Perfil Humano e PoÉtico
de
Fernando Mendes Vianna
Anderson Braga Horta
Texto apresentado durante a sessão de TRIBUTO AO POETA FERNANDO MENDES VIANNA, que inaugurou o auditório da BIBLIOTECA NACIONAL DE BRASÍLIA, em ato público no dia 5 de abril de 2007.
O poeta e escritor Anderson Braga Horta lendo o presente texto.
Diz Fernando Mendes Vianna, fechando um dos mais fortes poemas de A Chave e a Pedra, o “Políptico do Morto”, que “a morte é uma festa solitária”. Mas Fernando, vivo, era uma festa efusiva para os amigos, para quem o visse e ouvisse dizendo versos seus ou alheios. Seu carisma de orador e declamador cativava os ouvintes. Tinha a volúpia da palavra. Difícil era contê-lo em limitações de tempo: ele as desbordava quase sempre, sem que o auditório desse mostras de cansaço ou impaciência. Encantava as pessoas. Era um autêntico poeta, culto, refinado, que, outro Midas, transformava tudo o que tocava no ouro da poesia.
Luiz Fernando de Sá Mendes Vianna, carioca, nascido em 1933, ao deixar o Rio de Janeiro pelo Planalto Central, em 1961, era já um considerável poeta. Em Brasília construiu a maior parte de sua existência. Nesta cidade faleceu em 10 de setembro de 2006. Teve morte que gostaríamos de merecer, como dádiva divina. Naquela manhã de domingo, levantou-se cedo, como sempre; fez o café e, como de hábito, sentou-se à mesa para escrever. Foi encontrado pela família, pouco depois, no chão, com a caneta, papéis e um poema esboçado.
Estava livre, afinal, podendo, como jamais, dizer os versos emblemáticos da “Ode do Liberto”:
Às margens de um rio que não existe,
invento as águas da existência
e bebo.
Era, de certo modo, um solitário, da solidão em que se embebem os grandes poetas. Mas não se isolava. Membro da Associação Nacional de Escritores, da Academia Brasiliense de Letras e da Academia de Letras do Brasil, ex-presidente do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal, que ajudou a fundar, grande divulgador de poesia alheia, declamador singularmente bem-dotado, o autor de Proclamação do Barro assume integralmente a condição humana e engaja-se na luta superior pela emancipação e ascensão da espécie, em todos os planos. Em 1968, em plena ditadura, foi dos primeiros signatários de manifesto dos intelectuais do Distrito Federal em "repúdio aos atos de brutalidade praticados contra a mocidade estudantil", motivado por violenta invasão do campus da Universidade de Brasília. Em 1970, liderou movimento de adesão ao protesto iniciado por Alceu Amoroso Lima contra o estabelecimento da censura prévia a livros e periódicos. Ao lado de Vladimir Diniz, atuou em processo de inspiração autoritária movido contra Nicolas Behr, emitindo parecer em que se fundamentou a sentença absolutória do jovem poeta brasiliense, proferida pelo juiz Petrúcio Ferreira da Silva. Em 1973, nucleou-se em torno dele a "quixotesca" FAC – Festa de Arte e Cultura, movimento "ecumênico, seguindo as linhas de uma democracia utópica", adjetivo aquele e expressões estas do próprio Poeta, que rememorou seu nascimento e prematura morte em testemunhos a Danilo Gomes –Escritores Brasileiros ao Vivo– e a Maria de Souza Duarte – A Educação pela Arte (o Caso Brasília).O movimento, abortado embora (talvez por culpa de seu gigantismo), teve sobretudo o mérito de, ainda no período da repressão, reunir publicamente centenas de intelectuais e artistas, aglutinados em volta de coordenadorias autônomas, tantas quantos os setores culturais envolvidos – poesia, teatro, música, dança, artes plásticas, cinema...
Para falar do relacionamento do Poeta com a cidade que adotou, passo a palavra a Joanyr de Oliveira, que lhe incluiu a "Crônica Elegíaca de Brasília" na antologia Brasília na Poesia Brasileira. Como ninguém –diz o autor de O Grito Submerso– soube Mendes Vianna “retratar a metamorfose por que passou a bugra adolescente, quase menina, que ele conheceu, a construir-se na aridez do cerrado .... fotografou, assim, não a cidade translúcida e definitiva, mas o seu delinear abrupto e incontido e em voz plangente eternizou em versos belíssimos a inocência e a humildade que jamais voltarão”.
