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O título proposto por mim foi "La Consagrada Familia" em contraposição ao clichê da Sagrada Família". Seria "teatro dentro do teatro", em que a troupe de um circo montava um "auto-sacramental sobre o profano e o divino". O apresentador do circo, o palhaço, a trapezista e o mágico, dentre outros, assumiriam "brechtianamente" os personagens bíblicos, num tom burlesco mas não necessariamente de burla. Num terceiro nível -o primeiro sendo o circo, o segundo o da encenação propriamente dita- vinha um "caldo de cultura": a questão existencial e política dos tempos que vivíamos. O marxismo em decadência mas ainda apregoado pelas esquerdas mais aguerridas, o marcuseanismo da era pós 68 e da guerra do Vietnã, aquelas contradições heróicas e anti-heróicas de um "messianismo revolucionário" diluído. Ou seja: o Jesus Cristo da peça era um jovem de classe média latino-americana debatendo-se entre o ser e o viver, estar revolucionário e ser anarquista, entre ser modelo e ser humano. Por isso "Jesus" vai a Paris, vira modelo de um estúdio de pintura, foge do subdesenvolvimento, prega a Revolução e pratica um certo hedonismo, enquanto é canibalizado pela ideologia preponderante. No texto original de La Fuga - o anticonto que serviu de base para a montagem - eu já havia tentado uma linguagem promíscua e ambígua em que os vários personagens fundem-se e falam ao mesmo tempo, numa frase unificada, técnica que o escritor argentino Manuel Mujica Lainez - o celebrado autor de Bomarzo - reconheceu como sendo inovadora e lograda no texto e que a escritora Helena Sassone havia registrado no tablóide cultural IMAGEN DE VENEZUELA como sendo uma "narrativa de experimento" . No teatro, seria mais explícita a ambigüidade ou transmutação pelo recurso das mudanças de personagens, além da linguagem alternante do texto. Por que "auto-sacramental'? Mais como uma contra-idéia do que propriamente como um formato teatral consagrado pela tradição. Gimémez optou por usar um transformista no papel de Nossa Senhora e o de (São) José coube a um palhaço. Criou-se uma relação um tanto caricatural e de pastelão nas relações entre ambos, como seria natural no circo, levando muita gente a entender como uma perversão ou "minimização" das figuras bíblicas, sobressaindo um certo sentido matriarcal. Pilatos era o dono do circo, o capitalista. Jesus tinha uma noiva, além de sofrer o assédio de Maria Madalena que era a sobrinha do pintor (que era o Pilatos, dono do circo). Confesso que tais personificações só ficaram claras na montagem e advêm sobretudo da fervilhante imaginação de Carlos Gimenez. Nunca pretendi chocar nem escandalizar. A linguagem era elevada, raramente valendo-se de vulgaridades. O texto expressava o maniqueísmo herdado de minha (de)formação religiosa. A cena de Judas ajoelhado diante de um Cristo na cruz, transformado em burocrata contando os dias e transferindo as responsabilidades para um futuro incerto, em que o Judas afirmava estar salvando-o da mediocridade através do sacrifício preconcebido, tornando-o ícone de uma sociedade de consumo (como depois o Che). Mexeu com muita gente. Caracas tinha uma tradição católica arraigada, de ascendência espanhola muito forte e conservadora em sua maioria. A propósito, o crítico Juan Miguel Ganuza, no diário La Religión, de Caracas, desabafa: "A todo tambor está presentando Rajatabla, taller de teatro del Ateneo de Caracas, la farsa pornográfica y blasfema Jesucristo Astronauta. (...) Jesucristo Astronauta me produjo peor impresión. Blasfemia burda y pornografia más burda aún, que resaltaban aún más las cualidades histrionicas de los actores (...) No sé por qué, pero no podia rechazar de mi mente, mientras seguia el espectáculo, el recuerdo del repulsivo museo de los "sindiós" de Leningrado y la bazofia anticlerical de los periodicuchos españoles de los anos treinta. Lo peor de lo peor, propaganda antirreligiosa del peor y más decadente marxismo estaliniano". E vai mais longe em sua invectiva o crítico religioso: "Por razones de buen gusto e higiene mental y moral pasaré por alto la deturpación de la figura de Cristo, representado por un adolescente imbécil y pisoteada constantemente en el transcurso de la farsa, [El texto completo está en el siguiente anexo del presente documento: ] A Igreja ameaçou proibir - e condenou publicamente o espetáculo - mas o espírito laico vigente naquele lapso democrático do início da década de 70 do século passado, conteve as reações mais obtusas. [No entanto, na turnê ao México, foi negado a Rajatabla o Teatro Bellas Artes da capital mexicana, por causa dos "desnudos" de Tu País está Feliz e pelo tom sacrílego e herético de Jesucristo Astronauta, obrigando o grupo a refugiar-se no território autônomo da UNAM.] Reconheço que eu tive mais motivações estéticas do que ideológicas, mais intenções literárias do que (anti)religiosas. Carlos Gimenez preferiu o título "Jesucristo Astronauta", denominação de uma das canções do espetáculo com letra minha e música do Xúlio, por julgá-lo de mais fácil difusão, talvez por causa do sucesso do livro "Eram os deuses astronautas?" naqueles tempos. A crítica - que havia louvado Tu País está Feliz como um "cantata" de aceitação quase unânime, desqualificou Jesucristo Astronauta sem, no entanto, deixar de reconhecer-lhe a força do texto e da montagem. No meu julgamento interior, eu achava que Tu país... tivera a repercussão que efetivamente merecia enquanto considerava Jesucristo... literária e teatralmente superior. Trinta e tantos anos depois da estréia da peça, entendo que uma coisa é a intenção dos autores e outra o entendimento do público e da crítica, que passam a ser donos do espetáculo Tu País está Feliz extrapolara as intenções originais enquanto Jesucristo Astronauta, mercê de preconceitos ou pela falta efetiva de méritos, teve uma temporada excelente, com excursões e aplausos, mas sem as aclamações públicas dos espetáculos anteriores. A vida no teatro é assim mesmo.
Além de um espetáculo infantil, o grande êxito de Rajatabla - para a conquista definitiva do reconhecimento do público venezuelano e para obter o apoio oficial - que levou à criação da Fundação Rajatabla, foi a peça Bolívar, de José Antonio Rial.
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