POESIA "ENTRE": POEMOBILES
Augusto de Campos
Ao emergir na 2a metade do século passado, a poesia concreta repotencializou propostas das vanguardas históricas, transpondo os limites tradicionais que amarravam a poesia ao verso e este ao livro. Radicalizando a experiência pioneira do marginalizado poema-partitura de Mallarmé (Un Coup de Dês, 1897), a que aquelas vanguardas, consciente ou
inconscientemente, se filiavam, criou uma sintaxe gráfico-espacial, não-discursiva, atritando o verbal e o não-verbal, e caminhando para o conceito de uma poesia "entre", interdisciplinar, "intermídia", na expressão de Dick Higgins. Teses e propostas que agora se renovam, dentro e fora do livro, sob a pulsâo das tecnologias digitais.
No meio da caminhada, em 1968, conheci Júlio Plaza, há pouco chegado ao Brasil, quando ele estava no processo de criação de OBJETOS, o seu primeiro "não-livro" — chamemo-lo assim —, encomendado pelo editor Júlio Pacello, e que seria publicado em abril do ano seguinte em tiragem de apenas 100 exemplares: um álbum de serigrafias sobre papel cartonado, em grande formato, 40 X 30 cm, com impressão nas três cores primárias, azul, vermelho e amarelo.
Os "objetos", serigrafados pelo próprio Plaza, consistiam, cada qual, em duas folhas de papel superpostas e coladas, com um vinco central, formando páginas, que ao serem desdobradas revelavam formas tridimensionais ao mesmo tempo geométricas e orgânicas, mediante um jogo estudado de cortes. Algo que ficava "entre" o livro e a escultura.
Convidado para fazer um texto crítico sobre a nova experiência, depois de ter visto e manuseado um álbum-arquétipo com as serigrafias "pop-up" de Plaza, me forneceu ele, em branco, um de seus "objetos", que eu fiquei de estudar: do centro, desdobradas as folhas, projetava-se um losango, com recortes escalares, para cima e para baixo. Olhando e reolhando as enigmáticas páginas-objeto, ocorreu-me, associar-lhes um poema em vez de um texto em prosa. Um poema que tivesse alguma analogia com a proposta plástica do artista. Assim nasceu, nas duas versões que fiz, em
português e em inglês, "ABRE" e "OPEN", o primeiro "poemóbile", como o balizei mais tarde— um poema-objeto, que ao se abrirem as páginas, tem as suas palavras projetadas para a frente, em diversos planos, sugerindo múltiplas relações de significado.
Mais adiante, pensamos, Plaza e eu, em fazer mais trabalhos desse tipo. Basicamente, ele me fornecia maquetes em branco, em diversificadas variantes tridimensionais, que eu usava como matrizes para colocar os textos, transpondo a sua configuração para um papel quadriculado. POEMOBILES, reeditando o primeiro poema-objeto e reunindo as
novas criações, foi publicado pêlos autores em 1974, em formato mais reduzido, 15 X 21 cm, com tiragem de 1000 exemplares, em edição de autor, e mais adiante republicado pela Editora Brasiliense, com o mesmo formato e a mesma tiragem, em 1984.
Refugindo tanto à obra de luxo, quanto à obra decorativa, ocorrente na maioria dos casos de livros de poemas ilustrados por artistas ou de livros de arte comentados por poemas, buscávamos um verdadeiro diálogo interdisciplinar, integrado e funcional, entre duas linguagens, o verbal e o não-verbal, capaz de suscitar, num único movimento harmónico,
o curto-circuito da imaginação entre o sensível e o inteligível, o lúdico e o lúcido.
POEMOBILES foi a primeira de uma série de iniciativas de que participamos, juntos, nas quais o conceito de interdisciplinaridade foi posto em prática.
Seguindo as diretrizes da obra anterior, CAIXA PRETA (1975) reuniu outros trabalhos artísticos e poéticos, rompendo com o suporte tradicional do livro. A caixa continha obras individuais — objetos visuais de Júlio Plaza e poemas concretos de minha autoria — e ainda poemas-objetos resultantes da colaboração dos dois artistas. As obras adotavam os suportes mais variados, poemas recortados, objetos e poemas-objetos ("cubogramas") que, montados, construíam cubos de formas tridimensionais, em deformações angulares que tornavam o texto tanto menos legível quanto mais agudos os ângulos. A interdisciplinaridade se estendia à música com a inclusão de um disco onde Caetano Veloso interpretava os poemas "dias dias dias"e "pulsar".
Espanhol de nascimento, brasileiro por escolha, Júlio Plaza, que a morte inesperada colheu, há alguns meses atrás, aos 65 anos, engajou-se praticamente em todos os desenvolvimentos tecnológicos das artes, do videotexto à arte digital, pioneiro que foi em muitos dessas experiências envolviendo novos suportes, a partir da própria reconfiguração do
livro. Foi ele também um importante estudioso e teórico da tradução intersemiótica. O nosso, foi um encontro de irmãos de alma. O seu radicalismo o afastou do mercado artístico e o manteve em nobre isolamento. Mas o seu pioneirsmo se traduziu em experiências que consubstanciam o esforço de colocar a arte no limite do olho e da forma, e a poesia na aventura extrema do "entre" — uma "terra incógnita" ainda a explorar.
'Augusto de Campos, poeta, tradutor e ensaísta brasileiro. È um dos criadores da Poesia Concreta
Extraído de
OBRANOME III: Antologia de poesia visual / Poesia Portuguesa. Anthology of Visual Poetry / Portuguese language. Organização editorial, projeto e curadoria Wagner Barja. Brasília: Edição AVE Promoção e Produção Cultural, 2013. 160 p. Ilus. col. 23x26 cm. capa dura. ISBN 978-85-65010-06-1 Realização Fundação Nacional de Artes – Funarte. Exposição realizada em Alcobaça, Portugal entre junho – julho 2013. Col. A.M. (EE)
Exposição de poesia visual segundo o conceito Obranome, que conjuga artes plásticas, poesia, instalação, videopoemas e outros elementos da integração das artes, realizada no palácio de Alcobaça, onde viveu Inês de Castro, a rainha de Portugal. Inclui artigos de Antonio Grassi, Jorge Pereira de Sampaio, Wagner Barja, João Ferreira, Antonio Miranda, Xico Chaves, Augusto de Campos e Oto Dias Becker Reifschneider em português e inglês.
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