POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS
GÉRARD CALANDRE
Gérard André Loison Calandre nasceu em 1952 na Bretanha, França. Viveu em Itália, trabalhando e leccionando na cidade de Messina. De formação científica e amigo da philosophia, tem-se mantido afastado do mundo das Letras. Poeta e autor de artigos críticos e de textos sobre o seu ramo profissional. Visitou Portugal em 1992 e 1997. Após o falecimento de sua mulher foi viver para o Canadá francófono, entregue à sua tarefa própria de "laboreur au four".
Colaborou, entre outras, nas revistas "DiVersos" - dir. José Carlos Marques, "Bicicleta" -orientada por Manuel Almeida e Sousa, "Agulha"(Brasil) - dir. Cláudio Willer & Floriano Martins, "Abril em Maio" de Eduarda Dionísio, "TriploV" de Maria Estela Guedes, etc.
CALANDRE, Gérard. Vestígios. Tradução e prólogo de Nicolau Saião. São Pedro de
Alcântara, SC: Edições Nephelibata, 2012. 62 p. Exemplar n. 07 de uma tiragem
de 50 exemplares. Ex. bibl Antonio Miranda
Obs. Quem desejar adquirir um exemplar do livro, comunicar-se com a editora edicoes.nephelibata@gmail.com
No aspecto formal, diria discursivo, revela-se uma assunção de imagens através das frases que a configuram que, mais do que fotografias ou apontamentos visuais, são como que pequenos flashes ou iluminuras retiradas, corajosa e persistentemente, da vida breve a que o autor esteve ligado e que salvou dum desaparecimento inevitável, inscrito no seio da espécie ou, mesmo, perceptível na memória dos deuses simbólicos. NICOLAU SAIÃO
Traduções de Nicolau Saião
HAIKAIS
1 .Em Agosto, colocas
num bolso um lenço azul
e sopras entredentes.
2. Os estigmas: rancor
sonolência, harmonia
e a praça já deserta.
3. O rótulo garante
muitos poemas limpos na
Olivetti nova.
4. Sabes e sabes bem
quanto o calor por vezes
faz suar entrepernas.
5. Sabes e sabes bem
quanto o frio normalmente
nos ajuda a pensar.
6. Uma jovem que aguarda
de lábios entreabertos
o troco no guichet.
7. Quando empurras a porta
um deus algo confuso
'stende-te a mão saúda-te.
8. Nunca gostei de padres
que por sobre a batina
usam camisolão.
9. As bem-aventuranças:
astúcia, persev'rança
o furor a meiguice.
10. Ao lado o empregado
de mesa muda a toalha
e serve-te a cerveja.
11. Resíduos de amargura
dolorosa presença
que estimulas em verso.
12. O ministro, sereno
na TV vai falando.
Eu engraxo os sapatos.
13. Num pátio onde rebrilha
o calor as formigas
lá vão lá vão em fila.
14. Aqui as cançonetas
mais do que as borboletas
fazem a Primavera.
15. Abotoo a braguilha
com discrição e lesto
abandono o cenário.
UM BONECO DESENHADO POR UMA CRIANÇA
Há algures qualquer coisa que nos escapa
Este nariz que se retrai Uma perna que esvoaça
Um algarismo desenhado Não é bem algarismo
É uma pequena estrela
Estrelinha do norte repara bem
este é o braço para muitas idades
a idade do sul e do oeste
as mãos que são plantas nocturnas |
Muitos anos mais tarde alguém encontrará
o papel amarrotado numa gaveta perdida
Olha é a cara do primo Florêncio
Florêncio é um velho Sorri
O seu olhar fica saudoso Por um momento
Por um momento tudo fica parado e incólume.
DESENHO
Eu só escrevo coisas que me acontecem.
Falo dos candeeiros que acendi, das rotações
da Terra. Assim, por exemplo: ergo a mão
aponto na direcção daquela estrela, engano-me
será estrela, planeta, evasão na retina
mancha nocturna num sistema provavelmente oculto?
A lembrança dum passeio junto a uma ribeira
Engano-me, era um pássaro voando, voando no céu obscuro
engano-me, era outra recordação, filme olhado de relance
conversa num lugar profanado, impenetrável miragem
Engano-me, era um momento possivelmente perdido
Eu só falo de coisas que jamais sei pertencerem-me
Engano-me, o nosso olhar não está aqui
a verdade conhece-se descobriu-se em si mesma muitas
vezes
engano-me agora só existe o dom da obscuridade
Mas engano-me tudo é claro, nada é claro, somente
um nome, como a cinza, cresce e ilumina a manhã.
Página publicada em dezembro de 2017
|