Ordem na Indisciplina
A poesia de Mendes Vianna nasceu sob o signo da liberdade e sob esse mesmo signo floriu e frutificou. Explosão libertária que é, junge-se ao império do sangue; mas nem por isso deixa de ser uma poesia altamente intelectualizada, em sua expressão, e uma poesia de pensamento, em seu conteúdo. Essa mente e esse coração libertários agem pelos braços de uma rebeldia radical e de uma constante autoprocura, que implicam o paradoxo de uma disciplina dentro da indisciplina. Poesia de instrumentação forte e voz veementemente humana, transfunde-se no corpo verbal adequado a seu profundamente atual –porque eterno– pensar-e-sentir os problemas do homem, na condição de ser único e na de célula social, mas recusa-se a quaisquer semostrações pseudovanguardistas.
A consciência, ou, melhor dizendo, a assunção dessa complexa máscara, que é ele mesmo, leva-o, desde o primeiro livro, a discernir no poeta um ser prometéico, luciferino: um demiurgo, sim, mas um rebelado, orgulhoso em sua titânica solidão.
Em 1958, um dos nossos maiores descortinadores de vocações literárias, também ele notável escritor, o poeta Augusto Frederico Schmidt, na época associado ao editor Simões, apadrinhava o lançamento nas correntes da publicidade de uma poesia destinada a formar entre as cumeadas de sua geração. O livro era Marinheiro no Tempo e Construção no Caos. Domingos Carvalho da Silva saudaria o estreante como um esbanjador de "qualidades que faltam a muita gente veterana", vaticinando "mais altos vôos" ao seu "espírito inquieto e insatisfeito". Palavras igualmente encomiásticas profeririam críticos do porte de Antonio Olinto, Eduardo Portella, Oswaldino Marques, Sérgio Milliet e tantos outros que o colocariam, no início da década de setenta –lembra-o Tristão de Ataíde– "como representante máximo da geração dos novíssimos". José Guilherme Merquior lhe dará por mais notável característica o "ser, dos realmente dotados, quem melhor preenchia a condição de poeta-pensador", com uma poesia filosófica, cujo verso "sempre dizia do Ser". Tristão de Ataíde o chamará de "mestre", "típico do que a nossa poesia neomodernista tem de mais alto".
Naquele dúplice livrinho, exibe o Poeta um lirismo de acento metafísico na exploração de temas como o mar e o tempo (muitas vezes entrelaçados, ou confundidos, qual no título); a poesia, o poeta; o destino, a vida, a morte; o amor, a solidão. Aliado a isso, o verso livre, sem preocupações de contenção, sensivelmente mais voltado ao que-dizer do que ao como-dizer, parece reforçar a sugestão de afinidade da dedicatória – a Augusto Frederico Schmidt, e a Murilo Mendes.
Nota-se-lhe melhor domínio do verso sem medida. Não obstante, o poema ritmado –ainda que polimétrico– como tantos dos que contribuirão para a fortuna do livro seguinte tem já exemplos, de que é paradigma "O Rubro", característico.
Em Marinheiro no Tempo e Construção no Caos, vaga o poeta ainda meio perdido no vasto mar da própria poesia, poesia-mar que ele vai construindo no ou do próprio caos. Já um grande talento revelado, se bem à obra faltando ainda a maturação formal que apresentará o segundo livro. Perdido, sim, de certo modo, porém não desnorteado. A bússola, ele a empunha no poema "O Destino", e o norte, ele mesmo o estipula:
fazer da vida um longo invento.
A Chave do Talento
Se não se pode restringir o valor do livro de estréia a mera promessa, generosa embora; se estão nele presentes os germens de uma das mais fortes poesias de nossa época, a verdade é que só a partir de A Chave e a Pedra, surgido em 1960, vem a mostrar-se o Poeta no pleno domínio instrumental. Adquirem maior contenção e poder de contágio os poemas breves, as impressões. Apura-se o ritmo, sem que tal signifique submissão ao isometrismo. O conjunto ganha homogeneidade em mais alto nível de realização formal. Acentua-se a busca de si mesmo –o núcleo submarino de "O Poeta"– e do mais alto – o sol entressonhado de "Navio Cego".
