IACYR ANDERSON FREITAS
Nasceu em Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, em 1963. Engenheiro civil e mestre em Teoria da Literatura. Publicou 13 livros de poesia e três de ensaio literário, mereceu vários prêmios e sua obra vem sendo traduzida a outros idiomas.
“Aproveitando a visibilidade dada a um Estado literalmente poético, que desde os árcades ao profundo Guimarães Rosa alcançou os cumes da originalidade, descobre-se um poeta contemporâneo, Iacyr Anderson Freitas, que representa uma recente mina entre essas tantas de inesgotável minério”. FABRICIO CARIPINEJAR
“Iacyr Anderson Freiras não é só uma promessa, mas uma afirmação, atesta-o a firmeza de sua poesia, abonada por vasta fortuna crítica relacionada no final do volume. É raro um poeta nascer pronto.” SALOMÃO SOUSA
Observación: hay una segunda página de poemas de Iacyr Anderson Freitas. Para leer texto exclusivamente en Español, ir para Poesia Iberoamericana »
FREITAS, Iacyr Anderson. Ar de arestas. Fotografias de Ozias Filho. São Paulo: Escrituras Editora; Juiz de Fora, FUNALFA, 2013. 79 p. ilus. p&b. 23x16,5 cm. capa dura ISBN 978-85-7351-467-8 Capa e projeto gráfico: Edna Batista. Diretor editorial: Raimundo Gadelha. Coleção A.M. (EE)
*
Inda é preciso ocultar
paralelos entre o dentro
e o fora, eis que o lugar
dessa dor é sempre o centro.
Se ao cerne ela retoma
um caminho mais agudo,
todos os zeros da soma
pouco lhe servem de escudo.
Tirante o fel, fica a sombra
de lacerações futuras,
o desespero que assombra
qualquer migalha de cura.
Desse terror não se escapa
sem cicatriz ou sequela.
Dois dias perde-se o mapa
— e o mapa nada revela.
Pouco adianta empregar
a expressão à flor da pele.
De uma flor tão singular
que só espinhos desvele
(se de espinhos ela mesma:
pétala que a treva instila,
raiz que se esgota em resma
e devora a própria argila(.
*
Devora onde não se espera:
no mercado em que a memória
queimaria outra quimera
por mil notas promissórias.
FREITAS, Iacyr Anderson. A Soleira e o Século. Poesia. São Paulo Nankin Editorial; Juiz de Fora, MG: Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA). 2002. 310 p. (Coleção Janela do caos poesia brasileira) 12X18 CM. Capa e pojeto gráfico: Antono do Amaral Rocha. Fotografia d capa: Dimas Guedes. Bibliografia. ISBN 85-86372-46-3 Col. Bibl. Antonio Miranda
À MARGEM
Que rosto terás
na eternidade?
Qual o teu
verdadeiro nome,
a palavra que te grava
desde o princípio?
Que olhar doarás
ao que te espera
além do tempo
e do espaço?
E a tua voz?
Acaso pensaste
um segundo apenas
na tua voz?
Quando cessarem todos os relógios,
quando a terra entrar de vez
pelo teu corpo, qual
o teu verdadeiro rosto?
De
Iacyr Anderson Freitas
viavária
Juiz de Fora: Funalfa edições, 2010. 134 p.
ISBN 978-85-7751-057-3
Iacyr Anderson Freitas consegue a façanha, ou o disfarce, de ser contemporâneo valendo-se de formas canônicas de construção poética. Vencendo as leis da Física, graças a "engenho e arte", em tempos simultâneos, nos extremos da ampulheta, ser e estar da poesia. "Viavaria" é essa trajetória que Edgar Morin preconiza: hasteado na tradição, mas projetado no futuro. ANTONIO MIRANDA
"Em cada página. Em cada linha/ não medida, que outras linhas suporte,/ há sempre a luz do que jamais se aninha // num só instante (seja ele qual for" .
Oferenda mortuária
Primeiro se oferece
a pretos alforria,
para cobrar, depois,
o que ninguém previa:
a conta dos seus dias
a juros, banzo e febre,
num lugar onde a morte
galopa feito lebre.
