ADELAIDE PETTERS LESSA
Adelaide Petters Lessa nasceu em São Paulo. É educadora, psicóloga clínica, doutora em Ciências Humanas pela USP, professora universitária. Publicou, em prosa, Precognição, Paragnose do Futuro, Videntes do Cristo. Em poesia, Amoressência, O jogo do êxtase, Augusto e Quase Poética do meu Próximo.
Correspondência de Carlos Drummond de Andrade depois de ler Augusto, é a melhor apresentação da autora:
Drummond lê versos de Augusto
(fragmento)
“Quem inventa coisas como o esquife de avelã,
a mulher que leva brasas no avental,
quem convalesce de navios, de rosas e de arvoredos,
e descobriu em Amar um verbo redondo,
quem volta da expedição à pérola,
traz consigo a poesia, a mais fina e requintada poesia.
Que surpresa o seu livro, Augusto!
Em tão pouco sabe dizer tanto... Oito linhas curtíssimas
E aquela descoberta admirável sobre o universo:
Tudo faz parte de um único verso.
Esta é a verdade dos poetas que reduz a sínteses
Uma larga e sofrida experiência dos homens.”
(De Amoressência)
De
AUGUSTO
São Paulo: Massao Ohno, 1998
AUGUSTO EM HORIZONTE CIRCULAR
Achei-me intemporal
num campo solitário.
O sol a pino ardeu
no fundo de meus olhos.
Senti a gravidez
da noite ao meio-dia.
Parei de ser e fui
o ritmo de tudo.
Fundiram-se, à escuta,
as flores com as nuvens.
Em mim estava o fulcro
De Amar, verbo redondo.
AUGUSTO, AO TIMBRE DE EINSTEIN
Olho capaz de ver-se a si mesmo.
Não o da abelha, multifacetado,
imóvel, alto, espelho simultâneo
de bosques de araucárias e violetas.
Não o do homem que não vê a nuca
por mais que vire o rosto e se contorça.
Mas o do monge em êxtase, pupila
Circunvidente, pálpebra de tudo.
Dentro do qual os cosmos se recriam,
Renascem gerações, há o descortínio
De ser, o meu, o corpo do infinito
Quando reverto à condição de luz.
De
QUASE POETICA DO MEU PRÓXIMO
São Paulo: Escrituras Editora, 2000
ISBN 85-86303-81-X
OURIVES-MESTRAS
Exibo jóias raras e me prezo
de ser a vitrinista da poesia
de brasileira ourivesaria.
Coroa-me a tiara de Henriqueta,
madrinha lua de branquinhas tranças,
luar de pérola em buquê-de-noiva.
Tilintam braceletes de Cecília
Autografados pela musa antiga,
Santa Maria Egipcíaca.
De Auta, no pescoço, a correntinha
de ouro com pingentes extraídos
de uma jazida de ametistas.
Maria Braga Horta, um camafeu
de bem-querer esposo, filhos, pátria,
selou meu peito e me guardei em Deus.
Novas eu trago ao escrínio da poesia,
as jóias rútilas de ourives-mestras
de quem, herdeira, peço a augusta bênção:
De Stella, um broche em flor, a Leonardo,
diamante rosa em berço de platina
com pétalas redondas, turmalinas.
De gargantilha de granadas, rubra,
de bíblica romã, sobe a tribuna
voz de Renata à sua gente muda.
De Adélia, um par de brincos marchetados
de azuis cristais de quartzo, um azul raro
na família dos chips eletrônicos.
De Astrid, seus anéis, jade e safira,
o de alamedas, seiva e clorofila,
o água-de-fonte, som de sensitiva.
Foi de Marília um medalhão em prata
com juras de poeta desterrado,
seu verso aos quinze anos da noivinha.
Resgato para mim aquele escrínio-lira,
lágrimas dela beijo, opalas agridoces,
nobres, intactas, na memória lírica.
HARI SARI
— Quero casar-me virgem, divulgava
E os sedutores se retinham, transtornados.
De cor sabia o Alcorão e o Gita,
o Tao Te King, o Popol Vuh e a Biblia.
