JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES
Nascido em Juiz de Fora (MG), em 1951, o poeta Júlio Castañon Guimarães é doutor em letras e mora no Rio de Janeiro há mais de três décadas. Crítico e também tradutor, Castañon estreou na poesia em 1975 com o livro Vertentes, um trabalho em que revisita suas raízes mineiras, mas com o olho na poesia concreta.
Esse namoro com a vanguarda visual se intensifica no livro seguinte, 17 Peças, de 1983. Em seus trabalhos posteriores — são, no total, seis títulos, reunidos este ano no volume Poemas [1975-2005] —, o poeta não produz mais peças de estruturação marcadamente visual. No entanto, mantém traços dessa passagem pelo construtivismo.
Uma característica que salta dos poemas de Castañon — e que pode ser facilmente constatada nos poemas ao lado — é seu uso da poesia como lente de observação de fatos, pessoas e coisas ao redor. Obviamente, não se trata de mera observação, mas de reflexão em torno do que essa lente é capaz. CARLOS MACHADO
De
Julio Castañon Guimarães
17 PEÇAS
Rio de Janeiro: Graf. e editora Danubio, 1983.
s.p., folhas dobradas e acondicionadas
em capa de cartão tipo carpeta.
Tiragem de 300 exemplares.
Trata-se de uma obra singular cujas peças (17 no total) estão soltas e acondicionadas sob uma capa dobrável. Cada peça é independente mas, na acepção do José Paulo Paes, na apresentação, "elas não são um ajuntamento ocasional, mas um conjunto orgânico cujas componentes mutuamente se esclarecem". Cada peça é desdobrável durante o manuseio para a leitura, tanto física quanto animicamente pela participação do leitor. Este tipo de livro-poema dificulta a extração de partes para reprodução por outras mídias além da original. Caso excepcional é este (mais abaixo) "Códice" (peça n. 15) que é auto-referente por ser um poema visual por excelência.
De
Júlio Castañon Guimarães.
Do que ainda / segmentos.
Pinturas de Manfredo de Souzanetto;
fotografia Jaime Acioli.
Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
84 p. ilus. col. ISBN 978-85-7740-061-4
ANGULOSA, SE PODERIA DIZER
da voz aqui por perto.
Na verdade, assim não se chega
a indicar uma nuance do timbre;
antes, parte de algo como
o estilo de seu desenho;
melhor ainda, a imagem
que ficaria na retina,
se feito o registro de sua sintaxe
nas paredes de abandono
em que vai ressoando.
Porque sobretudo sua inclinação
para definir espaçamentos (daí
os encontros das linhas supostas),
e cada coisa em seu lugar,
mesmo que desconfie de que
numa articulação em pura perda,
não tanto pelas tempestades
mal perceptíveis na linha da superfície,
mas pela noção sempre
de que tudo já começou a se acabar.
SOBRE A MESA - ALGO COMO SEVERA,
mesmo que não se soubesse a madeira,
mas seu tom, seu peso, ou o que se impõe,
e a forma de uma exatidão, sem excedentes -
sobre a mesa, não exatamente desordenados,
mas numa localização de espera,
sobre a mesa, para virem a ser dispostos,
alguns materiais, como vidro, metal, tecido, louça,
e então, compostos, em precisas distâncias
e relações entre eles, alguns utensílios,
como toalha, talheres, copos, pratos,
certo que raros exemplares de artesania,
sobre a mesa, recumprem funções
tempos afora, alheios a todas as sombras,
sobre a mesa - e mais deserta.
