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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Foto: cerimônia de homenagem no auditório

do UNICEUB.*

 

ANTONIO MIRANDA

POETA

 

Anderson Braga Horta

 

Texto lido durante a homenagem prestada ao poeta no UNICEUB, Brasília, pelo Sindicato dos Escritores do Distrito Federal, dia 9 nov. 2007

 

O maranhense Antonio Lisboa Carvalho de Miranda, antes de se fixar em Brasília, correu mundo, tendo vivido em Buenos Aires, Caracas, Bogotá e Londres. E a verdade é que, entre nós há já muitos anos, continua a correr, numa atividade cultural intensíssima, se bem que, para gáudio e proveito nosso, agora mantendo suas bases nesta cidade. Formado em Bibliotecologia pela Universidad Central de Venezuela, mestre em Biblioteconomia pela Loughborough University of Technology, da Inglaterra, doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, na Universidade de Brasília. Homem dinâmico, tem hoje sobre os ombros ainda outra tarefa, a de primeiro diretor da Biblioteca Nacional de Brasília, com a gigantesca responsabilidade de pô-la em condições de operar, e, afinal, de colocá-la em efetivo funcionamento. Sinal de que se sairá bem do enorme desafio vem de um gesto inicial: antes mesmo de obtido o mínimo de condições operacionais exigível, Miranda pôs a Biblioteca a prestar serviços culturais à Cidade, instituindo um programa de palestras/leituras literárias cujo sucesso vem dando novo impulso à sua vida intelectual.

Não cessam aí os méritos de Antonio Miranda, que por essas atividades já se revelam notáveis. Pois a elas adicionam-se as de criador em diversos gêneros e ramos da arte: como poeta, romancista, contista, dramaturgo e escultor, nada menos!

Desse leque fabuloso nascem obras belíssimas a reclamarem atenção, a distribuírem seus frutos. Não seria possível a uma única pessoa, numa única apresentação, analisar essa múltipla personalidade, nem mesmo percorrer cabalmente uma sequer de suas linhas de manifestação. Dividimo-nos, pois, para tentar passar um vislumbre de seus aspectos principais. Cabe-me hoje, tão-só, passear com os amigos por um dos veios de sua criatividade, mas um dos mais fecundos e comoventes: o veio da poesia.

O poeta estreou na Venezuela, em Caracas, no ano de 1967, com Versos Itinerantes. Amazônia, seguido de Cuerpo que los Días. Em 1969, na mesma cidade, lança De Creencias y Vivencias, poema-livro que se editaria em português, em Brasília, dez anos mais tarde. Mais dois anos e estoura com o grande êxito de Tu País Está Feliz, de que voltaremos a falar. Adiante-se apenas que edição bilíngüe sairia na capital brasileira ao fim de dois decênios, havendo diversas edições em castelhano e em português. De 1973 é Calzoncillos con Nubes o si Prefieren SOS Colombia, saído em Bogotá. 1999 marca o início de uma série de edições pela brasiliense Thesaurus, com Brasil, Brasis, poema em sete cantos, comemorativo dos 500 anos do Descobrimento, objeto de tese de doutorado da escritora chilena Elga Pérez-Laborde (Departamento de Teoria Literária da UnB, 2004). Seguem-se Canto Brasília, de 2002, e Perversos, de 2003, este com tradução castelhana de Elga. Em 2004 surgem nada menos que três obras: São Fernando Beira-Mar, número 1 da série Cantigas de Escárnio e Maldizer, da Thesaurus, já com quatro edições (transposto para o castelhano por Sofía Vivo); 25 Poemas, antologia, pela Editora da Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Campo Grande, Mato Grosso do Sul), mais Retratos & Poesia Reunida, pela Thesaurus. Em seguida, vêm Despertar das Águas (2006) e Eu, Konstantino Kaváfis de Alexandria (2007), estando já “na agulha” a antologia Poesia no Porta-Retrato (seleção e estudo de Elga Pérez-Laborde).

Bem se vê que é uma respeitável bibliografia poética. Se tivéssemos de nos deter em cada um desses livros, só a poesia mirandina bastaria para inundar a sessão desta noite. Assim, tivemos de nos impor severas limitações de tempo.