Num lugar já gravado
com o visgo da peste,
que só o larga quando
menos que um sopro reste.
Semente
É preciso deixar
que fujam, e que contem
com as roupas doadas
pelas mortes de ontem.
Eles podem levar
ao destino a semente
- um amor que maltrata
quem mais o experimente.
Mas não deixe que fujam
à fuga verdadeira:
da vida que tiveram
tão pobre e tão rasteira.
Da arte de roer unhas
Não é tanto a vontade de gastar-se.
Verdadeiramente não. Longe disso.
Já basta o tempo, que gasta o disfarce
e adia sempre o maior compromisso.
Simples pressa, quem sabe? De antemão
fazer com os dentes o que, depois,
terão de cumprir os entes do chão?
Antecipar o que é certo, ora pois?
Levar a bom termo o que é sem remédio,
até roer de vez todo o vivido?
Que gosto tem? É mesmo tão bom? "Médio.
Tem longe um sabor de livro não lido.
De livro que fica amarrado à estante
mais alta, e cujo dono nunca o empresta,
mas em silêncio apara, a cada instante,
tudo o que em si possa existir de aresta."
PRIMEIRAS LETRAS
São Paulo: Nankin; Juiz Fora: FUNALFA, 2007
(Seleção de poemas)
APENAS ELE
tudo muito quieto
não fosse o menino
brincando
na memória
eis minha infância
entre os móveis
como o retrato
de cecília
& alguém toca o piano
apenas ele
destoa
da mobília
DUBLAGEM DOS DOMINGOS
dizer o quê? quando? onde?
domingo me não suporta
ergue potros escoiceia
em maços de missa
perco o apetite fico troncho
domingo então desunha
gordo parece um porco de tão nobre
meu hábito suportasse as etiquetas
copos para isso taças para aquilo
ordenação dos garfos os ismos
fico tolo tolo ouviram?
domingo é para mansos para
a alma a outra a semi-igual
a que nos encontra sempre
fugindo da foto pelos fundos
do quintal
IMARGEM
de todos os poemas
apenas um
não me foi possível
enquanto as horas
desfiavam
seu limo
nos quartos
mil silêncios
teimavam
em círculos
ali
à espreita de saltos
que cortassem o escuro
como se
de outros ossos
fossem caiados
os muros
IGREJA DO PILAR
guardas defloram mocinhas
santos barrocos sem ofício
no tédio
os morcegos que espiam
OUTURVO / IV
ergo-me
dos restos
que convergem
no final do idílio
sorvo
de teus olhos
a fratura
essa cópula inconclusa em teus
pentelhos
estátua de teu corpo
em demanda
de outro porto
QUARADOURO
São Paulo: Nankin; Juiz Fora: FUNALFA, 2007
(Seleção de poemas)
Iacyr extrai novos sentidos das palavras gastas, na urdidura de sua arquitextura. Ilumina discursos obscuros: ossos e cal refulgem. É um poeta de difícil abordagem mas logo se faz fluído , leve, vivaz.
Antonio Miranda
PRESENÇA
Todas as noites nesta espera.
Tudo excessivo, sufocante.
O céu, até mesmo o céu
em demasia.
Súbito
estamos sós
diante da casa.
Os viventes perderam-se: insídia,
asco? Um ramo de flores
fustiga o instante.
Ah,
a velha falta de ar, os retratos
irrefutáveis, o ruir
de datas não sentidas
e a vaga lembrança de um pomar.
Na sala,
a presença terrível. Os tumbeiros.
Um mar de ocasos
nos devora (eis que devemos
enfrentá-la, essa presença).
Ainda que pudéssemos implorar
nova permuta
- as reses imaginárias, alqueires
de sombra ou lírio –
nossa herdade não se afastaria:
passado o périplo, resistiríamos,
com o tronco
já tombando das coxias.
FOSSE A HORA DISSOLUTA
Fosse a hora dissoluta,
a ferrugem nos vidros,
o escuro fluir
de monotonais castigos,
tudo começando alhures, numa frase.
Antes não a soubesse.
Agora toma-me o quarto:
a noite
busca a forma de seu corpo.
Um rubor
de a evidência de tudo
e o conhecimento de tudo
sem palavra ou mapa.
