OSVALDO PICARDO
Professor de literatura na Universidade Nacional de Mar del Plata, onde nasceu (1955) e reside. Editor da revista La Pecera e diretor da Eudem Editora, é poeta, crítico, ensaísta e tradutor. Entre suas obras, destacam-se: Apenas en el mundo (1988), Dejar sin ventanas la verdad (1993), Quis, quid, ubi – Poemas de Quintiliano (1997) e Una complicidad que sobrevive (2001). Organizou a coletânea Primer mapa de poesia argentina (2000) e traduziu em parceria com F. Scelzo e E. Moore The love poemas, de James Laughin (2001).
POEMAS EM PORTUGUÊS,
traduções de Ronaldo Cagiano
UM LIVRO NA ÁGUA
A lentidão não deixa de ser um movimento,
um estar aqui e ali, embora ninguém veja
senão por meio da leveza de uma imagem
na água. Aprendeste com as margens de um rio.
Aí, como num haikai, a flor, a folha amarela
e a nuvem negra adquiriram suas cores:
toda a irrealidade que admiramos.
Finalmente, soubeste que é um reflexo o que,
depois de muita discussão, nos fez concordar
sobre a velha questão de saber que coisa é Deus.
Importa quem teve razão? Foram quatro letras
capazes de dizer seu nome? Pode essa palavra traduzir
aquilo que ignora e que a precede?
Este é um livro perdido nas águas,
na corrente que o leva...
Suas páginas se apagam levando,
também, o lento segredo que guardam.
PÁSSAROS MORTOS
Um inimigo oculto os espreitou.
Mais que o céu feito de tobogãs
e andaimes invisíveis: eis os altos edifícios,
durante a noite das migrações.
Com a manhã, apareceu o espetáculo,
na calçada diante do zelador e sua vassoura.
Poderiam ser milhares ou centenas ou dez:
pirirí ou urraca, espinero ou joão-de-barro,
bem-te-vi ou bichofeo, churrinche ou brasa de fuego...
A arbitrariedade de uns nomes não consegue
dissimular todo o canto das coisas.
Sonham com outra idade. Outro reino, dizem.
O certo é que foram pássaros e também
cipós soltos das árvores.
Embaixo do edifício, agora,
suas sílabas estão caladas, submetidas
ao selvagem sussurro da vassoura.
LESMAS E HAIKAIS
Viscosas e extremamente famintas
de uma folha, ou apenas
uma goma resistente sob o sapato,
elas, sem saber, aparecem
de algum lugar,
na lentidão de outro tempo.
Muito quietas
para o baile, muito úmidas
para a alegria, empurram cegas
o peso de uma montanha perdida
e a modesta leveza conquistada...
Há um poema do velho Jôsô,
o discípulo do grande Bashô,
em que se compara a uma delas:
assim a casa em espiral sobre suas costas
abandona, um dia, junto com sua riqueza.
Troca tudo em razão da intempérie
e da lúcida trilha que nunca seca.
OUTRA VEZ UM BEIJA-FLOR
Imperceptível aos olhos, dizem que o nêutron
não fica parado e, mesmo sem ser visto,
está em todas as partes, desintegrando-se
em um universo de leis e conjeturas.
Se pudesses imaginá-lo, nada
seria mais conclusivo que um beija-flor
como o desta última manhã de verão:
lá e cá estava sugando
das flores tardias e até
do reflexo minúsculo da gota
no tanque.
Persegues uma imagem e
é apenas um fantasma que permanece na água.
VARIAÇÕES SOBRE UMA BIOGRAFIA DE ONETTI
I
Onetti percorre Memphis.
Disseram que aí estava a tumba de Faulkner,
mas era em outra cidade também chamada Memphis.
Disseram-te ou leste
que voavam demônios sobre uma cruz branca
em um campo verde e que havia outros nomes
como em Spoon River.
Leste ou te disseram que estava morto
mas você constatou – ninguém te contou – não havia tumba.
Um artista é uma criatura impulsionada por demônios.
Leste e na leitura solitária – como outra coisa –
misturado a um nome egípcio e a um estranho
caminhaste equivocado em uma manhã
procurando outro desaparecido.
II
(a vida imita a literatura)
Onetti nos destroça
“...nos faz chorar, nos entristece”
ela, com sua boca de cereja, diz na Universidade de Bekerley.
Às vezes o assunto tem a beleza de uma estátua grega,
tem essa emoção que adoça
como um beijo de bolero
e tem essa mentira
que não é, senão, um recurso desesperado
com que se pode tolerar o amargo mais profundo.
Às vezes, e então, algo por dentro, como um demônio
toma as mãos que antes acariciava
e rasga e estupra e assassina.
E diz:
“é assim a literatura”.
Página publicada em abril de 2012
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