EVARISTO CARRIEGO
Claudio Cruz e Liliana Reales emprenderam a tradução de alguns dos mais notáveis poemas de Evaristo Carriego, poeta praticamente desconhecido no Brasil. Explicam:
"Falar de Evaristo Carriego hoje nos faz pensar imediatamente em Borges. Mas aquele que ficou conhecido como o "cantor do subúrbio portenho" é mais do que
um "precursor" do grande escritor argentino, o que já não seria pouco. Mas se é verdade que a maior parte do reconhecimento de Carriego hoje se deve, em especial fora da Argentina, única e exclusivamente a um livro que Borges
escreveu sobre ele em 1930, também é certo que sua obra, merece ser vista e analisada em si mesma; como uma das mais representativas e pioneiras expressões do que teorias mais recentes chamam de "culturas subalternas".
Carriego nasceu na Província de Entre Rios, em 1883 e morreu em Buenos Aires em 1912, aos 29 anos mas foi o poeta do "arrabal", da zona pobre da capital platina, que cantou a vida simples do subúrbio, sua pobreza e sua malícia. Os que já visitaram Buenos Aires pensou tratar-se de La Boca ou de San Telmo. Trata-se de Palermo que, no final do século, era uma zona "do punhal e da guitarra". Jorge Luis Borges o teria celebrizado, dedicando-lhe uma obra em 1930. Carriego foi amigo do pai de Borges.
Os tradutores nos informam que Evaristo Carriego publicou uma única obra poética em vida:"Misas herejes", em 1908. Postumamente, saiu "La canción del barrio" y Obra completa (organizada por Marcela Ceruzzi, publicada em 1999 pela editora Coregidor, com pouco mais de 200 páginas.
Para a edição brasileira, foram selecionados 11 poemas dentre os que a crítica considera preserváveis, pois boa parte de seus textos estariam contaminados pelo maneirismo da época, fora do estilo fluído e natural que é típica da melhor obra carrieguiana. A seguir, um exemplo
De
Evaristo Carreigo
POESIA HEREGE
Organização e tradução
Cláudio Cruz e Liliana Reales
Florianópolis: Editora UFSC, 2010.
70 p. ISBN 978-85-328-0496-9
EL AMASIJO
Dejó de castigaria, por fin cansado
de repetir el diario brutal ultraje,
que habrá de contar luego, felicitado
en la rueda insolente dei compadraje.
— Hoy, como ayer, la causa del amasijo
es, acaso, la misma que le obligara
hace poco, a imponerse con un barbijo
que enrojeció un recuerdo sobre la cara —.
Y se alejó escupiendo, rudo, insultante,
los vocablos más torpes del caló hediondo
que como una asquerosa náusea incesante
vomita la cloaca del bajo fondo.
En el cafetín crece la algarabía,
pues se está discutiendo lo sucedido,
y, contestando a todos, alguien porfia
que ese derecho tiene sólo el marido...
Y en tanto que la pobre golpeada intenta
ocultar su sombría vergüenza huraña,
oye, desde su cuarto, que se comenta
como siempre en risueño coro la hazaña.
Y se cura llorando los moretones
— lacras de dolor sobre su cuerpo enclenque... —,
¡ que para eso tiene resignaciones
de animal que agoniza bajo el rebenque!
Mientras escucha sola, desesperada,
cómo gritan las otras... rudas y tercas,
gozando su bochorno de castigada,
¡burlas tan de sus bocas!... ¡burlas tan puercas!..
A SURRA
Deixou de castigá-la, por fim cansado
de repetir a diária bandidagem,
e que logo contará, congratulado,
lá na roda insolente da malandragem.
— Como sempre, o motivo da punição
será, talvez, o mesmo que o levara
há pouco, a impor-se com um bofetão
que lhe deixou lembranças rubras pela cara —.
Depois saiu cuspindo, rude, insultante,
os termos mais torpes de um calão imundo
que como uma asquerosa náusea incessante
vomita a cloaca desse baixo mundo.
No armazém em frente cresce o vozerio,
porque está se discutindo o sucedido,
e, provando a todos, alguém concluiu
que esse direito tem só o marido...
Enquanto que a pobre espancada tenta
ocultar bem fundo sua vergonha íntima,
ouve, lá do seu quarto, que se comenta
a façanha, rindo-se da pobre vítima.
E se cura chorando suas lesões
— rastros da dor sobre seu corpo doente... —,
pois não lhe faltam as resignações
de animal agonizando sob rebenque!
Enquanto escuta, só e desesperada,
como gritam as outras... teimosas e toscas,
gozando sua vergonha de castigada,
deboches vis de suas bocas... tão porcas!...
LA COSTURERITA QUE DIO AQUEL MAL PASO
La costurerita que dio aquel mal paso...
-y lo peor de todo, sin necesidad -
con el sinvergüenza que no la hizo caso
después... - según dicen en la vecindad -
se fue hace dos días. Ya no era posible
fingir por más tiempo. Daba compasión
verla aguantar esa maldad insufrible
de las compañeras, ¡tan sin corazón!
Aunque a nada llevan las conversaciones,
en el barrio corren mil suposiciones
y hasta en algo grave se llega a creer.
¡Qué cara tenía la costurerita,
qué ojos más extraños, esa tardecita
que dejó la casa para no volver!...
A COSTUREIRINHA QUE DEU AQUELE MAU PASSO
A costureirinha que deu aquele mau passo...
- e pior de tudo, sem necessidade
-com o sem-vergonha que não lhe fez caso
depois...- segundo comentam na cidade -
se foi faz dois dias. Não era possível
fingir por mais tempo. Dava compaixão
vê-la penar essa maldade insofrível
de suas companheiras, tão sem coração!
Embora a nada levem tais conversações,
no bairro correm mil suposições,
até em algo grave quer se acreditar.
Que semblante tinha a costureirinha,
que olhos mais estranhos, nessa tardezinha
que deixou a casa para não voltar!...
Página publicada em dezembro de 2010; ampliada em dezembro de2018 |