A Chave e a Pedra foi saudado por Oswaldino Marques como um dos maiores acontecimentos da safra poética brasileira do lustro, ao lado de A Viagem Humana, de Manoel Caetano Bandeira de Mello, e de O Poder da Palavra, de Foed Castro Chamma. Fernando abre de par em par uma porta importante, para dentro, seja como personalidade poética, seja como pessoa, tão-só. Misticismo mais apurado, mais madura forma. O Poeta, como tal, dá acabamento ao seu projeto estético. Os poemas de menor extensão atingem o equilíbrio perfeito, havendo entre eles verdadeiras jóias coruscantes de beleza, a beleza leve e profunda, grave porém capaz de vôo, voante mas dolorosamente humana, emblematizada n’“O Hipogrifo”:
Este é o animal de minha sina,
mais que Pégaso minha montaria:
cascos de vento, garras de agonia,
simbólico-mitológico ser que devora e recria o poeta em sua dupla constituição de bicho da terra e anjo-demônio de todas as esferas.
É a fase metafísica do Poeta, ou sua culminação, quando ele "se coloca" –diz Tristão de Ataíde– "em face do mundo como pedra à procura de uma chave, isto é, de uma solução para o mistério". É a fase dos poemas curtíssimos, incisivos, perfeitos, como este "Rio":
O Tempo, esse rumor de água corrente.
Um instante em nós; depois, eternamente.
Por outro lado, os poemas maiores, como “Políptico do Morto” e “Exílio do Touro”, antemostram a explosão que viria, com a passagem da brevidade emblemática da Chave à torrencialidade da Proclamação do Barro.
Mendes Vianna transita, com esse livro de 1964, do pensamento metafísico para o social, consoante as palavras introdutórias de José Guilherme Merquior. "Sua linha mestra" –palavras do crítico– "é uma poética do corpo; um canto em louvor do nosso ser corporal, e em favor da libertação do corpo", cujas implicações sociais lhe parecem solarmente claras: "Tanto em suas origens quanto em sua finalidade, a poética do corporal fere motivos sociais" e visa, em última análise, "à liberdade humana, em todos os campos e em todas as dimensões". Nem se esquece o ensaísta de frisar que Fernando "não cai na facilidade de 'trocar' seus cuidados metafísicos pelo interesse estreitamente político: antes os transforma, antes os amplia, erguendo-os à altura de problemas plenamente antropológicos – problemas do homem total".
Para Tristão de Ataíde, a poesia de Mendes Vianna passa, com a Proclamação, a uma segunda etapa, em que "deixa de ser esotérica [com s] para ser exotérica [com x]": "O poeta se abre e empunha a palavra, não como uma chave mas como uma cunha"... Entende ele que "a 'proclamação do barro', longe de ser uma apologia da natureza e da matéria-prima do universo, reveladora da unidade de sua criação, era a verificação patética do multiverso, do caos como essência da vida".
Livro importante, para a carreira do Poeta e para as nossas letras, Proclamação do Barro foi como uma irrupção de sangue num tecido que se esclerosava, comprometido por modismos tão preocupados com equívocas e rebarbativas inovações formais que se esqueciam de dizer o Homem a se lhes esconder por detrás. Ou o soletravam numa desaprendida língua.
Romântico e Barroco
À dicção romântica predominante na Proclamação sucede o barroquismo de O Silfo-Hipogrifo (1972), em cujas asas ascende o Poeta a um espiritualismo renovado, vivido, vivenciado, sofrido. Prosseguirá essa linha Embarcado em Seco. Em ambos esses livros, veria outro ilustre bardo, Moacyr Félix, ressaltar "o coração de um poeta aprisionado: prisioneiro que sabe agora só dentro de si os uivos da liberdade". O Silfo-Hipogrifo culmina a terceira fase, cujo início Tristão de Ataíde coloca em 1969, com a publicação do "Salmo para Órgão e Orquestra", poema em que, para ele, se manifesta em todo o esplendor “o formidável poder verbal do poeta”.
Adquire então, diz o crítico ilustre, a poesia de Fernando Mendes Vianna "uma dimensão transcendental e mística, que a eleva ao nível de seus grandes predecessores" (Murilo Mendes e Jorge de Lima). Um misticismo –sublinhe-se– que não repele a realidade do corpo e suas exigências (a propósito da relação corpo-alma, leia-se e releia-se a belíssima "Canção do Coração").
Em contraponto à Proclamação, o Silfo compõe-se de poemas em geral metrificados, entre eles muitos sonetos.
Fala Tristão de Ataíde em "formidável poder verbal". Diria até que, detentor de tão extraordinário vigor, arrisca-se o Poeta, por vezes, a fazer dessa força a sua fraqueza. Mesmo, porém, quando se entrega ao excessivo, como que desejando comprimir num poema toda a extensão desse poder, salva-o da queda a asa de seu Pégaso.
Em O Silfo-Hipogrifo esse poder ressurge armado de impressionante parafernália. O primeiro poema, "A Crise", sozinho, quase esgota o arsenal de recursos: a aliteração, a rima interna, o jogo de cognatos, a criação vocabular, a pausa métrica, etc.
