Fonte: www.blocosonline.com.br
LEILA MICCOLIS
Leila Miccolis nasceu no Rio de Janeiro. Editora, professora de roteiro de televisão, promotora cultural e artista performática.
Obra: Em perfeito mau estado (Editora Achiamé, Rio de Janeiro, 1987); Do poder ao poder - alternativas na poesia e no jornalismo nos anos 60 (Editora Tchê, Rio Grande do Sul, 1987); O bom filho a casa torra, (Edicon e Blocos, São Paulo e Rio, 1992); Achadas e Perdidas e Sangue cenográfico (Editora Blocos, Rio de Janeiro, 1997).
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
EU TE DOU OS MELHORES ANOS DE MINHA VIDA
Coso a alça de um vestido descosido,
enquanto pregas um prego
numa madeira bichada,
dou chiclete a nosso filho
para parar de gritar,
te mostro a casa cheirando
a pinho e desodorante,
me sorris agradecendo.
É certo que não quero recompensa.
Mas te beijo tua boca vomitada
que tem gosto de fome
e de torrada.
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE
Esqueço meu desejo de vingança,
e a mágoa recalcada esqueço até,
se ponho a te afagar o membro flácido
com as pontas dos artelhos
do meu pé.
PENA DE MORTE
Eram bastante bons
aqueles tempos de ódio,
em que planejávamos nossos assassinatos,
pelo simples prazer de nos vingarmos:
eu te via com os dedos na tomada,
tu me vias sufocada pelo gás.
Tempos em que sorrias ao atravessar a rua,
e eu achava graça em ser atropelada;
tempo em que queríamos fazer um filho
para espancarmos juntos,
nos dias de ócio,
em que eu te servia de escarradeira,
em vez de cozinheira e passadeira.
Depois veio o amor
que é como um lenço em que se assoa,
ou mãe que chicoteia e nos perdoa.
Hoje afago-te as corcovas
e lustro-te as botas novas.
MODA
Eu queria te ver,
coxas de fora,
(como de fora vejo teus pêlos do peito
pela camisa de seda),
a andares na rua,
entre assobios e apalpadelas,
o olhar disperso
como quem nada percebe,
e mostrando ao sentares,
subindo-te a roupa,
a cueca combinando com a gravata.
LAÇOS INDISSOLÚVEIS
Refaço nós de capacho:
por um fio me escapas,
por um laço te prendo;
tranço um fio — me queres —
tranço outro — me odeias.
Por diversão lavo o filho até conseguir dar brilho,
enxaguo tua barba de Bombril
com mil e uma utilidades,
colho batatas grelhadas
da raiz do teu cabelo
para de noite jantar,
e no fim da noite gozo,
te chupando o calcanhar.
PITADA DE SAL
Quero ver onde vai dar teu jogo
de esconder o feto no forno,
o macarrão no banheiro da empregada,
a cerveja na bexiga cheia.
Teu jogo de esconder
o desejado
no sorriso cordial,
e nas festas galantes de sempre.
Esconder tua voz de cio,
teus pêlos enroscados
entre a coxa aberta,
o medo de perder a virgindade
e o teu recato de homem.
EFEITOS ÓTICOS
Quanto mais se envelhece
mais os mortos se aproximam.
Mas a conversa é difícil:
eles usam expressões diáfanas,
ectoplásticas,
e sussurram sombras.
Às vezes,
figuras nos muram grafitam;
outros,
em torno da palavras gravitam.
E sempre que se vão,
atravessando tijolo,
concreto, cimento e cal,
nos deixam a confirmação
— nenhuma parede é real.
HORÁRIO COMERCIAL
As mães do meu edifício
falam assim com seus filhos:
—"Cuidado pra não cair...
Se sujar a roupa nova
eu vou lhe dar uma sova".
Tem outra espécie, também,
que sempre se sobressai,
a que ameaça terrível:
— "Eu vou contar pro seu pai"...
Por fim, eu ouço a que diz:
— Ah, meu Deus, que mal eu fiz
pra ter tido este estrupício?"
Eu então, ouvindo isso,
me arrisco a uma conclusão
sem brilho e bem pessoal:
mãe sorrindo para os filhos,
só na televisão
em algum comercial...
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No universo das divergências
Em vez de eu me deitar na cama,
resolvi criar fama.
E aí comecei a fazer versos, a mendigar editores,
como se eles fizessem grandes favores
em nos publicar...
E de tanto batalhar, virei... poeta
— um grande passo em minha meta —
porque em poetisa todo mundo pisa.
E quando me consideraram menina prodígio,
consegui que um crítico de prestígio
analisasse minha papelada.
Ele deu uma boa folheada,
pensou, pensou e sentenciou:
“— Incrível... não tem nível...”
Juro que fiquei com muita mágoa
porque, afinal, quem precisa de nível
é caixa d´água...
Extraído de: CABAÑAS, Teresa. Que poesia é essa?! Poesia marginal: sujeitos instáveis, estética desajustada... Goiânia: Editora UFG, 2009
Obra crítica recomendável para os estudiosos do tema!
TEXTOS EN ESPAÑOL
TRADUCCIÓN DE
ADOVALDO FERNANDES SAMPAIO
TE DOY LOS MEJORES AÑOS DE MI VIDA
Coso el ruedo de un vestido descosido
mientras clavas um clavo
en una madera agusanada
le doy chicles a nuestro hijo
para que deje de gritar
te muestro la casa oliendo
a pino y desodorante
me sonríes agradecido.
Es cierto que no quiero recompensa.
Te beso la boca vomitada
que tiene gusto de hambre
y de tostada.
Extraído de la obra
VOCES FEMENINAS DE LA POESÍA BRASILEÑA
Goiânia: Editora Oriente, s.d.
Página republicada em junho de 2008
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