Dos bolsos brota
a contemplação desses ocasos,
o furto que um dia corrompeu-me
para a negação de todos os dias,
até que a terra, o ar,
os apelos súbitos de um domingo
me convoquem.
ESTUÁRIO
as águas empurraram nossos antepassados
para a encosta
ficamos deserdados
nos bolsos
ainda é possível guardar
chuvas distantes
e o mesmo desamparo
que defuma nossos cargos:
tão entregue
à tirania
do que jamais
findaria
SÍSIFO NO ESPELHO 17
difícil demover o dia
em que mortos me trabalharam
o mar
tem a voz da fazenda
mas entre o muro e os autos
é impossível ouvi-lo
há muito içaram meu corpo
de cada versículo
da escritura
estou só entre os mortos deste dia
com minha ausência invento
o algoz que se afigura
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NO QUARTO
além dessas paredes
se exaure o mundo
o tempo é somente
o que se vê no quarto
lá fora
uma vertigem
que se apaga sempre
onde a vista alcança
nesta noite (a mesma
do nascimento de tudo)
só nosso quarto existe
ao longe sopra um rio
com milhares de anos de espera
em cada margem
com milhares de mortos
e cães que choram
à porta das cidades
e perguntas que
ficaram nas valises
nesta noite
há somente
o que se vê no quarto
algo que
de tão pequeno
em nós
também se exaure.
FELICIDADE
A Júlio Polidoro
por toda a vida
procurei essa palavra
e a fortuna
me faltava
por toda a vida
sem bússola ou mapa
procurei somente
essa palavra
que agora me escapa
LUGAR
Nunca tivemos lugar neste mundo.
Ontem amávamos tanto
o que agora esquecemos.
Amanhã venderemos a qualquer preço
o que hoje nos faz
mudar de endereço.
Por isso invejamos aquela árvore:
porque soube
qual era o lugar, porque nele soube
deixar raízes
e em silêncio
levitar.
QUADRILÁTERO
A Fani Bracher
Antes era a montanha, o vale
sem divisa ou arresto.
Os colchões verdes da flora.
Agora deram de desmontar
a paisagem, cavar a ossatura dos montes.
Aos passantes o grosso intestino,
as tripas e fezes da terra.
Os urubus presidem a mesa.
Nossa fome tem a mesma cor
ferruginosa. Igual e insuportável
hálito.
Mas o minério compensa esse crime.
Oremos em demanda de seus ouros.
Antes era a montanha,
agora uma planície
quase mar.
Planície de mar-cemitério
com suas campas de lama,
alagadiços surreais, crematórios,
molossos, lodaçais fúnebres.
Enfim podemos erigir
um planeta há muito desabitado.
Deixemos esses motores
mais cem anos, façamos
maior o estrago.
Ó meus irmãos, meus dessemelhantes
na carne e no espírito, eu vos convoco,
com paixão, com dolorosa paixão, oremos.
HERANÇA?
Porque este é o milênio
que me coube,
aceito o sacrifício.
A minha cota
se esgota,
sem virtude
ou vício.
Mas tenho iguarias, provisões.
E discursos prontos
para o improviso.
Brindes, broches, artifícios.
Todas as ferramentas
do ofício.
UM ESTRANHO SE APRESENTA
Não posso me reconhecer
nos documentos que me deram.
Sinto muito,
mas essa fotografia não é minha,
assim como não são esses
os meus pais.
Há muito me perdi, desencontrei-me.
Sequer conheço
a mão que me escreve agora
ou a cidade que me arrasta
para uma data qualquer
nessa certidão de nascimento.
Não tenho esposa.
Não tive filhos.
Jamais poderei dizer
diante de qualquer juizo
o meu verdadeiro nome.
Meu passado não me sabe
ainda.
A meu lado, sem palavra,
urge um ouro derruído.
COMO SE MÁSCARA HOUVESSE
Não tem sentido
me lançar assim
sobre teu corpo,
sabendo em ti
a cada vez
os cômodos todos.
Todos os cômodos
do teu corpo.
Como se máscara houvesse,
e tão funda,
por sob o rosto.