De quebra,
eficiente executiva,
modelo grego, de beleza olímpica,
moderna, refinada, virtuosa
era invencível no xadrês dos mestres,
em tiro ao alvo, no flamenco puro,
tai-chi, rappel, judô e capoeira.
O pai, de olho profético, estimava:
— Tem equilíbrio. É rústica e suave.
Saberá defender-se e preservar-se.
Casou conforme quis, mulher inteira.
Fez-se budista, unida a um monge, casto,
enquanto os sedutores transtornados
lançaram-se à fogueira
entre pôsters do Buda e Dalai-lamas.
NARCISA
Se houve traição não foi só dele
que amava desfrutar várias amantes,
ou simultâneas, ou em séries,
desde que, apaixonadas, fossem elas.
Se apaixonado, perderia o mando.
Jamais enlouquecido, ele gozava
de gozo das mulheres temporárias,
nunca poroso, nunca transvazante,
apenas entretido em salivar
um selo no postal às que jogava,
aos sórdidos cassinos, em soluços.
Narcisa, a última da agenda,
por quem ele daria o sangue e a vida,
essa o traiu, clone risonho
de sua irresponsável jogatina.
HERÁCLITA
Orfã, cresceu com sua avó
francesa, desligada, nonchalante,
a placidez das plácidas.
Tout casse, tout lasse, tou passe.
O tempo era a carruagem
Da tolerância. Laissez-faire, laissez aller.
Um bicho carpinteiro, o avô luso
sentia horror à mãos vadias:
— Se não tens o que fazer
a saia descostures e tornes a cosê-la.
Penélope de Portugal, a jovenzinha
passou de roca-e-fuso a um tear elétrico
e a um micro digital, plug and play, delete,
que o ir e vir da Nasa é retorno santo.
O namorado, sobre a ponte, fez notar
que rio nenhum é o mesmo, onda nenhuma
se eleva e cai igual à outra
para nenhum surfista.
Então ela se vai
de namorado em namorado,
cíclica, ardendo como buscapé,
que o ir e vir da Lua é trabalho
para a maré.
HERBORISTA
Um homem sorridente, prestativo.
Na meia idade, tem saúde esplêndida.
Diz ser pajé de setecentos anos.
Cura com plantas e “acerta mão”.
Ele recorre ao boldo para o fígado,
à malva para a boca e a garganta,
erva-cidreira para um sono calmo,
maracujá na insônia, ou alfazema.
Com agrião, já levantou da cama
um jovem desfibrado, anêmico, raquítico.
Limão já impediu que se amputasse
A perna de um piloto de helicóptero.
Se a doença é gastrite, guaçatonga
cicatriza as úlceras do estômago.
Bronquite e asma cedem aos vapores
do eucalipto aromático, balsâmico.
Gengibre dá voz límpida aos cantores,
grindélia e guaco vencem coqueluche,
quinino acaba com as febres da malária.
Com alho cura gripe e mau olhado.
Espiga de milho emagrece o obeso
se for usado apenas o cabelo.
Quebra-pedra arrebenta cálculo urinário.
Cebola, uva, abacaxi, tomate,
laranja e couve-flor antioxidam
radicais livres que dão vida ao câncer.
A graviola serve ao diabético.
Guaraná retarda os males da velhice.
E santa de louvor e ladainha
nossa espinheira-santa:
desinfetante, tônica, analgésica,
cicatrizante, o povo a batizou
de salva-vidas, Espinho do Divino.
A salsa, lisa ou crespa, é outra santa.
O mel de abelha-jataí...
Mas alguém chora à porta do herborista:
— A vespa te picou? A cobra te mordeu?
Contraveneno aplica-se, menino.
Mestre das ervas, fitoterapeuta,
sabe de cor receituário antigo,
riqueza das florestas e campinas,
das feiras e cozinhas,
do hospital dos pobres, longe das cidades.
Pajé conhece vinhos, chás, tisanas,
inalações e a prece repetida:
— Espinho do Divino, serve este ferido!
Ele é quem diz, na extraordinária louvação
à selva, ao campo, à horta e ao pomar:
— Confia em nossa flora,
preserva nossas matas,
salva o teu sorriso,
festeja a vida!
