ENSAIO GERAL DE TU PAÍS ESTÁ FELIZ
- reflexões do autor
Um jornalista telefonou querendo saber de quem tinha sido a idéia de dramatizar poemas, conjugando-os com canções. Talvez tivesse a expectativa de um jogral com poemas em coro ou simplesmente um recital. Respondi: a idéia foi minha.
Desde 1968, eu fazia leituras públicas de meus versos em espanhol, em eventos culturais e políticos, e queria montar com eles um espetáculo. Daí surgiu a proposta de Tu País está Feliz. Decidi montar meu próprio grupo, com leitores das bibliotecas Paul Harris e Nacional, onde eu trabalhava. Quem tomou a iniciativa de procurar Carlos Gimenez foi Gustavo Gutiérrez. Eu não me atreveria: Carlos era o enfant terrible do teatro venezuelano, e estava dirigindo uma peça de Miguel Otero Silva. O diretor argentino, no entanto, foi muito receptivo. Mas, como confessou em texto publicado no programa de estréia do espetáculo, tinha lá suas dúvidas quanto à possibilidade de transformação de um poemário em peça dramática. Deveria seguir as divisões de textos que eu havia recomendado...
Criativo, Carlos foi capaz de engenhar uma posta em cena vigorosa, dinâmica, emblemática, que dava relevo às palavras, dando espaço e forma aos poemas. Como não havia dinheiro para a produção, valeu-se do que estava ali mesmo nos fundos do Ateneo: cubos de madeira, umas tabuletas sem texto, trapos velhos e jornais amontoados. Com eles compôs um cenário pobre para um ação vibrante. Uma soma extremamente positiva de textos, músicas (de Xulio Formoso) e ação teatral, completada com uma iluminação adequada.
Quando não havia experiência teatral de alguns atores “noveles”, instigou uma interpretação efetivamente comprometida com as mensagens, como forma de convencimento.
Dois meses depois, vendo e revendo as funções, senti que faltava ao conjunto um poema que sintetizasse o questionamento do “personagem” — o jovem poeta e seu questionamento do mundo e de seu tempo, e seus condicionamentos. Escrevi então um texto aparentemente “simples”, confessional, mas com uma estrutura complexa, numa linguagem próxima do absurdo e da sátira, mas sem o tom patético em voga por aqueles tempos no teatro...
Preferi a ironia, numa relação direta com o público, falando à platéia. Surgia a cena “Autobiografia tardia”, que Carlos Gimenez imediatamente encenou, com enorme sucesso.
Carlos era inquieto, desassossegado. Como montava e desmontava constantemente o espetáculo, retirando e colocando novos (e mais) atores em cena, para novas funções e viagens pela Venezuela e ao exterior, também foi metendo elementos estranhos à idéia original do espetáculo — que sempre fora pela absoluta economia de elementos, pelo uso mínimo de cenografia e vestuário. Foi introduzindo máscaras, fantasias e até uma coroa... E tudo funcionando bem. Até ao cúmulo da versão de 1984, mais pop, com mais atores, com certa sofisticação nos coros e alguma coreografia, atualizando o vestuário dos jovens que, em algumas cenas, ostentavam camisetas e bonés. Certamente que ganhou em espetacularidade, mas perdeu em agressividade.
A versão 2006, de José Dominguez, tentando “restaurar” a montagem original de 1971 (qual delas?!), acertou ao minimizar os efeitos cenográficos, ao reforçar a atuação, ressaltando o texto sobremaneira, em sua máxima expressividade. Conseguiu um elenco homogêneo*, de excelente padrão técnicos— quase todos selecionados de uma centena de candidatos, que já haviam, sem sua maioria, passarado pelas oficinas de teatro de Rajatabla.
“Pepe” Dominguez eliminou os poemas de “A beata” por julgar que a questão da religiosidade não está mais vigente. Manteve apenas o “Rescate de Cristo” (mais conhecido do público como “Jesucristo estaba loco”), poema que montou de forma extraordinariamente expressiva, em nada semelhante à “original” de Carlos Gimenez. Eliminou também a canção “Cronos”.
É um direito inalienável do diretor montar como entende melhor o texto de um autor. Remontou a partir de anotações deixadas pelo próprio Carlos e seguindo as orientações de atores da montagem primeva como Mariel Jaime Maza, Gustavo Gutiérrez, José Ramón Ortiz e Juan Pagés. Intuitivo, criativo, Pepe fez sua própria versão, a pretexto de ser uma “reposição”. Explicou-me que até havia tentado montar os textos de “A beata” como se fosse uma ladainha, um canto monótomo de igreja mas que não funcionara. Nada que ver com o que fizera Carlos Gimenez, que
apelara para cenas cruéis, de auto-flagelação, coroando com a troca de sonoras bofetadas, que causavam espanto e angústia nos espectadores surpresos com a perversidade da cena.
Não pleiteio a inclusão destes textos “religiosos” pois acho que o espetáculo está de bom tamanho. Salvou-se o “Rescate de Cristo” para conjurar a manipulação de Cristo pelas instituições religiosas que hoje, mais do que nunca, mercantilizam as imagens e rituais que inspiraram o “rescate”.
Refiro-me aos ensaios: expressivos, contundentes, com cenas bem montadas e interpretadas com muita técnica e expressividade, com a certeza de que os jovens vão crescer em suas atuações no confronto com o público.
Agora esperemos o que realmente interessa: a reação do público, e a opinião do público, A julgar pela estréia no dia 28 de setembro, quando os aplausos interromperam várias cenas, é possível antever sucesso à iniciativa de Francisco Alfaro, presidente de Rajatabla, de remontar Tu País está Feliz nas celebrações dos 35 anos do grupo líder do teatro venezuelano. Mas estréia é estréia. Resta a sagração definitiva dos críticos e do fluxo de espectadores às funções programadas. Teatro é sempre imprevisível.
*FICHA TÉCNICA: TU PAÍS ESTÁ FELIZ, original de ANTONIO MIRANDA, música de XULIO FORMOSO e montagem original de CARLOS GIMÉNEZ. Reposição dirigida por JOSÉ DOMINGUEZ. Produção de FRANCISCO ALFARO.
Elenco da versão 2006: Atores: GABRIEL AGÜERO, ELVIS CHAVEINTE, CAROLINA GENTILE, ROSSANDA HERNÁNDEZ, INDIRA JIMÉNEZ, RAFAEL MARRERO, JEAN CARLOS RODRÍGUEZ e JESÚS VIEIRA. Primeira guitarra e voz principal: XULIO FORMOSO. Segunda guitarra: JERRY MANEIRO. Bateria ANGEL SUÁREZ. Iluminação de DAVID BLANCO.
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