Não tem sentido
buscar sentido
onde apenas corpo:
matéria
sem linguagem, céu
cavado no osso,
harmonia que ouço
a leste de mim,
em desacordo.
Fruta que só me entrega
seu sabor
quando me mordo.
Assim é o mundo
que leio, a partir
de teu corpo.
NIETZSCHE E O VATICÍNIO
Não o matei, pois outros o fizeram antes
de mim, mas era como se o tivesse feito.
Agora, que relembro outonos tão distantes,
a cada estação encontro um novo defeito.
Seu túmulo foi de cama a camafeu.
A solidão nos fez perder nosso cavalo.
Mortos também ficamos, quando ele morreu.
Por isso me coube o dever de recriá-lo.
Extraído de A SOLEIRA E O SÉCULO. São Paulo: Nankin Editorial; Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA), 2002. 309 P. (Coleção Janela do Caos poesia brasileira)
FREITAS, Iacyr Anderson. Estação das clínicas. São Paulo: Escrituras Editora, 2016. 80p. 16x23 cm. capa dura. Apresentação de Luiz Ruffato. Edição financiada pela FUNALFA – Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage, da Prefeitura de Juiz de Fora, MG. ISBN 978-85-7531-720-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
SAÍDA DE EMERGÊNCIA
A Fernando Fagundes
vida, vida, vida
a mesma, agora
na memória,
em edição coligida
que tudo muda:
a dor extinta
já não punge,
outro o papel, outra a tinta,
outra a cor e a lombada
desse livro
que da sombra surge
e no alvor
desaba
— lá se vai
o rio, a rua, a casa,
a promessa não cumprida
posta de bruços
na saída
de emergência
com o título
à deriva
(letra imensa
em magenta:
vida)
REGISTRO
um homem amou este fim de tarde
— e disso não ficará registro
nem da fornalha de março
queimando-se em espiga
no terceiro dia de abril
(da luz de março
em pleno abril)
um homem amou
este fim de tarde
sem esperanças
deitado em seu quarto
ouvindo crescer o caule das pitangueiras
a arcada crispada de raízes
os tubérculos últimos
ali onde a brisa nas folhas
pede abrigo
onde a tarde grita
que toda brisa
deriva
do paraíso.
A TÍTULO PRECÁRIO
toda a certeza de agora
é somente um depósito
do instante
a título precário
— outras brilharão
doravante
como relíquias
no antiquário
FREITAS, Iacyr Anderson. Os campos calcinados. São Paulo: Faria e Silva Editora, 2022 226 p. ISBN 978-65-81275-25-9
Ex. bib. Antonio Miranda
O QUE É TEMPO
somente
este eterno presente
que ninguém
no fundo sente
e tem formas mil
que ninguém viu
ou sentiu
somente este presente
que mal nasce já morreu
e cuja morte
é menos luz
que breu
MUDAR TUDO
há sempre os que não mudariam nada
se tivessem apenas uma chance
repetiriam cada lance
do xadrez
e fariam tudo igual outra vez
eu
por mim
mudaria tudo
empregos livros amores cidades desejos diplomas
e vejam bem
até meu longo estudo
no fim
se ainda tivesse outra chance
(no mesmo tabuleir
velho e desnudo)
sim
de novo e sempre eu mudaria tudo
TODOS ERRAM
uma minoria esmagadora
(um por cento)
encontra em tudo
(na sina
na sina deste mundo)
um cálculo uma conta uma cifra
clandestina
o restante (noves fora)
ora
ou chora
O FARDO FUTURO
são altos
os muros
dias antes te passaram tudo
avisaram: serão altos muito mais altos
os muros
agora no entanto refutas
o fardo futuro
teu verbo vergasta
o que resta do vinho
a juros
diante das murmurações
o dia se torna mais duro
e ficam mais altos muito mais altos os muros
SUMA TELEOLÓGICA
a fila pode ser dividida
entre os que obterão progressão de regime
e os que jamais serão atendidos
em vida
esqueçamos o segundo grupo que dizer
a maioria
a progressão de regime
inclui mudar de fila a cada dia
as novas filas são divididas
entre os que morrerão antes
e os que jamais serão atendidos
em vida
*
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Página ampliada e republicada em setembro de 2022
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