É de 1979 Embarcado em Seco. Onipresente, o Mar. Mar que é o tempo e a eternidade, vida-morte, Pai-Mãe, o Cosmo, abismo, mistério, a integralidade do ser – em comunhão com o Universo visível e invisível. Tônicas: a autoprocura, o desentendimento com o mundo.
Almeida Fischer, na grande obra crítica que é a série O Áspero Ofício, destacando os poemas longos de Embarcado em Seco, nomeadamente as "Odes Talassocráticas", registra-lhes, além da "fluência extraordinária", do "ritmo .... largo e correto", a "linguagem bastante trabalhada .... viril, poderosa como o mar", esse mar a que seria "um cântico nostálgico" o livro quase todo.
No ano seguinte ao de Embarcado em Seco, Fernando Mendes Vianna publicaria, em Poesia Viva 2, sob o título O Órfão Explosivo, poemas dos livros anteriores de mistura com inéditos, dentre os quais nomeio "Oratório do Corpo". A propósito desses poemas caberá, melhor talvez que de referência aos anteriores, dizer da coexistência de dois aspectos em certo modo opostos do Poeta: a direiteza romântico-realista, que pode bem ilustrar a leitura de "Pastoral" e de "Oratório do Corpo", e a barroca luxúria, sinuosa e pletórica, patente em "Epitalâmio" – para ficarmos na temática amorosa.
Parte importante de sua fábrica poética é o trabalho de tradutor, iniciado com o opúsculo Poemas do Antigo Egito, em 1965. Trinta e quatro anos depois, inauguraria nova fase na tradução de poesia, com os 110 Sonetos de Amor e de Morte de Francisco de Quevedo. Pouco mais tarde, lançaríamos, com José Jeronymo Rivera, em parceria de que me orgulho, as edições bilíngües de Poetas do Século de Ouro Espanhol (Embaixada da Espanha, 2000), Victor Hugo – Dois Séculos de Poesia (Thesaurus, 2002), O Sátiro e Outros Poemas (Galo Branco, Rio, 2002), e –saída pouco depois de sua morte– a Antologia Poética Ibero-Americana.
O Símbolo da Rosa
Fernando conhece tudo de seu mister. Sabe o que fazer com as idéias –que entram na circulação sangüínea do poema sem o transformar em panfleto–, segura nas mãos as rédeas da metáfora (e nele a metáfora mostra, não raro, um vigor quase selvagem), permite-se jogar, sem se perder nos desvãos do acaso, um jogo luxuriante e luxurioso com a palavra. Ele brinca amorosamente com as palavras. Não se trata de um brincar vão, ou infantil, senão de um lúdico tratar de ânsias e essências, de idílios e de dramas, de pensamento e sensualidade, e o resultado desse jogo é sempre um artefato poético de profunda e faiscante beleza.
A rosa, símbolo poético e místico universal, é presença notória nesta poesia. A essa dupla função simbólica Fernando acrescenta, com grande sabedoria expressiva, as próprias circunstâncias. Retomando-o no livro derradeiro, desde o título, mas particularmente no soneto de abertura, “Arte Poética”, ele nos mostra a identidade fundamental entre a aorta-ninho de si mesmo e A Rosa Anfractuosa de sua arte, entre a pétrea rosa do espírito que luta por abrir-se ao sol do cimo e a chaga jucunda e amorosa do viver, dualismo pedra-flor, ária-garra, condor-canário, anjo-animal, que realiza a luminosa síntese no cristal do poema – se me é concedido jogar livremente com as metáforas poderosas do Poeta.
Tal é, em síntese, o seu perfil humano e poético, registrados, e superficialmente comentados, os aspectos que desejei sublinhar na obra deste "grande e difícil poeta", como o qualifica Tristão de Ataíde. Mero depoimento de quem habituado ao mergulho nesse mar, ao impacto sempre novo dessa importante, densa, humaníssima e bela poesia: bela no vôo, bela na tentativa de conquista do Alto e ainda –tragicamente– bela na frustração de pertencer à terra.
Fernando Mendes Vianna é um dos mais legítimos temperamentos poéticos e uma das mais refinadas vozes de nossa geração. Forma, com destaque, entre os que, neste tempo chão, testemunham a altitude e a permanência da Poesia.
João Carlos Taveira, Angélica Torres, Antonio Miranda e José Jeronymo Rivera durante a leitura dos poemas de Fernando Mendes Vianna.Fotos de Robson Corrêa de Araújo. |