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DESACORDO
passos sem retorno
deflagram o desamparo da memória:
ruas em silêncio
te ignoram e se demitem
de fotografias imunes
resta
trégua irônica ante o pasado
um vago poema
desperto porém
contra as arestas do dia
OUTROS POEMAS
TARDE DE DOMINGO
assim
disposta num terraço
aberto ao tempo
a cadeira se balança
com cuidado e conforto
mas leve indecisão
quanto ao ritmo
não tanto
pelo frágil frêmito
da imagem do mar
seu brilho
de espelho fraturado
sob o sol
mas sobretudo
pela regularidade
do movimento mesmo do mar:
avanço sistemático
e recuo estratégico
a tracejar
uma linha de ameaça
ou simples prenúncio
de perigos mais fundos
— o frio dos abismos
e os restos
que habitam esta baía
não fosse vir
de dentro da casa
essa música
feita de limpidez
e medida
maquinaria impalpável
de emoção à flor da matéria
que numa recusa ao devaneio
se articula avessa à dispersão
para expor
por entre sombras
iluminadas pela razão
todo o seu desalento
HORIZONTE
a janela enquadra
quase ao pé
um jardim
uma faixa de areia
e adiante
um lance de mar
e ainda além
um trecho de terra
que antecipa
uma linha de montanhas
a janela (não) enquadra
o ar maculado
(escórias escárnios)
o estertor dos músculos
acionado pelo trânsito de ruídos
a tensão de ofensas ascos
lacerações (acúmulo
de escombros)
entre o que a janela
e o que não
toda uma vida (oculta)
relances limites
algumas disposições
nesgas de perspectivas
traços de razão
sim o que insistente
degrada o quadro
é tudo tudo
menos
este crespo cansaço e talvez
a música de sua imaginação
NOTURNO À JANELA
certas noites
a névoa invade
tão densa tudo
que impede ver
o outro lado da baía
não apenas
a linha do horizonte
ou o corpo das montanhas
ou mesmo o espaço de mar
e as ilhas interpostas
que toda noite
quase ocultos
já tendem a se tornar
mera hipótese
salvo a brisa
e o que nela há
de memória e suposição
mas sobretudo
os faróis
suas luzes intermitentes
ora pontuações do silêncio
ora suturas de uma arquitetura
sem limites sem traves
volumes insuspeitos opacos
sim um tudo desmesuradamente nada
De Matéria e Paisagem (1998)
CICLISTA
curvado sobre a paisagem
pedala os estribilhos da memória
que músculo aciona
a brisa da tarde?
por onde a língua passeia?
o rosto se apoia na coxa esquerda
De Inscrições (1992)
Poemas extraído da página www.algumapoesia.com.br, mantida pelo amigo e poeta Carlos Machado.
GEOGRAFIA
sombras ancestrais
claras manhãs
em que margem?
ainda que a memória esbata as horas
o que ha são espaços perdidos
urna casa
uma viagem
cabelos soltos em minhas mãos
De Vertentes (1973)
3. CEMITÉRIO DA MATRIZ DE SANTO ANTONIO
onde tanto, tudo, tal
como a vida cedeu
embora seu prazo
seu ajuste sua tarde?
ao sol das almas
desfaz-se áureo sermão
nas cruzes do campo santo,
através da memória
De Inscrições (1992)
PASSAGEM
enquanto na rua passos
medidos, como o percurso
de versos tão breves quanto
certeiros, sob as arcadas
que exatas na noite ligam,
tal estrofe a estrofe,
a janela e a ocasião
de um hotel estrangeiro
aos vidros aos aços as linhas
da imaginação que se constrói,
as fortes torres perto
onde pedra pesa o passado
ao alcance de um olhar
rápido o giro da história:
passos medidos entre tempos
postos contíguos pelos planos da cena
em tão desmedida simetria
que o atropelo não de pausas pés
mas do que perde o chão
e, crespo, insone, dúvida, se acende
De Matéria e Paisagem (1998)
GUIMARÃES, Julio Castañon. Práticas de extravio. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003. 61 p. 13x20 cm
LINHA
no horizonte talvez a linha
que limite impalpável
entre morros e céu
quase só a ideia do traço superposto
à massa de morros
ou ainda em outra direção
por pouco não só conjectura
o frágil adensamento da base
do que se espraia acima
com as variantes de luz e ventos
o que assim mais começa a se definir
quando os perfis de um ou outro pássaro
se alçando do opaco dos morros
contra camadas de transparência
leem-se como trechos soltos dessa linha
fragmentos que alçassem voo
e assim sobre a linha marcas
breves longas aspirações
ênfases ritmo ritmo
com o que indícios do esboço
do andamento dessa linha
ou pura lição de escrita
GUIMARÃES, Júlio Castañon. Inscrições. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 60 p. (Série Poesia – Direção Jayme Salomão) ISBN 85-312-0154-3 “ Júlio Castañon Guimarães “ Ex. bibl. Antonio Miranda
l. Embornal
quantos passos rasuram
a rota da releitura?
