenga
O DESERTOR
Poema herói-cômico.
Edição preparada por Ronald Polito
Campinas, SP: Editora da Unicampi, 2010
ISBN 852680621-1
A reedição desta obra pouco conhecida de Silva Alvarenga, originalmente publicada em 1774, em Coimbra, é o resultado de um trabalho meticuloso e erudito de Ronald Polito. Trabalho de cotejamento, transcrição e interpretação filológica e histórica a partir do microfilme do exemplar da célebre coleção de José Mindlin. Certamente que Glaura ofuscou toda a obra do poeta, com sucessivas edições disponíveis em livrarias e bibliotecas. Mas O Desertor traz para a compreensão de nossa literatura uma contribuição excepcional por retratar um momento e uma visão da cultura literária e política de seu tempo, além de constituir-se em exemplo de um gênero fundamental para o estudo da literatura luso-brasileira. A "Introdução" e as "Notas" desta edição a cargo de Polito são peças fundamentais nesta abordagem que resgata a memória de uma obra singular e emblemática, e desvenda nossa alma cultural e seus intrincados labirintos e melindres.
Que esperas tu dos livros?
Crês que ainda apareçam grandes homens
Por estas invenções, com que se apartam
Da profunda ciência dos antigos?
Morreram as postilas, e os Cadernos:
Caiu de todo a Ponte, e se acabaram
As distinções, que tudo defendiam,
E o ergo, que fará saudade a muitos!
Noutro tempo dos Sábios era a língua
Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba,
Ou se muda em pior.
"Quando a Verdade aparece em sonhos ao preguiçoso "herói" de O desertor, começa a se esclarecer a postura de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, ao compor seu ambicioso poema satírico. "Eu sou quem de intricados labirintos /Pôs em salvo a Razão ilesa, e pura" - diz ela, mas sem ocultar seu estreito vínculo com o poder: "Se são firmes por mim o Estado, a Igreja, / Se é no seio da paz feliz o Povo, / Dizei-o vós, ó Ninfas do Parnaso". A pretendida pureza racional aparece diretamente ligada à conservação das instituições político-religiosas, e assim enfeixa de uma vez as noções de bom senso, boa conduta e bom governo.
Isso basta para reconhecermos em O desertor um dos textos mais importantes para o estudo e o desvelamento das especificidades da ilustração luso-americana no século XVIII. Silva Alvarenga, no entanto, é o menos conhecido e divulgado dos árcades "ultramarinos". Em todo o século XX, praticamente só a sua poesia retornou aos prelos, com rondós e os madrigais amorosos e Glaura. A volta de O desertor — quase 150 anos depois da última edição integral — pode dar início à redescoberta das demais facetas do poeta.
Neste caso, trata-se de um poema herói-cômíco, que almeja provocar o riso ao dar tratamento épico a situações e personagens tidos como ridículos. Publicado em 1774, tem como ponto de partida a celebração da reforma da Universidade de Coimbra empreendida com mão de ferro pelo marquês de Pombal. O protagonista, Gonçalo, é o "desertor das letras": dissoluto e mal-acostumado com os "intricados labirintos" da velha escolástica, agora banida, o rapaz não tem outra escolha senão fugir das salas de aula. Assim se iniciam as peripécias do poema, entre as
quais não será das menos curiosas o fazer a sátira dos costumes se confundir com o elogio do poder."
Sérgio Alcides
DOS FRAGMENTOS DE "O DESERTOR - Poema herói-cômico"
Os que aprendem o nome dos autores,
Os que lêem só o prólogo dos livros,
41 E aqueles, cujo sono não perturba
O côncavo metal, que as horas conta,
Seguiram as bandeiras da ignorância
Nos incríveis trabalhos desta empresa.
(...)
Heróis, a quem uma alma livre anima,
Que desprezando as Artes, e as Ciências,
Ides buscar da Pátria no regaço,
190 Longe da sujeição, e da fadiga
Doce descanso, amável liberdade:
Se algum de vós (o que eu não creio) ainda
Tem na alma o vão desejo dos estudos,
Levante o dedo ao alto. Uns para os outros
195 olharam de repente, e de repente
Rouco, e brando sussurro ao ar se espalha:
Qual nos bosques de Tempe*, ou nas frondosas
Margens, que banha o plácido Mondego,
Costuma ouvir-se o Zéfiro suave,
200 Quando meneia os álamos sombrios.
Nenhum alçou a mão, e a Ignorância
Pareceu consolar-se, imaginando
Sonhadas glórias de futuro império.
* Qual nos bosques de Tempe. Lugar da Tessália célebre pela amenidade de seus bosques.