Homenagem aos raros cientistas que pesquisam os valores medicinais da flora brasileira.
PLANTA CARNÍVORA
(voz do diabo)
Aos desafetos serviu alume,
urtigas, urzes, cicuta, estrume.
Tem o desmanche de seu curtume
no inferno onde quem fez assume.
Nada se perca,
nada se esfume.
(voz de amigo)
Aos desafetos
serviu alume,
urtigas, urzes,
cicuta, estrume.
Curte o desmanche
de seu curtume
no limbo onde
quem fez assume.
Nada se perca,
tudo se arrume.
(voz de anjo)
Aos desafetos
serviu alume
urtigas, urzes,
cicuta, estrume.
Curte o desmanche
de seu curtume
na terra onde
quem fez assume
Nada se perca.
Tudo se emplume.
FALCATRUA
Pena de garça, no cartório, é garantia
de uma escritura honesta, lavra pura?
Mestre contábil não confundiria
graça divina com falsa poesia.
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Os poemas publicados em LITERATURA – Revista do Escritor Brasileiro, Ano XVI, Nov. 2006/ Abr. 2007, N. 33, editada pelo contista, poeta e crítico Nilton Maciel.
AFLIÇÃO DE UM JOVEM POETA
Ele: Livro de poesia
é como
teia de aranha.
Ela: Prende a folha, prende a chuva,
rehidrata a sobrevida.
Ele: É coleta de sangue,
balanço de suor, colcha de pranto,
esperma, linfa, baba,
é mordida, auto-defesa.
Ela: Mas, pelo design,
espantosa, delicada geometria ...
Ele: Estrela, sistema solar,
mandala no ar, exágono de êxtases.
Ela: ... sujeita a riscos,
vendavais, tempestades,
pedras e lava,
e críticos impérvios.
Ele: O analfabeto rasga.
O cego pisa.
Ela: E a mãe conserva,
entre pétalas de rosa
e penas caídas,
azuis, de periquitos.
CIDADÃ
em Los Angeles, 1996
Só não é presa por andar vestida
com uma teia de viúva-negra
esburacada.
Só não é presa porque anda ereta,
semi-dormida até encostar no beco
de móveis descartados.
Na poltrona cambaia ajeita os braços
do jovem corpo nu
para picar-se, mais uma vez,
entorpecida pela droga.
Ela é um fantasma de hematomas, pronta
para dormir em morte solitária
entre sarnentos gatos.
Inutiliza a vida por um vício
e além a espera
o Vale atroz dos Suicidas.
São Paulo, 02.02.00 celebrando
Nossa Senhora das Luzes, a Candelária.
Noite das Velas de Diwali, Índia
VELÓRIO
Dei farol baixo sobre o peso morto
abandonado num caixão de ripas
sem tampa e sem adeus de flor-de-estrada.
Nenhum irmão de luto, ou caridade
de velas que fingissem companhia,
anônimo em seu câmbio transumano.
Só teve as ripas sob o corpo findo,
sem um cavalo que o jogasse à vala,
fadado às chuvas, bichos, ventania.
Imune a padeceres e agonia,
estava solto, de alma viva e quente
em vôo acima do capim cidreira.
Achei de lhe dizer, solenemente,
o trinta e dois, um salmo-profecia
"Tu me cinges de alegre livramento ...
11 abril 2001
ALTAR
Em memória do amigo assassinado,
ele cortou três galhos de um carvalho,
subiu ao cume de um penhasco ao vento,
prendeu tiras de roupa como folhas,
gravata estilhaçada como flor
e um relógio de pulso como fruto.
Mirou o sol poente, consangüíneo,
vazou sua dor em trapos de alma em fúria:
- Absurdo. Um justo. Meu irmão. Um puro.
13 junho 2002 Santo Antonio.
DEUS-MAE
Aos sofredores do mundo
quisera escrever um poema
que fosse de alívio eterno
assim como, na hora extrema,
Deus é todo materno.
in Augusto
Página republicada em junho de 2008.
Outros textos da autora em: http://br.geocities.com/jerusalem_13/adelaide.html
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