Para tentar, não obstante essas limitações, dar uma visão panorâmica dessa poesia quero começar pela peça Tu País Está Feliz, estreada em Caracas, como vimos, em 1971. Mas isso não é teatro? – hão de me perguntar. Sim, é teatro, mas o espetáculo é construído sobre poemas do autor. Foi um sucesso estrondoso, a ponto de transformar Miranda em personalidade importante no mundo cultural venezuelano, antes de sequer ser conhecido no Brasil. Os poemas são filosóficos, de auto-indagação, líricos, sociais. Entendo que o sentido geral desse complexo poema dramático é de tom político. Mas prefiro exemplificá-lo com os termos desta canção – “A Quem Possa Interessar”:

 

A quem possa interessar!

 

Antonio, nordestino, estudante universitário,

morando na Asa Norte, Av L 2, Q 406,

apto. 15, lança um grito de socorro.

   

Necessita de companhia, de proteção, de carinho.

 

Deixou sua casa, sua mãe, sua terra, sua biblioteca,

seus amigos mas não quer voltar.

 

A solidão faz-lhe mal, fustiga e chateia.

 

É egoísta, pobre, tem todos os defeitos.

 

Pode ser pra frente hoje e careta amanhã,

liberado agora e preconceituoso em seguida,

sua instabilidade é alucinante.

 

Antonio, nordestino, vivendo na Asa Norte,

precisa de companhia, de proteção, de carinho!

 

Vive num quarto de pensão, satisfeito com sua miséria,

fingindo ser otimista para salvar-se da ruína.

 

Tem alma de viajante cansado

e coleciona cartões-postais.

 

É autoritário, puritano, com idéias de suicida.

 

As pessoas o chateiam, os livros o chateiam, ele mesmo

se chateia.

 

Tem muito que oferecer,

ou nada.

Antonio, nordestino, vivendo na Asa Norte,

precisa de companhia, de proteção, de carinho.

 

Saltemos daí para Brasil, Brasis, que, segundo o autor, obedece à opção de “projetos de livros .... com unidade temática e formal”, em vez de poemas soltos. A obra foi composta às vésperas das comemorações do quinto centenário do Descobrimento do Brasil. São flashes deste país de contrastes, de seus defeitos mas também de suas virtudes, sempre com uma dose de bom-humor e ironia. Num jeito que se aparenta, sem o copiar, ao de Oswald de Andrade. Veja-se esta crítica brincalhona às nossas eternas desculpas para sermos sempre “o país do futuro”, um futuro que vai sendo adiado indefinidamente:

 

Se os deuses quisessem,

se os orixás,

o vatapá,

se não fosse a maleita,

se não fosse a seca,

se não fôssemos nós.

 

E haja futuro!

 

O canto é crítico e brejeiro, brejeiramente crítico, mas não há o sarcasmo ferino e destrutivo. Pelo contrário, há esperança e fé, como podemos ver neste exemplo:

 

Você sabe com quem está falando?!

 

No íntimo, os horizontes incontidos.

Inconsúteis.

Deixa pra lá.

 

O Brasil é uma nota de rodapé.

Terra dos papagaios,

pára-raios, parabólicas,

das multidões distraídas,

sofreguidões.

 

Mas a gente ainda chega lá!

 

Canto Brasília também atende à opção por “projetos de livros”. Homenageia o centenário de nascimento de Juscelino Kubitschek e de Lúcio Costa. Mas tem também poemas em homenagem a Niemeyer, Burle-Marx, Gilberto Freire, Volpi (uma composição à maneira concretista), Varnhagen, os candangos. A transcrição que dele faço é uma sorte de resumo diacrônico da idéia Brasília:

 

Uma Nova Capital como

semente, traço de união,

como sonho colonial

como ideal inconfidente

como bandeira e pregação

desenvolvimentista.

 

Tiradentes, JK.

 

Utopia. Vertigens antecipatórias,

emblemáticas miragens.

Integração nacional.

 

O ano de 2004, repetimos, foi rico para o poeta. Têm essa data 25 Poemas, São Fernando Beira-Mar, Retratos & Poesia Reunida. Os temas sociais marcam presença já no título São Fernando Beira-Mar e na composição inicial de 25 Poemas,“Poesia Enferma” (“passando fome / nem a poesia sobre a fome interessa!”), mas também há lugar para o metafísico, o metapoético, o lúdico. O humor. Desses 25 tomo “Brasília”

 

Brasília é branca e luminosa,

de mármores e vidraças

refletindo nuvens metafísicas

 

Blocos e quadras

e avenidas enfileiradas,

viadutos, memoriais,

geometrias e concretudes

transcendentais.