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OLIVEIRA, Alberto de. Páginas de ouro da poesia brasileira. Rio de Janeiro: H Garnier, Livreiro-Editor, 1911. 420 p. 12x18 cm Ex. bibl. Antonio Miranda
Inclui os poetas: Frei José de Santa Rita Durão, Claudio Manuel da Costa, José Basílio da Gama, Thomas Antonio Gonzaga, Ignacio José de Alvarenga Peixoto, Manoel Ignacio da Silva Alvarenga, José Bonifacio de Andrada e Silva, Bento de Figuieredo Tenreiro Aranha, Domingos Borges de Barros, Candido José de Araujo Vianna, Antonio Peregfrino Maciel Monteiro, Manoel de Araujo Porto Alere, Domingos José Gonçalves de Magalhães, José Maria do Amaral, Antonio Gonçalves Dias, Bernardo Joaquim da Silva Guimarãaes, Francisco Octaviano de Almeida Rosa, Laurindo José da Silva Rabello, José Bonifacio de Andrada e Silva, Aureliano José Lessa, Manoel Antonio Alvares de Azevedo, Luiz José Junqueira Freire, José de Moraes Silva, José Alexandre Teixeira de Mello, Luiz Delfino dos Santos, Casemiro José Marques de Abreu, Bruno Henrique de Almeida Seabra, Pedro Luiz Pereira de Souza, Tobias Barreto de Menezes, Joaquim Maria Machado de Assis, Luz Nicolao Fagundes Varella, João Julio dos Santos, João Nepomuceno Kubitschek, Luiz Caetano Pereira Guimarães Junior, Antonio de Castro Alves, Luiz de Sousa Monteiro de Barros, Manoel Ramos da Costa, José Ezequiel Freire, Lucio Drumond Furtado de Mendonça, Francisco Antonio de Carvalho Junior, Arthur Narantino Gonçalves Azevedim Theophilo Dias de Mesquita, Adelino Fontoura, Antonio Valentim da Costa Magalhães, Sebastião Cicero de Guimarães Passos, Pedro
Rabello e João Antonio de Azevedo Cruz.
GLAURA DORMINDO
(Rondó XXVII)
Voae, zéfiros mimosos.
Vagarosos, com cautela;
Glaura bella está dormindo;
Quanto é lindo o meu amor!
Mais me elevam sobre o feno
Suas faces encarnadas,
Do que as rosas orvalhadas,
Ao pequeno beija-flor.
O descanço, a paz contente
Só respiram nestes montes :
Sombras, penhas, troncos, fontes,
Tudo sente um puro ardor.
Voae, zéfiros mimosos,
Vagarosos, com cautela;
Glaura bella esta dormindo;
Quanto é lindo o meu amor !
O silencio, que nem ousa
Bocejar e só me escuta,
Mal se move nesta gruta,
E repousa sem rumor.
Leve somno, por piedade,
Ah! derrama em tuas flores
E a saudade do pastor!
Voae, zéfiros mimosos,
Vagarosos, com cautela;
Glaura bella está dormindo,
Quanto é lindo o meu amor i
Se nos mares apparece
Venus terna e melindrosa,
Glaura, Glaura mais formosa
Lhe escurece o seu valor.
No vestido azul e nobre
E' sem oiro e sem diamante,
Qual a filha de Thaumante,
Que se cobre de esplendor.
Voae, zéfiros mimosos,
Vagarosos, com cautela;
Glaura bella está dormindo;
Quanto é lindo o meu amor!
E' suave o seu agrado
A meus olhos nunca enxutos,
Como são os doces fructos
Ao cançado lavrador.
Mas bem longe da ventura,
Ás mudanças vivo affeito,
Encontrando no teu peito
Já brandura e já rigor!
Voae, zéfiros mimosos,
Vagarosos, com cautela;
Glaura bella está dormindo;
Quanto é lindo o meu amor!
(Madrigal I)
Suave fonte pura.
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti de seus olhos a ternura;
Ella já te procura;
Ah ! como vem formosa e sem desgosto !
Não lhe pintes o rosto :
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade,
-Meu terno amor, minha infeliz saudade.
(Madrigal XLVI)
O' garça voadora,
Se além do golfo inclinas os teus giros,
Ah! leva os meus suspiros
A' mais gentil pastora destes montes !
Não temo que te enganes; prados, fontes,
Tudo se ri com ella;
Não é, não é tão bella,
Quando surge no céo, purpúrea aurora;
O' garça voadora,
Se além do golfo inclinas os teus giros,
Ah ! leva por piedade os meus suspiros.
Extraído de
POESIA SEMPRE. Ano 18. 2012. Número 36. Edição dedicada a Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, 2012. Editor Afonso Henriques Neto.
A noite
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
que suspira lagrimosa,
amorosa em noite escura,
sem ventura, nem prazer.
Já caiu do oposto monte
sombra espessa nestes vales;
ouço aos ecos de meus males
esta fonte responder.
São iguais a praia, a serra:
duma cor o bosque, o prado:
triste o ar, feio, enlutado
vem a terra escurecer.
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
que suspira lagrimosa,
amorosa em noite escura,
sem ventura, nem prazer.
Melancólico agoireiro
solta a voz Mocho faminto,
e o Vampir de sangue tinto,
que é ligeiro em se esconder.
Voa a densa escuridade,
o silêncio, horror e espanto:
e as correntes do meu pranto
a saudade faz verter.
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
que suspira lagrimosa,
amorosa em noite escura,
sem ventura, nem prazer.
Tem a noite surda e fera
carro de ébano polido:
move o cetro denegrido
toda a Esfera vê tremer.
Forma o tímido desgosto
mil imagens da tristeza,
que assustada a natureza
volta o rosto por não ver.
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
que suspira lagrimosa,
amorosa em noite escura,
sem ventura, nem prazer.
Ao ruído destas águas
vinde, ó sonhos voadores,
de Morfeu co´as tenras flores
minhas mágoas suspender.
Mas se amor alívios nega,
quanto o peito mais inflama:
só aquele, que não ama,
é que chega a adormecer.
Ouve, ó Glaura, o som da Lira,
que suspira lagrimosa,
amorosa em noite escura,
sem ventura, nem prazer.