Foto: www.7letras.com.br
MARCUS FABIANO GONÇALVES
Gaúcho (Rio Grande do Sul - Santana do Livramento, 1973). vivendo no Rio de Janeiro. Professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na Universidade Federal Fluminense - UFF. Em 2005 publicou O Resmundo das Calavras (ws editor), obra finalista do Prêmio Jabuti.
GONÇALVES, Marcus Fabiano. Arame falado. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. 134 p. 14x21 cm. ilus. Ilustrações e capa: Antonio Augusto Bueno. ISBN 978-85-7577-858-6 Ex. bibl. Antonio Miranda
"De acordo com o belo poema epónimo desta coletânea, o arame invocado pelo título pode ser uma corda musical, um fio elétrico, uma fibra ótica, um caminha de equilibrista ou o próprio fio do discurso. É um arame que se estende longe no espaço e no tempo, 6 nos traz instantâneos de afetos e quotidianos, de história e artes, deuses e culturas. É uma performance estonteante, fruto de um casamento venturoso entre muito saber e muito sentir." RICHARD ZENITH, na orelha do livro.
MONTAIGNE
ao bom selvagem
a guerra dos sexos
era um só armistício:
todo corpo explícito
sem jamais deplorar
invergonhas de índio
se de repente porém
espocavam mamilos
e seios intumesciam
até mesmo os ímpios
babando se benziam
no pasmo de patrícios
a perdição no paraíso.
DRUMMOND, FARMACÊUTICO
na usinagem das anginas, o melhoral:
do neurônio à reles bactéria digestiva
bálsamo para as dores que excruciam
contra as tênias do tédio, o vermífugo
que clareia a fosca alameda dos cinzas
e ladrilha uma vereda com pedrinhas
o velho tônico de combate à anemia:
o ferro do sangue, o mesmo da mina
sabendo a bílis negra da melancolia
e para os achaques de asma ou mialgias
a melhor cânfora que arrepia as plumas
ali onde é mais viva a nossa carne crua.
ARAME FALADO
A
pela cabeça larga do berimbau, soa a garganta árabe de arame:
alambre que lembra o barbante em fio de ferro, lata ou estanho
a fina corda vocálica dos bantos no varal ao vento, sem grampos
B
atenção a esta civil barricada bélica em sua ameaça nunca discreta:
CUIDADO: CERCA ELÉTRICA — no fio do mourão, o limite da gleba
torcido a torquês, a prego e martelo, ou urdido em arame na rede
da tela
I
o artífice molda a gargantilha, o equilibrista sobre seu chão mínimo
um fio encapado que percorre condutível a bipolaridade alternativa
e de cujo enrolar nasce a bobina, essa mãe magnética do eletroímã
O
hoje a cobra vítrea da fibra ótica, ainda ontem os dois polos de cobre
o arame aéreo do telégrafo no poste, esse bisavô de wireless e
modens
passando ao telefone seus trotes a bits e torrentes, bisnetos de Morse
U
um arame que só sirva no mundo ao metalescente fio do discurso
flexível e dúctil, livre de acúleos, arame que jamais cerque redutos
como guetos de surdos, um arame falado, fio de luz no crepúsculo.
JACKSON POLLOCK
à vista do que escorre
ou simplesmente pinga
a fluída metafísica da substância tinta
tinta — não na escala de coisa figurada
ou na paleta onde espirram as bisnagas
antes uma pintura no chão da sala
pela tinta, tela e lata, cara a cara
dizem: não tem palavras
é a tal coisa abstrata
a fugidia forma do nada
besteira!
é só o macaco rupestre
escorrendo a velha baba:
a raiz e o tufo face à fala.
Página publicada em outubro de 2017
|