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pound paideuma

 

[ideogramização da poesia]


Haroldo de Campos*


 

* o objetivo desta introdução é a obra de pound em si: pound, o inventor de formas. pound no paideuma da  poesia contemporânea.

 

* há una cultura verbal, do mesmo modo que ha uma cultura visual ou sonora. sob certos aspectos, pode-se falar de pound. criador de formas verbais, com a mesma naturalidade com que se falaria de mondrian, inventor de formas plásticas, ou de webern, inovador do universo sonoro.

 

* pound puxa paideuma. isto quer dizer que pound teve a preocupação de levantar, para a arte poética de nosso tempo, uma nova tradição, a margem do rango acadêmico das histórias da literatura dessuetas e das  antologias serôdias.  seus ensaios, de the spirit of romance ao guide to kulchur, passando pelo a. b.  c. of reading, sao cortes paidêumicos : "separações drásticas" de um elenco de autores culturalmente atuantes  no momento histórico.

 

* pound, critico, vê a poesia dum angulo criativo: do  ponto de vista de quem esta empenhado em inventar novas formas poéticas. pound põe "make it new" ou seja — "culturmorfologia": transformação quaÏitativa da cuitura. determinados autores, cuja obra era de eficácia imediata e urgente no panorama artístico onde e. p.  atuava (por exemplo : arnaut daniel e os provençais; guido cavaicanti; os simbolistas franceses da linha "coloquial-irônica" — laforgue e corbière; etc.), foram chamados à linha de tiro, em

lances incisivos de estratégia intelectual, enquanto outros, sem rodeios, foram postos fora de campo (miiton, por exemplo, cujas construções latinizantes, segundo pound, artificializavam a língua).  a cultura necessita

dessas injeções de coramina : seu coração também envelhece.

 

* pound propõe ideograma. o método ideogrâmico, como princípio organizador dos cantos, é tão importante para a poesia contemporânea, como o princípio serial para as estruturas da música atual. o ideograma elimina as cortinas de fumaça do silogismo : permite um acesso direto ao objeto. duas ou mais palavras, dois ou mais blocos de ideias, postos em presença simultânea, criticando-se reciprocamente, precipitam um jogo de relações com uma intensidade e uma imediatidade que o discurso lógico não seria capaz sequer de evocar. fenollosa & pound (a escrita

chinesa como itistrumento para a poesia) : "neste  processo de composição, duas coisas conjugadas não produzem uma terceira, mas sugerem alguma relação fundamental entre ambas". ex.: "sol + Ïua" = "processo de luz total" ("ming"   fffj    ). os cantos,cada um deles em relação a suas partes componentes; cada canto em particular ou cada grupo de cantos (os grecoromano-provençais ; os malatestianos; os americanos = "jefferson/nuevo mundo" ; ,os sienenses = "reformas leopoldinas”; os chineses; os do ciclo john adams; os pisanos; os da "secção perfuratriz de

rochas"— 85 a 95, últimos até agora publicados) em relação ao corpo total do poema, compõem um imenso ideograma da cosmovisão poundiana, que se multiarticula em séries de ideogramas menores até a mínima unidade do poema: — o verso, que é também substituído diretamente por um ideograma ou então se constitui em membro de uma estrutura ideogrâmica básica.

 

* por estranha que pareça a aproximação aos observadores de superfície, impressionados com a exclusão de mallarmé das preferências literárias de e. p., o método ideogrâmico de composição, teorizado e praticado por

pound, conota intimamente, do ponto de vista da invenção formal, com "as subdivisões prismáticas da ideia" do autor de un coup de dés (poema que valeryvaritéé ii — chamou de "espetáculo ideográfico duna crise ou aventura intelectual"). hugh kenner (the poetry of ezra pound) entreviu, embora sem descer em profundidade à comparação, esse cam-

po de contacto: "a fragmentação da ideia estética em imagens alotrópicas, teoria iniciada por mallarmé, foi uma descoberta cuja importâancia para o artista corresponde a da fissão nuclear para o físico". ambos se inspiraram em estruturas musicais : mallarmé fala da "música ouvida em concerto", onde se encontram "vários meios" por ele utilizados, por lhe terem parecido

"pertencer às letras"; refere-se a "motivo preponderante, secundário e motivos adjacentes", a "contraponto prosódico", a organização semelhante a da sinfonia (prefácio a um lance de dados).  pound compara os cantos à fuga : "tome uma fuga : tema, resposta, contra-tema. não que eu pretenda uma exata analogia de estrutura" (carta de 1937 a j. l. brown / the Ïetters of e. p.).