quantas fraturas perfazem
a textura do mapa?
se devassa
o real e seus ermos
a história não isenta
as dobras da imaginação
um silêncio e seu repertório
operam a cena:
leve não é o olhai-
se o espaço desenha o tempo
2. Frontispício
o discurso dos auspícios o discurso da encarnação o
discurso das infâmias o discurso da exaustão o discur-
so dos ânimos
lavra a letra risca a letra desbasta a letra aplaina a
letra agencia a letra
porque aflorou o que saciava a avidez porque as noites
ocultavam nos becos as cores do pecado porque se
talharam glórias aos céus porque anseios conspiraram
porque as pedras suportaram os passos da história
GUIMARÃES, Julio Castañon. Poemas [1975-2005]. São Paulo: Cosac Naif; Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2006. 240 p. (Coleção Ás de colete, v. 14) 11,5X18,5 cm. ISBN 85-7503-324-X “ Julio Castañon Guimarães “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Luto
envolto e travado
pois camadas superpostas
ou círculos concêntricos
de silêncios de silêncios
onde (suposta por força
a imobilidade) deslizam
fragmentos resquícios
sombras imaginações
e até mesmo avessos
de vozes
que se dos mundos exteriores
e seus sistemas de ruínas
chegam nem meros sinais
nem a construção da ausência
talvez mínimos sismos
provenientes ainda
de ânimos pretéritos
de afetos agora vultos
não será não será
nenhum instante da mecânica
que proporá qualquer outro
ciclo
de viagens
de canções
salvo a alma que se esvai
i. Embornal
quantos passos rasuram
a rota da releitura?
quantas fraturas perfazem
a textura do mapa?
se devassa
o real e seus ermos
a história não isenta
as dobras da imaginação
§
um silêncio e seu repertório
operam a cena:
leve não é o olhar
se o espaço desenha o tempo
TEXTO EN ESPAÑOL
DESACUERDO
Traducción de Jesús Sepúlveda
pasos sin retorno
infaman el desamparo de la memoria:
calles en silencio
te ignoram y se resignan
ante las fotografias inmunes
lo que resta
es una tregua irónica ante el pasado
un vago poema
que sin embargo está despierto
contra las aristas del dia
Fuente: HELICOPTERO, V.3-4, 2000, Eugene, Oregon, EE.UU. (Los editores
son profesores del Depto. de Lenguas Neolatinas, de la Universidad de Oregon.)
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Tradução de Adolfo Montejo Navas
GEOGRAFÍA
sombras ancestrales
mañanas claras
¿en qué margen?
aunque la memoria esbatimente las horas,
lo que hay son espacios perdidos
una casa
un viaje
cabellos sueltos en mis manos
De Vertentes (1973)
3. CEMENTERIO DE LA MATRIZ DE SAN ANTONIO
¿dónde tanto, todo, tal
como la vida cedió
dejó su plazo
su ajuste su tarde?
al sol de las almas
un áureo sermón se deshace
en las cruces del camposanto,
a través de la memoria
De Inscrições (1992)
PASAJE
mientras en la calle pasos
medidos, como el recorrido
de versos tan breves como
certeros, bajo las arcadas
exactas que en la noche juntan
estrofa a estrofa,
la ventana y la ocasión
de un hotel extranjero
a los cristales, aceros, a las líneas
de la imaginación que se construye,
a las fuertes torres cerca
donde pesa piedra el pasado
al alcance de una mirada
rápida el giro de la historia;
pasos medidos entre tiempos
puestos contiguos por los planos de la escena
en tan desmedida simetría
que el atropello no de pausas pies
sino de lo que pierde el suelo
y, crespo, insomne, duda, se enciende
De Matéria e paisagem (1998)
*De Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Culta do Brasil.
*Nota: o tradutor Adolfo Montejo Navas é amigo comum nosso com Wagner Barja, e o convidamos a participar da exposição OBRANOME 2 no Museu Nacional de Brasília, durante a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília 2009. Montejo Navas prometeu-nos suas traduções ao castelhano e só na Espanha, em viagem, é que conseguimos os originais que estamos divulgando parcialmente no nosso Portal de Poesia Ibeoramericana, com os agradecimentos.