 

Onde o sol se põe

 –  teatral –

entre as torres do Congresso Nacional.

 

Numa escala de cenógrafo

neoconcretista, construtivista,

lançando manifesto

pela integração das artes:

pela dança das esquadrias,

poesia das colunas avarandadas,

pilotis sobranceiros

sustentando o firmamento do Cruzeiro do Sul.

 

Jardins petrificados,

monumentos vegetais.

 

Pirâmides, tumbas faraônicas

cabalísticas

erguidas

sobre rochas imantadas

a salvo dos dilúvios,

anunciando o Terceiro Milênio.

 

Como evitar o misticismo?

 

Yokaanan refugiou-se na eclética cidade,

Tia Neiva fecundou o vale

no sincretismo das crenças

dos humildes

enobrecidos, capas e véus, vestais

em castas devocionárias.

 

Vivemos entre nordestinos

gaúchos, cariocas, paulistas

e extraterrestres.

 

No terceiro livro de 2004 os retratados são poetas, pensadores, divas do cinema nacional, um rio (o Mearim da infância), cidades... Sem faltar um “Auto-Retrato”, do qual copio umas pinceladas sugestivas:

 

Às vezes sou um, às vezes sou outro ....

 

Fui, ao mesmo tempo, eu e o outro

– um para dentro, outro para os outros ....

 

Vou na contramão da ordem estabelecida ....

 

Sobre Despertar das Águas escrevi alhures: “A forma é livre, a linguagem nada tem de ameno, ao contrário, é às vezes decididamente amarga, na expressão do autor. São versos de memória e autoperquirição.” (O poeta mesmo diz a propósito: é mais autobiográfico do que meus títulos anteriores”.) Mantenho o dito. Apenas acrescentaria que a memória vem vincada pela confissão, e ressalvaria que não se reduz a essas linhas a riqueza do livro. Leio o último terço de “Um Desmemorial”:

 

Na memória convivem

pessoas que tanto amei

numa promíscua proximidade,

independentes de mim,

apaixonando-se, fundindo-se,

abandonando-me de vez.

 

Lembranças de desejos

irrealizados, tão sonhados,

tristes, amores idealizados,

que nunca aconteceram

ou que deixaram de ser,

mares nunca dantes navegados.

 

Eu em vários momentos

com feições tão diferentes,

desconcertantes,

olhando-se pelos prismas dos espelhos,

estranhando-se, acusando-se

numa reflexão permanente.

Os espelhos irrefletidos

nada sabem da existência

de suas imagens jamais;

 

ouvem-se os estilhaços de vidros

e faz-se escuro

e durmo para sempre

 

Destaque-se a bela invenção desses “espelhos irrefletidos”.

 

Para encerrar esta visada brevíssima da poesia de Antonio Miranda, fiquemos com o livro em homenagem ao grande poeta grego, no qual se inspira, sem todavia jamais imitar-lhe o estilo – salienta o nosso autor. Leio, pois, concluindo, o fragmento final de Eu, Konstantinos Kaváfis de Alexandria:

 

Os bárbaros já chegaram

e se instalaram em nossas praças,

assumiram nossos governos

e invadiram nossas consciências,

asfixiaram a liberdade

e cobram uma lealdade impossível.

Entranharam-se em nosso medo,

impuseram-se em nossa impotência

e agora devoram nossas vísceras, sem resistência,

mas as palavras sobreviverão

e haverão de redimir-nos, salvar-nos;

rebrotarão em significados imprevistos

– nem se sabe de onde vêm,

que significados impõem,

mas que vamos recriar e re-significar.

 

Levo séculos corroendo os alicerces

deste mármore impostor

e meu orgulho sobreviverá.

 

Brasília, novembro de 2007.

 

De pé, destacando-se em segundo lugar a Dra. Mireluce Fernandes da Silva, ao final o poeta Antonio Miranda e Emir Suaiden, Presidente do Ibict


 

 

 

 
 
 
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