FLÁVIA ROCHA
Flávia Rocha nasceu em São Paulo, em 1974, é jornalista, fundadora e diretora de comunicação da AIC. É autora também do livro de poemas bilíngue “A Casa Azul ao Meio-dia/ The Blue House Around Noon” (Travessa dos Editores, 2005). Tem mestrado (M.F.A.) em Criação Literária/Poesia pela Columbia University e é editora-chefe da revista literária americana Rattapallax, com sede em Nova York. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália), entre outras. Na AIC, entre diversas atividades, fundou o curso de Criação Literária, que coordenou em suas primeiras edições, em 2007 e 2008.
ROCHA, Flávia. Quartos habitáveis. Rio de Janeiro, RJ: Confraria do Vento, 2011. 68 p. (Coleção Os contemporâneos) 12x18 cm. ISBN 978-85-60676-38-5 Apresentação de José Kozer, na contracapa. Foto da capa: Fernanda Rocha. Projeto gráfico e capa: Alenterra Graphic Designs. “ Flávia Rocha “ Ex. bibl. Antonio Miranda
“Adentro esta cartografia que Flávia Rocha compôs como quem atravessa um umbral. Do ouro lado, após tocar a outra margem da linguagem a que se costuma chamar poesia, percorro seus quartos e poros, os seus porões e cabanas as suas velas e vísceras, galerias de vozes, rostos, janelas e pátios, uns vazios, outros convulsivos em sua busca da suave concordância entre ser e mundo. Onde queríamos ler quartos e habitáveis, deveríamos ver: todos os espaços, interiores e exteriores, que se erguem desta poesia absolutamente substantiva.” Rodrigo Petronio
TRILOGIA
CHAN QlN JlE
Em casa cortando legumes
em cubos, na garupa da bicicleta
de um homem mais velho do que ela,
na frente do espelho embaçado
prendendo o cabelo liso com grampos,
na penumbra vermelha de um quarto
de hotel, sob o lençol, na rua, de salto alto,
no mercado comprando peixe, em casa
cortando legumes em cubos.
CHAN QIN NIU
Uniforme azul-marinho de pregas,
ténis e meias soquete brancas,
uma borboleta tatuada no tornozelo,
as pernas esticadas à frente da cadeira
enquanto espera o trem na estação,
folheando uma revista, as unhas roídas,
a mochila no chão, no trem, em cima
do sofá, ténis desamarrado e televisão -
hoje a irmã não vem dormir em casa.
CHAN ZHOU WEI
Nos fundos da loja um cheiro
de peixe, enguia, água para lavar o piso,
e o cansaço sem idade no rosto de patrão,
viúvo, pai ausente, fecha a gaveta
à chave, e não vai para casa não dormir,
a filha indiferente no sofá, a outra
de volta de manhã, sem explicação,
na cozinha, cortando legumes, distante —
abaixa a porta da loja, o ar é quente.
ATEMPORAL
No espaço das formas inconstantes,
o vazio preenche eternidades distintas —
um morrer de uma coisa que já não existe
para que outra tome o seu lugar
fora do tempo — explosão da célula sutil
que nos difere de todas as coisas.
Extraído de
BABEL – Revista de Poesía, Tradução e Crítica – no. 6 – janeiro a dezembro de 2003
Aquelas Bailarinas
No canto direito, no teto do meu quarto,
de vez em quando, vejo um móbile:
sete bailarinas e uns guarda-chuvas.
Fica girando por dias, depois desaparece.
Dou-lhes nomes, quando posso.
Uma bailarina (eu a chamo Larissa)
tem o péssimo hábito de bocejar
quando estou lendo. E a menos
atraente entre elas, com uma perna
mais fina que a outra e a maquiagem
excessiva: um risco sobre a boca
os olhos desproporcionais.
Toda hora ela estremece
de um jeito esquisito, como se
quisesse despendurar-se do teto.
Um dia ainda despenca, toda quebrada,
numa pagina da autobiografia de Nabokov.
Samantha toca bandolim,
mas nem sempre consigo escutá-la.
Preciso estar semi-consciente, surda
às conversas alheias, à multidão
que se ergue fora livros dentro
da vida atemporal do meu quarto.
Samantha sabe quando estou fingindo.
Ela vigia minha respiração, meu pensamento.
Quando adormeço, toca
bandolim, inspirando os sonhos.
Judith está fora do peso.
Enquanto as outras dançam, ela gira
primeiro para um lado,
depois para o outro.
Carrega um guarda-chuva de borracha
branco com bolas vermelhas. Apesar
do porte e da falta de talento, Judith
tem o respeito das demais. Ela leu
a Divina Comédia, fala esperanto,
pode recitar dez mil versos de cor:
quando as outras desaparecem
ela hiberna dentro de um livro.
Letícia e Suzana são gémeas
univitelinas. Há algo vulgar no modo
como elas cruzam as pernas,
o ar disperso, insolente. Não lêem,
e provavelmente não hibernam.
Comem qualquer coisa: mosquitos,
spray de cabelo, poeira, ondas de radio.
Riem tão alto, que chega a ser
embaraçoso trazer pessoas em casa.
Fazem de tudo para chamar a atenção:
atiram-se contra as paredes, performam piruetas
escandalosas. E quando alguém
finalmente as toca, ficam irritadas.
Karen é a única que faz sombra
quando a luz está acesa. Ela acha
que pode nos confundir: se a luminária
da minha escrivaninha está acesa, ela se projeta
sobre um póster A Dança, de Matisse;
se a lâmpada do teto está acesa, deita-se,
fazendo formas, sobre a autobiografia de Nabokov.
Há um truque, que eu não sei explicar:
de vez em quando, ela aparece ao pé
da cama, imóvel, sem que haja qualquer
fonte de luz vindo de cima. A mágica
dura uns dois minutos. A sombra vai sumindo
até que desaparece, seguida por um apito.
Uma bailarina é visível só por uns segundos
quando abro a porta.Tem um guarda-chuva
cor-de-limão.Vejo-a tão pouco, que não me
acostumo a chamá-la de Isadora ou Lisa ou Nádia.
Página publicada em setembro de 2014; ampliada em dezembro de 2016.
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