 

" os cantos são uma "épica sem enredo" (h. kenner). não se prestam ao ordenamento lógico-cronológico de princípio-meio-fim.  não possibilitam o traçado de um fio histórico-narrativo. os elementos dos cantos, através do ideograma (princípio que eisenstein, por sua vez, aplicou à montagem cinematográfica), se catalizam em torno de "focos de interesse" subordina-

dos a uma hierarquia geral de valores (histórico-econômicos, ético-políticos, estético-críticos). o ideograma é a forca que, como um imã, ordena "a rosa na limalha de ferro" : um estilhaço arrancado à crônica de sigismundo malatesta, um aforisma extraído dos analectos de confúcio, excertos da correspondência de jefferson ou de john adams, reminiscências pessoais

do poeta como as de seu aprisionamento no campo de pisa, interagem polarizados em cadeias de relações, desenhado o organismo geral do poema.

 

* o léxico de pound é um léxico de objetividades.  pound não lida com a metáfora pura ou de tipo gongorino.  não especula com abstrações (como mallarmé).  sua linguagem é direta. tem a vivacidade do coloquial.  a

partir dos cantos pisanos (principalmente) ganha a celeridade com que os pensamentos se articulam no cérebro : seu poema passa a ser uma épica da memória. "dichten == condensare" é o postulado valido para o léxico poundiano: uma língua de "essências e medulas", de "definições precisas". a extrema síntese de sua dicção pode iludir em seu despojamento eliptico; nada mais distante, porém, do "automatismo psíquico" dos surrealistas, da linguagem onírica, a-causal, vaga. as seqiuências mnemônicas dos cantos pisanos se integram nas linhas de força do poema: são coagulações de discurso direto, núcleos e cernes de dicção objetiva, gravitando, em constelações semânticas, em torno dos eixos de ideias mestras, cuja "vis attractiva" domina a obra inteira.

 

* a obscuridade de pound não é de palavra. é uma obscuridade de referência. o melhor intérprete de e. p. é sua obra paralela aos cantos (seus ensaios, suas traduções, seus panfletos, sua correspondência),

pound opõe-se à ambiguidade de tipo surrealista.

 

* pound pode ser considerado um poeta espacial. a disposição dos blocos de ideias num dado segmento dos cantos (com especial intensidade a partir dos pisanos) responde a uma função rítmica também visual: contribui para a fixação sensível da estrutura ideogrâmica. através do corpo dos cantos a composição tipográfica é invadida pela pitografia chinesa, com função semafórica : "trazer ao foco" determinados grupos de ideias, mediante a ativaição direta do olho (o processo — que leva os experimentos de e. p, até o dado meramente gráfico, a textura material do poema — recru-desce na "secção perfuratriz de rochas" — rock-drill, cantos 85 a 95, onde aparecem, inclusive, com análoga função, hieroglifos egípcios e, em preto e vermelho, os naipes do baralho). com razao observa h. kenner:

 

"pound atingiu, durante o seu trabalho de mais de trinta anos nos cantos, uma crescente perícia retórica, alcançando novas altiitudes nas seqiuências mais recentes, nas quais a disposi^ção espacial de cada palavra é funcional". e charles madge ("a elipse nos cantos pisanos", "in" ezra pound, simpósio coligido por peter russel) : "ademais, para pound como para mallarmé, o aspecto visual de seus poemas é importante : o espaço através do qual a centeiha poética tem que voar é um espaço real numa página impressa. o que se conjuga com uma paixão pelo caligráfico ideograma chinês. “

 

* pound puxa paideuma. um trfbuto a e. p. é um tributo à vivacidade. falar numa ortodoxia poundiana é ser anti-e. p. poand arma a jovem poesia de um sentido qualitativo de processo. nenhum "paraíso perdido" de decoro estético.  nenhum "enxame de sentimentos inarticulados". sua presença instiga o artista criativo a uma opção radical: ao levantamento urgente de um paideuma, com ação instantânea sobre a conjuntura poética contemporânea, como ponto de partida para a invenção de novas formas de cultura verbal. nesse paideuma, a obra de e. p. será, necessariamente, uma das linhas mestras. dizer paideuma, é dizer justaposição das partes vivas de uma cultura: — corpo de conhecimentos que funciona—  mera ortodoxia é um problema de hipnose.

 

* o ideograma tem um futuro próprio, que não se esgota no edifício "maior" dos cantos. é a linguagem adequada para a mente contemporânea. permite a comunicação no seu grau mais rápido. entra em conjunção

com as experiências da música e das artes visuais realmente criativas. os cantos não fecham a poesia num beco sem saída. representam uma tensão para um novo mundo de formas.

 

* "a poesia difere da prosa pelas cores concretas de sua dicção" (fenollosa & pound).

 

haroldo de campos

 

 

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*Prefácio do livro “ezra pound cantares”, tradução de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Publicação do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura”, sem data (presumivelmente em 1960, pouco antes da mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília). No original não aparece o subtítulo “ideogramização da poesia”, que foi colocado para deixar mais clara a intenção do prefácio.

 


 

 

 
 
 
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