ARARIPE COUTINHO
Nasceu no Rio de Janeiro em 1968 mas vive em Aracajú, Sergipe, desde 1979, onde é articulista de jornais e apresentador de programa de TV. É autor de meia dúzia de livros de poesia. Recebeu os títulos de Cidadania Aracajuana e Sergipana e é membro da Academia Sergipana de Letras. Foi diretor da Biblioteca Pública Municipal.
Encontramos um exemplar do livro de Araripe Coutinho — “O DEMÓNIO QUE É O AMOR” entre os muitos títulosos que o poeta Aricy Curvello doou para a Biblioteca Nacional de Brasília. Em boa hora. resgatamos este poeta de linguagem atual e instigante, de uma região que freqüenta pouco nossa página até o momento.
Faleceu em 2014
XLII
Adentro avesso e o reto
É vulva aberta, mucosa
No inferno de nossos dentros.
Espeto o desejo como quem
Procura o risco, o medo, a coragem
De avançar perdido por algo que sei
Desde a infância, aurido.
Homem é sempre treva. Mas pode
Trazer o mundo para dentro de nós.
E a arte nessa selva é sempre
A morte.
Invento de muros. Paredes altas.
Consumo de felicidades mortas
E a maçã no escuro é Clarice
Sem decifrar GH, seu mito.
Estou apodrecendo como
Quem constrói uma catedral
Sem missa. Assim rendido no portal
Avanço sempre que me vejo.
Sou um mesmo homem
Que não conhece deus, mas que o ama.
Seria o amor assim? Este nunca vir.
Sim. É desejo o que me mata.
São negros e azuis e o quarto cabe
Cada um com seu poder.
Eu sempre rendido.
XL
Aparecer no espelho e dizer: morra!
Este é o meu tempo. Fantasmas visitando
O quarto escuro. Uma mulher de unhas longas
Tez avermelhada, sombrancelhas de chagas
Mal dormidas. É a morte. Ainda que o dia
Amanheça a noite nunca chega.
Estou tateando a ogiva de um amor sem matéria.
Carregando o andor de um santo sem fé.
É minha esta prece. É vasta, solene, quase muda.
Entendo a morte como a um copo de café.
Sirvo as compotas de frutas uma a uma.
É jambo, ameixas e morangos.
Nenhum sabor
Decifra esta ira. Estou incendiado
Desde amor.
XLIV
Tenho dito sempre
Que genet e Jeanne moreau
Estão certos: “todo homem mata aquilo que ama”.
Os negros na vidraça ensaboados
E o quarto aguardando bater seis horas.
É deu visitando a estrebaria.
Pondo fogo no feno, impedindo que se durma
Ao longo de uma costela larga.
Mas pode o desejo fraturado
Acender outra chama? Pode.
Desce as escadarias. Põe o colchão
De sombras na varanda. Deixa os glúteos
À mostra. Concentra o verde da vida
Entre os lábios. Deserta a última
Claridade. É ele quem ama.
Mesmo escuro põe vida nas coisas.
E inflama.
COUTINHO, Araripe. Do abismo do tempo. Aracaju, SE: Sercore Artes Gráficas, 2006. s.p. 21x18 cm. Capa: Heyder Macedo. “Araripe Coutinho “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Quero dizer que aprendi morrendo
Quero dizer que aprendi morrendo
E que o púrpura-jade
Do teu casaco quase
Emprenha o meu vazio de afeto.
Recebe de mim
Aquilo que conduz o nada
Conhecida que sou
Em juntar teus trapos
Para só depois sim
Amarrar o cadarço
Da nossa desolação.
Órfão de Deus
Órfão de Deus
Porque é preciso perder
O homem
No emaranhado de teias
Que se desfaz.
Dentro de mim
Trafegam orfanatos
Extensos corredores
Antigas casas.
Órfão é tudo
O riso, o sexo, a vida.
Pôr para dentro esta ferida rasa.
Deitado no Teu colo.
Órfão de Ti.
Nunca desamparada.
Entrega-te como quem vai morrer ...
Entrega-te como quem vai morrer.
E não te distanciarás
Do átrio onde um dia
Viveste o teu triunfo.
A tua morte apenas um pretexto
De não amar. Incansável corpo
Que te visita exausto.
Enfrenta o dentro corroído,
O que não deixa. Devora
E vai construindo ilhas
Como quem passeia por uma
Casa de pássaros. Norteia.
E passa como quem não tem
Mais medo. Estertor redobrado
De agonia.
O que comemos ...
O que comemos devolvemos
Sem ira. Tudo é da terra.
Adubo e esterco vão do intestino
Até a raiz da planta
Que devolve bela a folha
Verde que também morrerá
Depois da infância.
Uma folha não dura mais
Que um mês e se segura a flor
Desencanta. Até para o antúrio
Pesa carregar beleza e lírio.
O que comemos de saboroso
Planta em nós mesmos um
Deserto de sangue. Este jorro
Vermelho só precisa do sêmen
Do trigo para manter
O coração vivo.
O que comemos é espanto.
ANTOLOGIA DA NOVA POESIA BRASILEIRA . Org. Olga Savary. Rio de Janeiro: Ed. Hipocampo, Fundação Rioarte, 1992. 334 p. ilus Ex. bibl. Antonio Miranda
AMOR SEM ROSTO
A noite traz em sua alma
uma agonia de poeta louco
as horas por si se desmancham
eu mancha dessas horas
reclamo pela fome do ontem
amor amar o nada
este abismo de tudos
mudo eu mudo só
hei de juntar os lados
há noite em ferrugem sobre os lábios
carrego um dragão no peito
(fruto de adultério da morte com a poesia)
asia se eu morre de amor
sei que sou um deus ateu
odeio berceuses
adeuses para mim é licor
por isso fantasio o medo
finjo o beijo que não é seu
mas o que fazem os homens
que não são meus?
Pesam-me os dedos da mão
o hábito de roer a dor
ser ator do meu próprio espelho
eu não decifro a morte
engulo
e quando paro
calo.
Página publicada em janeiro de 2008. Ampliada em dezembro de 2015. Ampliada em setembro de 2020 |