Foto:Robson Correa de Araujo
A FOTO E O OLHO, O FATO E O OLHO E O FITO E O OLHO
O FITO E O OLHO
A foto na parede impermeabiliza a retreta
mas é inútil: quem a contempla,
despistado pelo tempo,
se esteriliza na corporeidade.
O momento roído
é percebido na objetiva capaz:
o olho que desvela
desveste o instinto
e investe à proeminência...
É até possível: o fito aumenta
ao destapar o seu mistério
de físsil sujeito à explosão.
O olho é que faz o retrato
na poesia
e não a palavra que é ilusória
em sua vã linearidade.
A FOTO E O OLHO
A foto na parede imobiliza o retrato
mas é inútil: quem o contempla,
desbotado no tempo,
se imortaliza na transitoriedade.
O momento retido
é refletido na objetiva fuga,
o olho que desvenda
inverte o instante
e inventa a transcendência.
É impossível: a foto mente
ao desvendar o seu mistério
de fóssil sujeito à restauração.
O olho é que refaz o retrato
na memória
e não a foto que é ilusória
em sua vã materialidade.
O FATO E O OLHO
O fato na praça imobiliza e retrata
e é sutil: quem o contempla
desgastado pelo tempo
se imbeciliza pela mordacidade.
O momento perdido
é irrefletido no subjetivo falaz,
o olho que desvenda
trasveste o instante
e inverte a abundância.
É possível: o fato desmente
ao receber o seu mistério
de difícil respeito à razão.
O olho é que desfaz a retreta
na memória
e não o fato que é ilusório
em sua vã fatuidade.
Extraído de:
DIAS JUNIOR, Valter Gomes. A poesia de Antonio Miranda e suas intersemioses. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Pós-graduação em Letras, 2014. 268 p. Tese de doutorado defendida com Louvor.
Ao entrevistarmos Antonio Miranda por correio eletrônico, em 19 de abril de 2014, sobre a estrutura deste poema, ele nos respondeu: "este poema faz parte de um conjunto em que eu reescrevo e reinterpreto de forma absolutamente livre o primeiro poema... como se fossem visões prismáticas de um mesmo objeto... criando signos novos, um jogo de palavras, versões..." . O conjunto a que o poeta se refere possui títulos bastante similares, porque ele joga com o primeiro substantivo ao alterar o significado do vocábulo com a modificação de uma única letra do signo, gerando assim uma paranomásia propriamente dita entre os termos.
Vejamos a escritura dos três: A FOTO E O OLHO, O FATO E O OLHO e O FITO E O OLHO. A similaridade se corporifica também na forma, porque eles são compostos respectivamente de dois quartetos interpolados e um quinteto e um terceto emparelhados. Desta trilogia, selecionamos o terceiro devido à metapoesia que se manifesta na última estrofe. O título deste poema é composto por dois símbolos fito e olho que exploram bastante a sensorialidade visual. Todo o texto exige uma simbolicidade que desencadeia uma isotopia de visualidade.
O primeiro verso recupera o jogo de palavras proferido pelo poeta nos poemas anteriores. Em A FOTO E O OLHO, a introdução se dá assim: "A foto na parede imobiliza o retrato", (MIRANDA, 2004c, p. 92) já em O FATO E O OLHO, o início é "O fato na praça imobiliza a retreta" (Idem, p. 93). Ambos os versos dialogam com a linha que principia O FITO E O OLHO "A foto na parede impermeabiliza a retreta". Essas aproximações ocorrem nos três textos como um todo e o que é mais saliente entre eles é quão bem explorada é a sensorialidade visual. O signo foto capta aquilo que o observador almeja registrar e o fato de ela estar exposta sobre a parede serve para atingir mais ainda o campo de visão. Este retrato impermeabiliza a retreta, a qual se trata de uma banda de música que ficava dentro dos coretos, nos centros das cidades, tocando para o público. A foto torna a retreta mais visível pelo fato de esta ser impermeabilizada, contundo, consoante a voz lírica, quem contempla o retrato é porque se distraiu e torna-se estéril, isto é, obtém um olhar improfícuo.
"O momento roído" é equivalente semântico posicional entre si com o ato de esterilizar. Aquele se posiciona como iconicidade metafórica deste e há toda uma gradação crescente de ações atribuídas ao olho, unindo-se também à figura do assíndeto, como vemos nos versos: "o olho que desvela" , "desveste o instinto", "e investe à proeminência...". O símbolo olho é como se fosse um perquiridor que analisa cuidadosamente o objeto de seu interesse. Os verbos desvela e desveste além de aproximarem-se pelo efeito da paranomásia, eles aguçam o campo visual por eles tornaram algo exposto ou conhecido.
No poema, a função do olho é expor o instinto para depois investi-lo à proeminência. O signo momento roído poderia ter sido registrado novamente após o verbo investe para que clarificasse o que necessariamente seria posto em relevo pelo olho. No entanto, através da figura estilística do zeugma é possível captarmos sua materialidade oculta no lugar citado. Toda essa declaração sobre a capacidade deste signo proponente da visão serve para justificar a seguinte asserção de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: "o olho, órgão de percepção visual, é, de modo natural e quase universal, o símbolo da percepção intelectual", (2008, p. 653) porque, após aquilo que é visto pelo analista, despontam seu interesse pele pesquisa e sua intimidade para com o saber. Estes dois críticos afirma ainda que "o olho, como símbolo de conhecimento, de percepção sobrenatural, possui às vezes particularidades espantosas", (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 2008, p. 654)* porque, através da investigação visual sobre o mundo em todas as suas acepções, nascem as teorias e as curiosidades que regem a humanidade em toda sua pluralidade.
O eu lírico chega a declarar que o "o fito aumenta", "ao destapar o seu mistério", "de físsil sujeito à explosão". Quer dizer: a partir do memento que o olhar é totalmente contido no objeto observado, buscamos desvendar as curiosidades e as incertezas que circunscrevem o ser fitado a fim de que venha a eclodir a plenitude da sabedoria. É através do olho, conforme prefere o eu lírico, que é feito o retrato na poesia e, neste momento, ocorre a materialização da metapoesia: a poesia explica como compor essa arte. O perscrutínio do olhar aprofunda as particularidades inerentes a cada poema e não a vã linearidade da palavra que, segundo o eu lírico, é ilusória. A palavra por si só não é suficiente para suprir toda a necessidade do fazer poético. Isso já foi bastante comentado, porque é preciso explorar as habilidades das percepções sensoriais para podermos criar arte poética e, mormente, depreende-la em sua completude e complexidade. Posturas essas bem captadas pelo olhar agudo e crítico do intérprete do que pela análise linear do texto. A poesia é isto: uma confluência de sensorialidades a fim de erigir o seu todo.
*CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (1982): (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva [et al.] 221. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.