TEXT IN ENGLISH
DISAGREEMENT
Translation by Steven White
Steps with no return
inflame memory´s homelessness:
streets in silence
ignore you and resign
from immune photographs
What remains
is an ironic truce with the past
a vague poem
awake nonetheless
against the day´s edges
From: HELICOPTERO, V.3-4, 2000, Eugene, Oregon, EE.UU. (The newspapers directors are professors of the Romance Dept. Languages, University of Oregon.)
NEW BRAZILIAN POEMS. A bilingual anthology after Elizabeth Bishop.
Translated & edited by Abhay K.. Preface by J. Sadlíer. Rio de Janeiro:
Ibis Libris, 2019. 128 p. 16 x 23 cm. ISBN 978-85-7823-326-6
Includes 60 poets in Portuguese and English Ex. bibl. Antonio Miranda
Cyclist
curved over the landscape
pedals the memory rails
what muscle triggers
the afternoon breeze?
where does the tongue go?
the face rests on the left thigh
Ciclista
curvado sobre a paisagem
pedala os estribillos da memória
que músculo aciona
a brisa da tarde?
po ronde a língua passeia?
o rosto se apoia na coxa esquerda
|
INIMIGO RUMOR – revista de poesia. Número 11 – 2º SEMESTRE 2001. Editores: Carlito Azevedo, Augusto Massi. Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 2001. 204 p. ISSN 415-9767. Ex. bibl. de Antonio Miranda
ALGUMAS ESTROFES
talvez fosse o caso
de dizer que ia de roldão
como qualquer coisa
a que se pudesse associar
não as elaborações de um estilo
mas apenas um modo
qualquer coisa
perdida na falta de noção
do que quer que seja
de nexos de aproximações
que rompessem os arredores
da indistinção
ou um modo como
o do empenho em dizer
entre aresta e rumor
mas quando se entrechocam
caminhos sem roteiros
numa ausência de elocução
*
se o que se acumula
talvez não passe de vazios
que nesse movimento
por sua impassibilidade
se revelem simulacros
de si próprios
em mais um movimento
que se diria impossível
não fosse esse peso crescente
a desenhar toda a imobilidade
pois que a paisagem
não tanto por esse descampado
ou esta trilha e sua curva
mas sobretudo como método
em que do abismo de dentro
se extrai o que no horizonte
se arquiteta com resquícios de sons
*
um núcleo tão obscuro
que em sua densidade
desordena sem comoção
os planos
até a superfície
e além — as ingênuas estratégias
para produção de sentimentos voláteis
*
no trecho em que de onde
até o horizonte
entre alguma medida
e o que de vago
há o que na distância
brota tão avassalador
quanto esfacelada
a certeza à mão
*
tudo é passado
e a afirmação se elabora
como mais que um arranjo
que se segue não a mecanismos
para falsear sombras
mas a uma soma
de recuos extravios fragilidades
então quase proposta de lema
para todo o futuro
APROXIMAÇÕES
do que à deriva em uma região
às vezes esquiva mas aos poucos
recuperada por andanças
dessas que buscam numa pele
antes mesmo do tato a iminência
de uma pulsação e além
como entraria no ar
não seu desenho desenvolto na brisa
mas o som a escoar
pelas reentrância de seu silêncio
*
do que então só pelas rotas desandadas
e uma imaginação quase sem avessas
não fossem imagens que se armam
com arredores disto e daquilo
em acúmulo cujos volumes escasseiam
pois que acréscimos de transparências
em que as palavras tão reticentes quanto esparsas
vão esfiapando um mínimo que seja
de negociação com as próprias coisas
então soltas prestes em desequilíbrio
*
do que sempre apenas quase à mão
pois no fio de lembranças arredias
quando não ocultas sob árvores
à beira de trilhas que se enfurnam
pela mata pelas tardes pelos sustos
das almas e seus corpos
senão que no baldio (ou a pino) das horas
alimentam o engenho de modulações
para essa luz obscura
a lâmina da desolação e sua persistência
*
Página ampliada e republicada em abril de 2022
Página publicada em novembro de 2008; página ampliada e republicada em junho de 2015.
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